• Editorial do Estadão
  • 13 Novembro 2016

 

Bem que Guilherme Boulos, o notório líder do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), avisou que iriam “virar rotina” os bloqueios de avenidas e estradas como forma de protesto por parte dos “movimentos sociais” que perderam seus privilégios depois do impeachment da petista Dilma Rousseff.

É espantoso que sobre esses grupelhos, que agem evidentemente como marginais, ainda não tenha recaído o peso da lei. Em países onde vigora o Estado de Direito, o direito à manifestação é respeitado, mas a baderna e a desordem, não. A falta de pulso para lidar com delinquentes que decidem infernizar a vida dos cidadãos comuns quando lhes dá na veneta, sem que por isso sejam devida e legalmente reprimidos, alimenta a sensação de que tudo podem.

Portanto, o que aconteceu ontem em São Paulo e em diversas cidades do País, onde manifestantes impediram milhares de pessoas de chegar aonde pretendiam e atender a seus compromissos diários, vai mesmo “virar rotina” – pelo menos até que o poder público resolva cumprir seu papel de guardião da segurança e dos direitos de todos, sem concessões.

O mote do tumulto de ontem foi a chamada PEC do Teto, a Proposta de Emenda Constitucional que visa a colocar um fim na gastança desenfreada que quebrou o País durante o mandarinato lulopetista. O motivo, claro, é o de menos. Para a tigrada, o que importa é criar problemas para o governo de Michel Temer, na presunção de que, se as medidas tomadas pelo presidente fracassarem e se for criado um clima de confronto social, o eleitor voltará para os braços do PT e seus associados.

Feitas as contas, é apenas isso o que restou aos petistas e companhia: promover a mazorca. De uma hora para outra, o outrora robusto capital eleitoral do PT derreteu, em meio às evidências de envolvimento de seus principais dirigentes em cabeludos escândalos de corrupção e depois que o País afundou numa brutal crise econômica causada pelas irresponsabilidades de Dilma Rousseff, criatura inventada pela soberba do chefão Lula da Silva. O eleitor, enfim, cansou-se do engodo petista, negando-lhe os votos de que o partido se julgava dono e que pareciam lhe garantir o poder eterno.

É claro que, por não terem nenhuma vocação democrática, os petistas, em lugar de admitir seus erros, preferiram criar toda sorte de teorias para justificar sua queda. A principal delas é a de que existe um complô – ou um “pacto diabólico”, conforme definiu Lula – das “elites” para erradicar o PT e acabar com os direitos dos trabalhadores. Para denunciar essa tal conspiração, os petistas resolveram colocar a tropa na rua, prejudicando principalmente os trabalhadores que eles dizem defender.

O movimento de ontem, chamado de Dia Nacional de Greves e Paralisações, foi liderado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pela Frente Povo Sem Medo, pela Frente Brasil Popular e outros tantos grupelhos inconformados com a democracia. Sem representarem nada além de seus chefetes e privados do acesso às tetas estatais em que mamaram durante os anos de bonança lulopetista, eles investem na confusão. Apresentam-se como defensores dos trabalhadores e atribuem ao governo Temer a pretensão de fazer o ajuste fiscal à custa dos mais pobres, o que tornaria legítimo o movimento paredista.

No entanto, como os eleitores deixaram claro nas urnas, essa patranha não cola mais. Mesmo os antigos simpatizantes do PT perceberam que a atual aflição dos trabalhadores resultou da funesta experiência desse partido no poder federal, replicada em maior ou menor grau em quase todos os Estados. Foi o gasto público irresponsável que condenou o País à recessão, ao desemprego e, pior, à falta de perspectiva. O mínimo a fazer, como esperam todos aqueles que têm de trabalhar para viver, é interromper essa sangria e recuperar as contas públicas, de cujo equilíbrio dependem a manutenção dos serviços essenciais para os mais pobres e a retomada da geração de empregos. E, não menos importante, é também obrigação dos governos, em todos os níveis, não permitir que os derrotados nas urnas se tornem senhores das ruas.
 

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  • Alexandre Garcia
  • 12 Novembro 2016



Quando eu era um dos diretores da União Cachoeirense de Estudantes, tinha 15 anos e cursava o científico, pensava que o mundo girava em torno de nós, jovens, alegres e estudantes. Quando presidi o Centro Acadêmico da Faculdade de Comunicação Social da PUC/RS, já com 28 anos, pensava diferente. Aos 15, valia o “querer é poder”; aos 28, percebia que “poder é saber”. No meio do caminho, havia feito a cobertura da Revolução Cubana, pelo rádio, e ainda pensava que Guevara fosse um herói, e não um assassino frio e covarde. Fazia poesias exaltando o “Che” e Dom Hélder. Depois fui descobrindo a realidade dos personagens e suas idéias. Quando jovem, a gente se engana fácil ou é enganado com facilidade pela pouca distância que se tem entre o pensar e o agir.

Por isso compreendo essa garotada que se jogou na aventura de invadir escolas para impedir o ENEM, a PEC de limitação de despesas do governo federal e a reforma do ensino médio. Não impediram o ENEM, um sucesso com quase 6 milhões de comparecimento às provas; a emenda dos gastos vai ser aprovada no Senado e o ensino médio vai ser logo reformado, depois de 18 anos de lenta discussão. Compreendo que acreditem nas estórias contadas por professores sindicalizados - que, por sua vez já as ouviram de terceiros, impregnadas de fé religiosa em idéias sociais e políticas que fracassaram em todos os quadrantes do mundo. É o mecanismo da sublimação, descrito por Freud. Frustraram-se na sua ideologia e criam um sonho, uma irrealidade que, para ter a aparência de real, transmitem-na para os alunos, para mentes disponíveis, ainda com fracos mecanismos de censura.

Compreendendo os que estão na idade adolescente por que já passei. Mas fico na obrigação de alertar-lhes que já estão entrando no tempo do amadurecimento, de pensar por si próprios, serem céticos, submeterem qualquer tipo de catequese à luz da razão. Ou serão manipulados e podem ser conduzidos a erros que prejudicam os outros. O mal que se faz para si pode atingir outros e aí se torna um mal maior. No ENEM, 271 mil inscritos foram prejudicados por invasões de locais onde fariam as provas. A transferência do exame para início de dezembro vai custar 15 milhões a mais para os contribuintes, que são aqueles que trabalham, que compram, que recolhem impostos. O professores sindicalistas que manipularam seus alunos e os partidos políticos que se aproveitaram das jovens mentes idealistas e sonhadoras, precisam ser recebidos com filtros da razão e desconfiança. Sem provas, é só fé. Já vimos esse filme, por exemplo, na Alemanha nazista.

Na Universidade de Brasília, o professor de algoritmo e programação de computador, na Engenharia da Computação, ao encontrar a sala de aula tomada por meia dúzia de invasores, transferiu a aula para o lado de fora sob “os portais cobertos do Liceu, de Aristóteles”. Em plena aula com 25 alunos, o local foi invadido pelos mesmos ocupantes da sala, que arrancaram das tomadas os computadores da aula. Nada mais parecido com a Juventude Hitlerista de 1939. Os agressores alegaram que em democracia têm o direito de se manifestar. Não sabem que Democracia é a vontade da maioria que respeita a minoria; não a vontade da minoria que desrespeita a maioria.

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  • Giulio Meotti
  • 11 Novembro 2016

 

(Reproduzido a partir do midiasemmascara.org)

Amazon, o maior portal de compras do mundo, vende muitas fantasias de Halloween. Uma das novidades de 2016 é a "Burca Sexy", manto típico obscurantista que os talibãs e o Estado Islâmico impõem às mulheres. Mas a burca sexy, que na Amazon UK, foi lançada a £18,99, não durou muito no portal.

O colosso comercial de Jeff Bezos removeu o item do website, depois que a Amazon foi inundada com acusações de "racismo" e "islamofobia" por comercializar uma vestimenta islâmica com o rosto branco de uma modelo usando "um artigo de vestuário religioso para fins comerciais". "Vocês são nojentos, minha cultura não é moda feminina", salientaram muitos clientes da fé islâmica. Outros fizeram uso de um tom menos simpático: "sejam vocês quem forem, vocês devem temer Alá. Isto não é brincadeira".

O porta-voz da Amazon se pronunciou de imediato: "todos os vendedores no mercado devem seguir nossas diretrizes de vendas e aqueles que não as acatarem estarão sujeitos a tomada de sérias providências, incluindo possibilidade da remoção de nossa lista de clientes. O produto em questão não está mais disponível ao público".

De modo que essa paródia do símbolo global da opressão feminina de Halloween foi censurada. Isto porque os véus islâmicos contradizem os valores ocidentais de liberdade, igualdade e dignidade humana de forma tão abrangente que essa mentalidade progressista relativista defende esses véus islâmicos, como o faz com o burquíni, de forma resoluta.

Estamos aqui portanto diante do padrão de dois pesos e duas medidas. E quanto ao traje de Halloween da "Freira Sexy", traje este que zomba da Igreja Católica? Apesar dos protestos de um grande número de clientes católicos, a "Freira Sexy" continua à venda na Amazon. Neste caso não se trata de uma forma de "cristianofobia"? Além disso, a freira é uma figura religiosa, ao passo que a burca é uma mera tira de tecido.

Tomemos o The Guardian, o mais famoso jornal britânico da esquerda liberal. Quando os artistas do Pussy Riot colocaram em cena o show supostamente ofensivo de 3 minutos na Catedral do Cristo Salvador em Moscou, pelo qual dois dos três artistas preferiram ficar na prisão em vez de repudiar o texto (o terceiro pediu desculpas para evitar o xilindró), o jornal os defendeu como "pura poesia de protesto." Quando o grupo político PEGIDA conclamou a realização de protestos contra a islamização da Alemanha, o mesmo jornal o detonou como "um vampiro que deve ser morto." O mesmo padrão de dois pesos e duas medidas também emergiu durante a briga em torno da construção de uma Mesquita perto do Marco Zero, quando a mídia de esquerda tomou partido da comunidade muçulmana.

Em janeiro de 2006, o mais famoso cartunista da Noruega, Finn Graff, anunciou que estava se autocensurando em relação a Maomé. Graff nunca teve problemas em fazer brincadeiras com os cristãos, os quais ele retratou vestidos com camisas marrons e suásticas. Graff também desenhou uma série de representações gráficas controversas contra Israel, uma delas retratando o primeiro-ministro israelense Menachem Begin como comandante de um campo de concentração nazista.

O mesmo aconteceu com o cineasta alemão-americano Roland Emmerich, diretor de muitos filmes de catástrofes. Ele abandonou um projeto de destruir o local mais sagrado do Islã na tela de cinema por medo de atrair contra si uma fatwa (decreto religioso) decretando sua morte. Em seu filme, "2012", Emmerich planejava demolir a Caaba, a icônica estrutura em forma de cubo na Grande Mesquita de Meca. "É perfeitamente aceitável detonar símbolos cristãos, mas se fizer o mesmo com um símbolo árabe, a consequência será uma fatwa", ressaltou Emmerich. Pelo menos ele foi sincero.

Após o massacre da maioria do staff da revista satírica francesa Charlie Hebdo, todos os principais jornais liberais da esquerda Ocidental, redes de televisão e agências de fotojornalismo, começando com os "Big Three" (MSNBC, CNN e AP), que competiam entre si para justificar a decisão vergonhosa de censurar a capa da Charlie Hebdo, na qual o profeta islâmico Maomé diz "está tudo perdoado." A CNN emitiu um comunicado dizendo que a reprodução da capa poderia ofender "as suscetibilidades do público muçulmano". Um ano mais tarde, quando o Charlie Hebdo publicou uma nova capa, representando um judeu-cristão "assassino de Deus" em vez do profeta islâmico, a CNN a reproduziu.

Em 2015, a BBC descreveu a capa da Charlie Hebdo sem mostrá-la, a rede britânica não repetiu aquela forma de apresentação um ano mais tarde, quando a Charlie Hebdo lançou a nova capa anticristã. O mesmo padrão de dois pesos e duas medidas foi adotado pelo jornal conservador britânico, Daily Telegraph,que cortou a capa com a caricatura de Maomé, mas publicou a outra, com o Deus de Abraão.

Em 2015 a Associated Press também censurou as charges islâmicas da Charlie Hebdo. O motivo? "Deliberadamente afrontoso." Em 2016 a agência não teve nenhum problema em mostrar a nova capa retratando não Maomé e sim o Deus judaico-cristão.

Esse duplo padrão moral da elite de esquerda também apareceu no New York Times, que em nome do "respeito" em relação à fé muçulmana censurou as caricaturas de Maomé da Charlie Hebdo - para depois decidir, em total desrespeito, que a Gray Lady (The New York Times) poderia e deveria publicar a obra "Eggs Benedict" de Nikki Johnson, exibida no Milwaukee Art Museum, na qual preservativos de diversas cores formam o rosto do Papa Bento XVI.

O "Califa" do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi, ridicularizado pela revista Charlie Hebdo, desencadeou a autocensura por causa do "discurso de incitamento ao ódio," ao passo que o trabalho de Chris Ofili "A Santa Virgem Maria," na qual a mãe de Jesus é coberta de fezes e imagens de órgãos genitais, foi defendido pelo New York Times como "liberdade de expressão". Isso significa que algumas religiões são mais iguais do que outras?

Se um imã protesta veementemente contra algo, a elite de esquerda sempre apoia a falsa acusação de "islamofobia". Se um protesto pacífico é liderado por um bispo católico, a mesma elite invariavelmente o rejeita em nome da "liberdade de expressão".

Esqueça a "Burca Sexy"". Na noite de Halloween, somente a "Freira Sexy" estará disponível, enquanto o "Califa" Baghdadi poderá estuprar suas escravas sexuais yazidis e cristãs com total impunidade.

  • Giulio Meotti, editor cultural do diário Il Foglio, é jornalista e escritor italiano.
  • Publicado no site do Gatestone Institute.
  • Tradução: Joseph Skilnik

 

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  • Murillo de Aragão
  • 09 Novembro 2016

 

A tripla derrota do PT – na gestão econômica, no discurso ideológico e nas eleições municipais – empurrou o partido para o isolamento. Restou-lhe a guerrilha contra duas importantes medidas de ajuste fiscal que o governo Temer busca implementar: a PEC do Teto dos Gastos e a MP da reforma do ensino médio.

Sem propostas alternativas, o partido, seus aliados e seus braços de agitação, situados hoje principalmente no movimento estudantil, dedicam-se a criticar sistematicamente a PEC 55 e a MP 746. A tentativa de desmoralizar tais medidas tem sido feita a partir dos seguintes fronts: campanha sistemática pela internet, discursos no Congresso – nos plenários e nas audiências públicas – e ações de invasão de escolas por estudantes, o que a esquerda chama de “ocupação” com o intuito de glamourizá-las. A soma desses ingredientes fornece à mídia, sempre carente de novidades, uma pauta dinâmica que gera imagens dramáticas para os telejornais, passando a ideia ao telespectador de que estamos diante de um evento com uma dimensão maior do que, de fato, tem.

As ocupações de escolas, que chegaram a mais de 1.150 em todo o país no início do mês, já atrapalharam duas agendas nacionais de grande importância: as eleições municipais e as provas do Enem, uma vez que impediram o uso de uma série de prédios públicos.

Quando se desce ao detalhe do conteúdo das críticas, constata-se, no entanto, que os argumentos do PT são quase inexistentes. Mal comparando, a legenda adota a lógica do candidato Donald Trump nos Estados Unidos: cataloga tudo o que é Hillary de “bad, bad, bad” e promete fazer “great, great, great” se for eleito. Quem ler com atenção ou escutar direito não encontrará nem argumentos, nem sugestões. Não encontrará nada.

Esse tipo de ilusionismo retórico sempre foi a marca registrada do PT, que, no passado, não assinou o texto da nova Constituição, foi contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, não apoiou nem Itamar Franco, nem o Plano Real.

O caráter das duas propostas é objetivo, e seu debate, antigo. O último ministro da Fazenda do governo Dilma, Nelson Barbosa, tinha pronto o esboço de um plano para pôr em prática uma radical compressão dos gastos públicos. A presidente suprimiu R$ 11 bilhões da educação quando o slogan de sua gestão era “Brasil, pátria educadora”.

É claro que o corte aviado pelo atual ministro da pasta, Henrique Meirelles, é um remédio drástico, mas foi o PT que deixou o paciente na UTI. Além disso, é possível reacomodar as despesas dentro do teto alterando-se as cifras dos ministérios e de certos setores para aumentar a fatia de funções essenciais, como saúde e educação.

Segundo “O Globo”, mesmo que a reforma da Previdência seja aprovada pelo Congresso no ano que vem, como espera o Planalto, o governo terá de cortar R$ 300 bilhões em outras despesas nos próximos dez anos.

No caso da reforma do ensino médio, ataca-se matéria que está na pauta há 20 anos, jamais abordada pelo PT – que focou a universidade – e que diz respeito a uma das maiores carências do país. O ensino médio brasileiro é um dos mais atrasados do mundo em conteúdo, métodos e equipamentos. Sobre a reforma, a maioria está de acordo num ponto: seu maior mérito é ampliar as oportunidades para todos.

Nos dois casos – corte de gastos e ensino médio –, há amplo espaço para aprimorar os textos originais, no lugar de recusá-los na íntegra sob o mantra “retira da pauta porque é MP”. Fator determinante é que o governo Temer tem os votos para aprovar as duas medidas, com ou sem oposição.

 

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  • Flávio Gordon
  • 07 Novembro 2016

 

(Publicado originalmente em sensoincomum.org)

"O PT nunca foi de esquerda" - A esquerda, agora, tenta atribuir à direita os resultados catastróficos de suas ideias e práticas.

As eleições municipais de 2016 no Brasil sinalizaram um evidente enfraquecimento da esquerda. Significativo quanto a isso foi o colapso eleitoral do PT, que, no segundo turno, foi derrotado em todas as capitais onde disputava prefeitura, inclusive na região que foi o berço do partido – o ABC paulista.

Diante da perda de poder, e quebrada a hegemonia com a qual se acostumara desde os anos 1960 (como já assinalara à época Roberto Schwarz), a esquerda brasileira, com notável capacidade de resposta, já se articula como no passado em torno de seu esporte predileto: a auto-crítica. Mas que o leitor não se deixe confundir por homonímias. No vocabulário esquerdista, a expressão tem um significado bem específico, distinto daquele, habitual e senso-comum, que envolve noções como arrependimento moral, culpa, peso na consciência etc.

Desprezando aquele conjunto de idéias, expressões do que Trotsky ridicularizou como “catecismo burguês” – enfatizando suas origens cristãs –, a esquerda entrega-se à auto-crítica num único e exclusivo sentido, um sentido, por assim dizer, metodológico, jamais ético. Tudo o que busca avaliar são as razões de sua perda de poder.

Eis o critério orientador da auto-crítica de esquerda: o poder. Ter o seu poder político limitado é a única coisa capaz de revolver o espírito do esquerdista a ponto de nele suscitar um simulacro de indignação moral sincera, ainda que pervertida. Nada poderia exemplificá-lo melhor que as maquiavélicas palavras de Gramsci acerca do moderno príncipe, isto é, o partido de esquerda:
“O moderno príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu desenvolvimento significa de fato que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, ou contrastá-lo”.

É nesse contexto que surgem agora dois movimentos simultâneos e complementares no seio do esquerdismo brasileiro, ambos os quais buscando juntar os cacos com vistas a uma futura retomada do poder.

O primeiro é aquele que poderíamos chamar de ortodoxia petista, representado intelectualmente por nomes como Marilena Chauí, Emir Sader, Renato Janine Ribeiro, André Singer, entre outros. Seu método é reafirmar obstinadamente, a despeito dos fatos, o caráter popular e democrático do projeto petista, cujo fracasso, portanto, deve ser todo posto na conta de uma ‘elite’ (termo que incluiria a maior parte da população brasileira, a oposição, a Polícia Federal, o Ministério Público, o STF e sabe-se lá mais o que) em tese refratária à ascensão social dos mais pobres.

É, em suma, a tese do golpe de 2016, veiculada numa série de novos livros conjunta e emergencialmente editados – o que revela ainda a força da extrema-esquerda no campo da circulação de idéias – com o fito exclusivo de emplacar a delirante narrativa dos vencidos.

O segundo, que poderíamos chamar de reformismo pós-PT, é usualmente representado por apóstatas do petismo (figuras como César Benjamin, Luiz Eduardo Soares, José de Souza Martins, entre outros), e seu argumento central, mais sorrateiro, consiste na afirmação de que o PT nunca foi de esquerda. Segundo essa perspectiva – reforçada recentemente pelo marxista italiano Antonio Negri (ver aqui) –, nunca se é de esquerda o bastante.

Trata-se do apelo à velha estratégia do “deturparam Marx” – pela qual a esquerda mundial procurou justificar os crimes contra a humanidade cometidos por regimes comunistas – ou, na formulação do filósofo Gilles Deleuze, “não há governo de esquerda” (ver aqui). A esquerda estaria sempre em oposição ao poder, não passando de uma idéia bonita, uma virtualidade jamais atualizada. Para quem não deseja assumir a responsabilidade pelas consequências de suas idéias, eis a receita ideal. A esquerda seria sempre pedra, jamais vidraça.

Embora pareçam divergir, os dois movimentos opõem-se apenas na superfície. Encontram-se, no máximo, em oposição dialética. Nos termos de uma clássica definição de György Lukács, dir-se-ia que são “momentos dialético-dinâmicos de um todo que, ele próprio, também é dialético-dinâmico”. Trata-se de uma divisão que apenas impulsiona a esquerda para mais perto de seus objetivos, sendo o primeiro deles, tradicionalmente, o livrar-se do peso de seus fracassos e crimes.

Este texto é uma tentativa retardatária de resposta a um artigo bastante representativo do reformismo pós-PT, publicado já há quase um ano, e pouco notado no campo liberal-conservador. Intitulado “Por que a esquerda tem mais razões do que a direita para ser a favor do impedimento de Dilma e da punição de Lula?”, seu autor é o economista Reinaldo Gonçalves, professor titular da UFRJ.

O artigo de Gonçalves, um dos raros esquerdistas a se manifestar à época favoravelmente ao impeachment de Dilma Rousseff, tem como objetivo purificar a esquerda brasileira, apagando para isso os seus laços de cumplicidade com o falido projeto lulo-petista. A estratégia tem tudo para dar certo, por conta do mau uso que, em geral, a classe falante brasileira faz dos conceitos de “esquerda” e “direita”.

Que o governo do PT não tenha sido de esquerda foi sugerido até mesmo pela experiente jornalista Dora Kramer (ver aqui). E não teria como ser de outro modo: quando se parte de um conceito meramente idealizado de esquerda – e num país como o nosso, carente nas últimas décadas de um pensamento conservador, esse conceito é adotado inclusive por anti-esquerdistas –, torna-se obviamente impossível apreender essa esquerda na realidade política.
De resto, devo dizer que concordo parcialmente com o diagnóstico geral do autor, por sinal muito bem exposto. E também, é claro, com o remédio então sugerido: impeachment da Dilma (já concretizado) e prisão de Lula (estamos todos no aguardo!). Mas, por partir de uma perspectiva intelectual e política diversa, eu não posso endossar a sua razão pragmática, que é fazer com que a esquerda reassuma, como se nada houvera acontecido, o controle das ruas e o monopólio sobre a interpretação dos acontecimentos, que ela recentemente perdeu – e, graças à internet, perdeu feio.
Reinaldo Gonçalves foi filiado ao PT durante 20 anos, tendo rompido com o partido em 2005, dizendo-se cada vez mais arrependido e envergonhado por essa longa filiação. Hoje, apesar de anti-petista, segue sendo um homem de esquerda (um social-democrata tendendo ao socialismo, parece-me).

Eu, que já fui de esquerda (de vertente mais soixante-huitardista que marxista), já há muito deixei de sê-lo. Poderia dizer-me de direita, mas com a condição de ressalvar: uma direita ainda politicamente inexpressiva no Brasil, e que, nos últimos anos apenas, começou a ganhar terreno na esfera cultural, posto que de maneira incipiente. Logo, a distância enunciativa, por assim dizer, entre mim e o autor, deve fatalmente produzir curtos-circuitos classificatórios e enganosas homonímias.

Adotarei aqui a perspectiva de um emergente pensamento neoconservador brasileiro, sem pretensão de representá-lo exaustivamente, é claro. Não falo em nome do conservadorismo nacional como um todo, tampouco ousarei defini-lo de forma precisa. Há gente mais gabaritada para fazê-lo. O que o leitor verá aqui é o meu entendimento particular do conservadorismo, e como ele serve de base para a minha crítica. Longe de encará-lo como uma doutrina passível de ser coerente e sinteticamente exposta, vejo-o mais como um antídoto anti-doutrinário, uma certa disposição do espírito.

Sem querer pregar apenas para convertidos, dirijo-me também a uma eventual esquerda republicana sobrevivente ao colapso do lulo-petismo, uma esquerda imaginária, livre do ranço totalitário e patrimonialista daquele modelo. De boa vontade, tomo o economista Reinaldo Gonçalves por representante metonímico dessa nova esquerda virtual. Mas observo que, apesar de sua manifesta intenção de abertura intelectual e renovação, parece-me que também essa variante da esquerda continua refém de certos vícios adquiridos, os quais, se não corrigidos, tendem a inviabilizar um debate político honesto. Eis o cerne do meu comentário.

Dos procedimentos adotados por Gonçalves com vistas à obtenção de precisão conceitual acerca da dicotomia esquerda versus direita, eu não faria qualquer objeção relevante ao primeiro – “hipóteses simplificadoras”, que circunscrevem a discussão aos limites da democracia capitalista – e terceiro – “tipologia flexível”, que determina como campos políticos a esquerda, a centro-esquerda, o centro, o centro-direita e a direita. Já quanto ao segundo, que o autor denomina “marcadores”, gostaria de pontuar algumas coisas.
Os principais marcadores utilizados pelo autor são o mercado e o Estado. Essas instituições, diz ele, “são fundamentais para se configurar os campos da esquerda e da direita”. Digo eu, no entanto, que essa é uma meia-verdade.
Sim. É fato que a oposição mercado versus Estado define basicamente a divergência entre liberais e esquerdistas (social-democratas e/ou socialistas). O problema começa quando o autor opta por tratar liberais e conservadores como um bloco homogêneo (“direita”), incorrendo num equívoco teórico típico da esquerda, que, de partida, distorce consideravelmente o debate político. O ponto é que a oposição “Estado vs. mercado” não contempla exatamente o campo conservador, para o qual seria preciso inserir aí, no mínimo, dois outros marcadores fundamentais: a família e a comunidade (moral e/ou religiosa).
E então teríamos os conservadores abrindo duas frentes de divergência, uma com a esquerda (Estadovs. família ou comunidade), outra com os liberais (mercado vs. família ou comunidade). É um erro conceitual equacionar conservadorismo com mercado auto-regulado, como propõe o quadro 1 do artigo de Gonçalves:

Porque, para o conservadorismo (e aqui penso sobretudo em sua vertente anglo-americana), o mercado também deve ser, de certa maneira, ‘regulado’. Não, é claro, pelo Estado – que, de acordo com certa filosofia política conservadora (ver, por exemplo, a de Bertrand de Jouvenel), tende ‘naturalmente’ a um temível agigantamento –, mas pelos valores morais e religiosos compartilhados pela comunidade, e sedimentados no seio da família.


E sim, a família aqui é a família monogâmica tradicional. Embora o conservador possa reconhecer a legitimidade (civil, legal, afetiva) dos novos arranjos familiares surgidos nas sociedades contemporâneas, ele repudia o combate ideológico (revolucionário) contra o conceito de família tradicional, que resulta em aberrações politicamente corretas tais como, entre outras, a abolição do Dia dos Pais e do Dia das Mães em algumas escolas contemporâneas. O conservador tem apego à realidade acima das idéias, e repugna-lhe a hipótese de supressão de porções da realidade e de tradições histórico-culturais na base da canetada de algum engenheiro social auto-proclamado progressista.

Os conservadores são, sem dúvida, favoráveis ao capitalismo e à liberdade de mercado. Mas a liberdade não deve ser absoluta, não podendo o capitalismo estar dissociado da consolidação cultural de uma determinada antropologia filosófica, ou concepção de homem, notadamente a judaico-cristã. Sem isso, pensa o conservador, corre-se o risco de descambarmos para as formas mais cruas e selvagens de materialismo e consumismo hedonista, justamente daquele tipo previsto por Marx em sua profecia auto-realizável.

Uma das grandes brigas entre conservadores e ultra-liberais (por vezes chamados “libertários”) é que, para os primeiros, nem tudo tem preço e nem tudo passa pela liberdade individual de escolha. As escolhas dos indivíduos devem basear-se num senso de responsabilidade para com o próximo, sendo inseparáveis de um correto discernimento moral.

Acerca da divergência entre a defesa liberal da “liberdade” e o apreço conservador pela “ordem” (condição, segundo essa filosofia, tanto das liberdades concretas quanto da propriedade privada), recomendo o primeiro capítulo de O Que é Conservadorismo?, do filósofo britânico Roger Scruton, recentemente lançado no Brasil pela É Realizações. O filósofo Olavo de Carvalho também escreveu pelo menos três artigos muito elucidativos sobre o tema (ver aqui, aqui e aqui).

Penso que qualquer conservador endossaria a caracterização jocosa de Gonçalves acerca dos “meninos afoitos da ortodoxia”, isto é, os liberais. Os conservadores, se são fundamentalmente anti-coletivistas, tampouco endossam aquele individualismo de cunho utilitarista quase sempre subjacente ao pensamento liberal. Para o conservador, a liberdade não pode ser um princípio auto-fundante, caso em que degenerar-se-ia no seu exato contrário: a liberdade de escravizar, por exemplo, incluindo a auto-escravização por apetites irrefreados.

A liberdade deve vir temperada com a ordem, não apenas civil e estatal, mas, sobretudo, a ordem interna da alma, conceito tradicional da antropologia filosófica clássica e judaico-cristã, que depois caiu em desuso com a emergência da antropologia filosófica moderna (iluminista, materialista, secularista e imanentista). “A pólis é o homem escrito em letras maiúsculas”, ensina Platão na República (368 c-d), lição que Eric Voegelin, expoente do conservadorismo no século XX, chamou de princípio antropológico. Esse me parece um axioma da filosofia conservadora.

John Adams, segundo presidente americano, e o mais conservador dos “Founding Fathers”, ilustrou-o bem, ao escrever em 1798 sobre a Constituição Americana:

“Não há governos capazes de lidar com paixões humanas desenfreadas, imunes à moralidade e à religião. A avareza, a ambição, o desejo de vingança ou a luxúria poderiam romper as sólidas amarras de nossa Constituição qual uma baleia através de uma rede de pesca. A nossa Constituição foi feita exclusivamente para um povo moral e religioso. Ela é totalmente inadequada para qualquer outro”.

Trocando em miúdos, Adams está dizendo que governos e códigos de leis não são formas puras e autônomas, aplicáveis sobre qualquer “substância” social. O mesmo vale para sistemas econômicos, acrescento eu. Nessa perspectiva, uma comunidade moralmente sã e ordenada, formada por homens maduros e responsáveis (spoudaios, na terminologia de Aristóteles), é a precondição essencial para o bom funcionamento de sistemas políticos e econômicos. Há aí a intuição fundamental de que, aquém da política e do progresso tecnocientífico, existe uma ordem moral permanente e eterna que preside as mudanças sociais.

É o apego fundamental àquela ordem – que Edmund Burke chamava de “o contrato da sociedade eterna”, G. K. Chesterton, de “democracia dos mortos”, e T. S. Eliot, de “estrato pré-político” – que gera o tradicional ceticismo conservador em face da ação política. Não que ele não reconheça a sua importância, assim como a importância crucial da autoridade, mas ele tende a olhar a política de maneira pragmática e circunstancial, jamais doutrinária e fundada sobre princípios abstratos ou declarações grandiloquentes de intenções (“justiça”, “liberdade”, “igualdade”, “um país sem miséria” etc.). Contra a política ideológica, a política conservadora é a política da prudência, para citar o conhecido título de Russell Kirk, um dos maiores conservadores americanos do século XX.

Na famosa definição de Michael Oakeshott:
“Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o facto ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica. As relações e lealdades familiares serão preferíveis ao fascínio de vínculos mais proveitosos; comprar e expandir será menos importante que conservar, cultivar e desfrutar; a dor da perda será maior que a excitação da novidade ou da promessa. É ser igual ao nosso próprio destino, é viver ao nível dos meios, contentar-se com a necessidade de maior perfeição pessoal como com as circunstâncias que nos rodeiam”.

Portanto, é impossível falar de conservadorismo sem levar em conta a importância da dimensão religiosa para essa filosofia. Nesse sentido, liberais e esquerdistas estão bem mais próximos entre si, ambos herdeiros confessos, mais ou menos orgulhosos, da antropologia filosófica secularista e da filosofia hegeliana da história.

A tradição conservadora, por outro lado, vê nestas antropologia e filosofia da história bases nocivas para a vida política. (O leitor encontrará uma boa exposição crítica da antropologia filosófica secularista, do ponto de vista conservador, no livro O Drama do Humanismo Ateísta, do filósofo jesuíta Henri de Lubac).

Com tudo isso, não pretendo dizer que todo conservador seja, necessariamente, religioso. Há conservadores agnósticos e ateus tanto quanto religiosos. O britânico Theodore Dalrymple, por exemplo, que esteve recentemente no Brasil, é um bom representante do conservadorismo secular. Mas é difícil encontrar conservadores que não atentem para a importância do resgate dos valores clássicos e judaico-cristãos como força cultural e civilizacional. Não só judaico-cristãos, a bem da verdade.

Muitos conservadores dirigiram sua sede de eternidade e transcendência a outros sistemas filosóficos ou religiosos. Sabe-se que o católico T. S. Eliot, por exemplo, explorou a fundo a metafísica hindu e a filosofia budista. Sem falar em toda a tradição perenialista de René Guénon, Ananda Coomaraswamy, Frithjof Schuon ou Julius Evola.

É importante enfatizar que, ao contrário dos liberais e dos esquerdistas, o conservador entende a religião, não como questão meramente privada, mas como uma conquista cultural que deve influir na esfera pública. Isso não se confunde, em hipótese alguma, com negar a laicidade do Estado. Trata-se precisamente do contrário. O conservador crê na separação essencial entre Estado e sociedade civil, e rejeita qualquer mistura entre religião e política, sobretudo aquela que, seguindo a profecia (ou maldição) de Ludwig Feuerbach no século XIX, resultaria na atribuição de um caráter sagrado à ação política.

O conservador afirma, aliás, e com razão, que a separação entre religião e política é uma herança da matriz cultural cristã, virtualmente inaplicável fora dela. A política como a “arte do possível” (sensuRussell Kirk) seria um antídodo para toda sorte de “messianismo político” (sensu Jacob L. Talmon).

Enfim, depois dessa resumida (muitos dirão grosseira) apresentação da direita conservadora, que a análise de Gonçalves, restrita à problemática econômica, não teria como contemplar, gostaria de analisar alguns trechos pontuais de seu artigo que me parecem substancialmente equivocados. Vou numerá-los e comentá-los pontualmente.

1) “A direita rotula o governo do PT como sendo de esquerda porque adota o programa Bolsa Família”.

Não é verdade. Qualquer direitista minimamente letrado sabe aquilo que o próprio autor informa no texto: que programas do tipo “Bolsa-Família” são uma invenção liberal, tendo brotado da cachola de homens como Milton Friedman. Portanto, não é isso que faz com que o PT seja de esquerda. Políticas assistencialistas podem ser – e são – utilizadas por governos de direita, de esquerda e de centro, de maneira mais ou menos eleitoreira, mais ou menos viciosa.

A crítica específica ao Bolsa-Família do PT volta-se ao seu uso escancaradamente – dir-se-ia, grotescamente – eleitoreiro, com emprego de chantagem e ameaça aos beneficiados que não votem no partido, e com uso abusivo da máquina pública nesse mister. Trata-se, sobretudo, de denunciar a ausência de qualquer política estável de melhoria de renda, que pudesse pouco a pouco tornar autônomo o beneficiário de programas sociais.

O PT, contrariando todo o bom-senso, jactou-se do aumento da quantidade de dependentes dos programas, quando um sinal de desenvolvimento do país seria o número de pessoas que já não precisassem deles. “O melhor programa social é um emprego”, bem dizia Ronald Reagan.

Logo, ninguém diz que o PT é de esquerda por causa do Bolsa-Família. O PT é de esquerda por toda a sua cultura política, pelo simbolismo que orienta os seus militantes, pela biografia de seus quadros, as suas alianças objetivas com regimes socialistas etc. Poder-se-ia, enfim, citar inúmeras evidências do esquerdismo do PT, recorrendo sobretudo aos documentos do partido e às idéias defendidas por seus adeptos, mas isso tomaria muito espaço neste artigo. Ademais, o ônus da prova cabe a quem defende a excêntrica tese do não-esquerdismo do PT.

A situação é, de fato, bem diversa daquela descrita por Gonçalves. Foi a esquerda que, agora, com o barco naufragando, decidiu rotular o PT como sendo de “direita”, apenas porque o partido seguiu por um tempo uma agenda relativamente neo-liberal (categoria distorcida e mistificada pela esquerda, como bem explica o diplomata Paulo Roberto de Almeida neste artigo). Por ter governado em conluio com os grandes bancos e as grandes empreiteiras, o PT vem sendo chamado de “direita” pela esquerda não-petista, como se a aliança entre partidos socialistas e banqueiros fosse coisa inédita e intrinsecamente contraditória. Ora, tal contradição só existe nas enciclopédias, dicionários e manuais de auto-convencimento da esquerda.

Quem conhece, entre outros, os trabalhos do historiador britânico Anthony Sutton, em especial os livros The Best Enemy Money Can Buy e Wall Street and the Bolshevik Revolution, sabe que a revolução bolchevique de 1917 foi, em parte, patrocinada por grandes financistas de Wall Street interessados na queda do czar por motivos mercadológicos. Há fortes indícios de que a própria viagem de Trotsky de Nova York até a Rússia tenha sido pessoalmente bancada por Jacob Schiff, do banco Kuhn, Loeb & Co. Em 1911, o cartunista Robert Minor, ele próprio bolchevique, publicou no St. Louis Dispatch um cartoon significativo a esse respeito. Nele, Karl Marx em pessoa, chegando em Wall Street com um livro intitulado “Socialismo” embaixo do braço, é saudado com entusiasmo por financistas tais como John D. Rockefeller, J. P. Morgan, John D. Ryan e George W. Perkins, além de Teddy Roosevelt.


A simbiose, em tese paradoxal, entre o grande capital e o comunismo fora notada também pelo romancista britânico H. G. Wells em seu livro Rússia nas Sombras: “O grande negócio não é de forma alguma antipático ao comunismo. Quanto mais ele cresce, mais se aproxima do coletivismo”.

Um dos sinais mais evidentes disso talvez seja o artigo elogioso que, em 10 de agosto de 1973, David Rockefeller dedicou a Mao Tse-tung no New York Times, dizendo-se particularmente bem impressionado com o “senso de harmonia nacional” e o sucesso da revolução em “não apenas produzir uma administração mais eficiente e dedicada, como também incutir na população um moral elevado e uma comunhão de propósitos” (sic).

O tipo de capitalismo monopolista de Estado praticado pelo PT e os seus “companheiros” foi muito similar ao que vicejava clandestinamente na própria URSS, dando origem efetivamente a duas “classes” distintas: de um lado, a população comum, vítima da catástrofe econômica do sistema e refém da escassez de bens e produtos; de outro, a Nomenklatura, desfrutando de um rico e vasto mercado negro, e consumindo os melhores e mais finos produtos vindos do estrangeiro.

A situação é explicada em detalhes no livro URSS: The Corrupt Society – The Secret World of Soviet Capitalism, de Konstantin Simis. Criou-se na URSS dois mundos paralelos e incomunicáveis: o mundo rico e luxuoso da elite partidária, do governo, dos burocratas e funcionários públicos (e, assim como no Brasil, todos ali queriam ser funcionários públicos!); e o mundo famélico e miserável da população ordinária. Nada era comum aos dois mundos: havia o sabonete da elite dirigente (macio e cremoso) e o sabonete comum (seco e sem espuma); o pente dos burocratas (de matéria nobre e resistente) e o pente do resto (que quebrava em uma semana); o tecido dos apparatchik (finos e importados) e o tecido das demais pessoas (roto e áspero), e assim com toda e qualquer mercadoria.

Aquele tipo de capitalismo oligárquico e concentrado é pura esquerda. Não se trata de nenhuma invenção petista, muito menos de uma guinada à direita. Ele é resultado da própria lógica da esquerda revolucionária: para se distribuir igualmente a riqueza, é preciso um poder gigantesco que se erga acima das classes existentes e, na base da força, tome a riqueza de uma e a transfira para a outra. Esse poder gigantesco concentra-se fatalmente no partido.

Como já explicou Olavo de Carvalho, a “ditadura do proletariado” é, pois, uma impossibilidade prática; o que existe e existiu em todos os regimes socialistas foi a ditadura do partido. Para se manter no poder e realizar o objetivo declarado no início da revolução, o partido precisa concentrá-lo cada vez mais, a fim de vencer as forças contra-revolucionárias (ou “reacionárias”) – em primeiro lugar, as externas; e, num segundo momento, as de dentro do partido, quando chega então o momento da depuração, dos expurgos, dos rituais de auto-humilhação – em suma, a especialidade de Stalin.

Para o exercício do poder – como já explicou, entre outros, Napoleão Bonaparte –, todo partido precisa de três coisas fundamentais: dinheiro, dinheiro e dinheiro. Agora, qual o único sistema econômico no mundo a criar dinheiro? Resposta: o capitalista. Só ele. Não existe economia socialista. Isso é uma contradição em termos. O próprio Lênin reconheceu a impossibilidade prática de uma economia inteiramente estatizada. E Ludwig von Mises, como Gonçalves deve saber melhor que eu, demonstrou-o teoricamente de maneira inapelável na década de 1920. Logo, mesmo na URSS, sempre houve um misto de economia estatal e economia privada. O fato de comunistas se renderem, a contragosto, à imperiosa necessidade de alguma economia de mercado não os transforma automaticamente em “direitistas”.

Logo, o fato de que o PT tenha feito o jogo dos bancos e das empreiteiras não significa nenhuma concessão à direita ou ao liberalismo. Tanto quanto qualquer partido totalitário, o PT precisava de dinheiro para a sua política de aparelhamento e compra de consciências. Ademais, coube a ele, via empréstimos sigilosos do BNDES, o papel de grande financiador dos regimes socialistas e bolivarianos vizinhos, parceiros de Foro de São Paulo.

O partido não podia se dar ao luxo de quebrar o país cedo demais, venezuelanizando-o de saída. Havia todo um esquema continental de poder que cabia ao PT, com o dinheiro tungado do contribuinte brasileiro, bancar. Seria tão absurdo afirmar que, ao seguir o modelo econômico mezzo liberal (que Gonçalves chama de “liberal periférico”), o PT inclinou-se à direita, quanto dizer que Lênin virou direitista ao lançar a sua Nova Política Econômica.

2) “Certamente, os marcos do Lulismo agridem mais os valores e interesses da esquerda do que valores e os interesses da direita”.

Talvez o lulismo agrida parte da esquerda brasileira, mas é preciso não esquecer um pequeno detalhe: o lulismo é de esquerda. Não é justo empurrar esse Mateus para o colo da direita. Quem o pariu que o embale! Não há porque acreditar que ele seja mais nocivo à esquerda do que à direita.

Durante muito tempo, a esquerda amparou o lulopetismo, sendo a direita (digo, uns poucos gatos-pingados auto-identificados como conservadores ou liberais) o único vetor de crítica àquele projeto. Quando teve chance de demonizar os críticos de direita do Lula e do PT, tachando-os de “elitistas”, “preconceituosos”, “racistas contra nordestinos” etc., a esquerda brasileira em peso nunca se vexou de fazê-lo.

Parte dela pode ter rompido com o PT, uns há mais tempo, outros há menos. Mas foi a direita a pioneira no combate frontal ao esquema lulopetista, e, portanto, este continua sendo-lhe mais anátema do que o é para a esquerda. Na luta política, como em tudo o mais, antiguidade é posto. A esquerda deve entrar na fila do anti-petismo. Afinal, como questionaria um grande filósofo popular “Chegou agora e já quer sentar na janelinha?”.

O que a esquerda brasileira anti-petista tenta agora fazer com o PT é o mesmo que a esquerda ocidental pós-soviética tentou fazer com o bolchevismo: limpar-se nas máculas do próprio passado, ou seja, monopolizar oportunistamente a crítica ao petismo. Em La Grande Parade, seu grande livro sobre a estranha sobrevivência da utopia socialista após o fim da URSS, Jean-François Revel descreveu bem a estratégia:
“A esquerda não se equivoca jamais ou, quando muito, se equivoca apenas em relação a si própria, em seu próprio seio, de um modo indigno de ser discutido senão pelos pares que a compõem, jamais sob condições que pudessem levá-la a dar razão, ou mesmo a palavra, aos seus adversários”.

A esquerda no poder nunca é a “verdadeira” esquerda. A “verdadeira” esquerda é sempre aquela que anda virá a assumir o poder. Stálin foi o primeiro grande representante dessa “esquerda falsa” na qual a “esquerda verdadeira” tentou se limpar. E aqui vale lembrar que um esquerdista brasileiro como o Mino Carta já tentou, sem ruborizar, empurrá-lo para a direita. Depois de Stálin, a esquerda gritou: “Agora vai”. E o que veio foi Mao Tse-tung; depois, Fidel, Pol Pot, Ho Chi Minh, Hugo Chávez, todos com o mesmo resultado catastrófico… Hoje é o Lula quem faz as vezes de papel-higiênico, roto e esfarrapado, quando já no horizonte surgem os “novos” candidatos a ícones da “verdadeira” esquerda (Mujica? Bachelet? Pablo Iglesias Turrión? Tsipras? Bernie Sanders? Marcelo Freixo?).

Em resumo, tanto quanto os seus antecessores, Lula também não foi a “verdadeira” esquerda. Porque a “verdadeira” esquerda não se equivoca, não peca, não comete crimes. O equívoco, o pecado e o crime são atributos da “falsa” esquerda – ou seja, a direita. A “verdadeira” esquerda nunca pode ser julgada por parâmetros atuais, porque o seu projeto não está no presente, sendo indefinidamente adiado para um futuro desconhecido. A “verdadeira” esquerda só poderia governar o Paraíso. Cito Revel mais uma vez:
“Segundo essa argumentação, o horror das consequências provaria a excelência do princípio (…) Pois, ao se avaliar os zeladores de um modelo ideal, não são os atos que deveriam servir de critério, mas as intenções. No fundo, o reino do comunismo não é deste mundo, e seu fracasso aqui em baixo é imputado ao mundo, não ao comunismo enquanto conceito”.

A esquerda é como o marido traído: sempre a última a saber. O que Alain Besançon escreveu sobre o comunismo em A Infelicidade do Século vale para a esquerda em geral: “Cada experiência comunista é recomeçada na inocência”. Parte da esquerda nacional pretende agir agora como se nunca vira o Lula mais gordo. Mais um pouco e o homem vira ícone do conservadorismo…

Parece-me que Gonçalves tenta encapsular a crítica dentro do campo da esquerda, deslegitimando previamente toda oposição não-esquerdista ao PT. Ele busca aproximar o PT da direita a fim de isolar uma esquerda pura como portadora única da virtude política. Se é mesmo assim, como vimos, seria a milésima vez na história que a esquerda tenta a mesmíssima estratégia.

Não acho que Gonçalves o tenha feito por maquiavelismo, sequer mesmo intencionalmente, mas por puro vício de raciocínio. Como se sabe, é tradição da esquerda raciocinar dialeticamente, assumindo o controle tanto da tese quando da antítese, com vistas a uma síntese superior. Mas acho sinceramente que, dessa vez, a esquerda terá um pouco mais de dificuldade para impor tal narrativa, pois que já há um número suficiente de opinadores liberais e conservadores para contestá-la e refrescar a memória nacional.

Em política, não existem soluções definitivas e sínteses superiores. A política é um diálogo interminável num mesmo plano, uma dialética sem síntese, por assim dizer, exercício de convivência dos heterogênos e contrários. É um campo de perpétua coetaneidade, sem Aufhebung. A direita brasileira não vai entregar a antítese assim de bandeja ao adversário. Daqui em diante, não convém à esquerda querer superá-la. Será preciso, em vez disso, tolerá-la. Será preciso, enfim, negociar. E não seria essa a essência mesma da dinâmica política dentro de um estado democrático de direito?

3) “O apoio das forças políticas de centro e de direita para essa agenda não é razão para se tentar desqualificar ou rejeitar os protestos pacíficos, populares e democráticos. O argumento de que essa agenda é promovida pelos conservadores ou pela direita é, na melhor das hipóteses, um erro analítico que pode ser um erro histórico. A esquerda deve participar dos protestos”.

Falso. As três grandes manifestações populares de 2015, bem como a de março de 2016, simplesmente a maior da história nacional, foram, sim, promovidas por grupos e pessoas de tendência conservadora e liberal. Eu estive nas quatro ocorridas no Rio de Janeiro, em Copacabana. Conheço alguns dos organizadores e suas referências intelectuais e políticas. Muitos fazem parte dessa “nova direita” que ora começa a ganhar terreno no mercado editorial (basta a ver a lista de mais vendidos de não-ficção para conhecer-lhes os nomes) e na cultura de maneira mais ampla, ameaçando a histórica hegemonia cultural da esquerda. Eu vi in loco os cartazes dos manifestantes, ouvi seus gritos de guerra, senti o clima. As manifestações foram, sem dúvida, para além de anti-petistas, visivelmente anti-esquerdistas.
Convém lembrar que quase toda a esquerda brasileira, incluindo sua parcela mais crítica ao PT, jogou contra as manifestações, justamente por considerá-las de direita, como Gonçalves reconhece. De maneira quase unânime, a esquerda tentou antes de tudo esvaziá-las. Depois, fracassado esse objetivo, a estratégia foi desqualificá-las como coisa de “coxinha”, “elite branca”, “eleitores do Aécio”. Resta mais do que claro que as manifestações não partiram da elite, porque a elite do país (empreiteiras, bancos, Organizações Globo etc.) esteve com Dilma, em favor da “governabilidade”, até os últimos momentos.

As manifestações – como de hábito no mundo contemporâneo – foram coisa da classe média, a mais explorada por aquele capitalismo de compadrio que une o Estado e as mega-empresas. Suas pautas foram claramente conservadoras e liberais – “burguesas”, poder-se-ia dizer: defesa da constituição, dos valores republicanos, da isonomia, da ordem, da família, das cores nacionais, tendo sempre a rede-PT(PT, PCdoB, PSOL, UNE, CUT, MST, MTST, CNBB et caterva) como anátema.

A esquerda, se quisesse, poderia e deveria ter participado dos protestos. Mas, para isso, seria preciso ter a humildade de reconhecer que a sua agenda está desgastada, e que ela deve fazer um exame de consciência verdadeiro, respeitando a natureza das manifestações, sem tentar apropriar-se delas para fins particulares.

Afinal, ao lado dos pedidos de impeachment e da prisão do Lula, havia por todo o país centenas de cartazes com dizeres tais como “Olavo [de Carvalho] tem razão”, “Mais Mises, menos Marx”, “Abaixo o Foro de São Paulo” e “A nossa bandeira jamais será vermelha”. Não se viu nenhum cartaz em que se lesse “Zizek tem razão”, “Vladimir Safatle tem razão”, “Marcelo Freixo tem razão” e, muito menos, “Abaixo o capitalismo!”.

Embora eu desconfie que o seu poder de mobilização popular tenha se esgotado, a esquerda, repito, pode e deve voltar às ruas. Mas, ao longo dos próximos anos, ela terá que aprender a conviver com uma direita política emergente, que não tem qualquer relação com o regime militar, e contra a qual os clichês stalinistas habituais – “fascistas”, “elitistas”, “inimigos do povo” – serão impotentes. É uma direita com gente preparada, que tem lido e estudado muito, e que provavelmente conhece a esquerda mais do que esta conhece a direita. E, sobretudo, formada por intelectuais e aspirantes a intelectuais que desenvolvem suas atividades à margem da universidade, livres, portanto, de seus formalismos e sinecuras. Escrevendo, ademais, num português mais clássico, sem os maneirismos acadêmicos à la“penteadeira de velha” (na feliz expressão do poeta Bruno Tolentino), esses intelectuais da nova direita estão destinados a atingir um público bem mais vasto.

Dos anos 1960 para cá, a intelligentsia de esquerda optou por enfrentar o pensamento de direita mediante a difamação ou o boicote silencioso: isso ocorreu com Gustavo Corção, Roberto Campos, José Guilherme Merquior, Mário Ferreira dos Santos, José Osvaldo de Meira Penna, Nélson Rodrigues, Paulo Francis, Bruno Tolentino, Olavo de Carvalho e até mesmo, em alguma medida, com Gilberto Freyre. Em relação à tradição conservadora européia e americana, a coisa é ainda mais espantosa.

Em uma rápida consulta ao banco de teses da CAPES e do CNPq, eu pude constatar a quase ausência de referências aos maiores expoentes do pensamento conservador mundial: Irving Babbit, Richard M. Weaver, Erik von Kuehnelt-Leddihn, Eric Voegelin, Thomas Sowell, Eugen Rosenstock-Huessy, Theodore Dalrymple, Irving Kristol, John Kekes, Kenneth Minogue, Jean-François Revel, David Horowitz, Roger Kimball, Russell Kirk, Michael Oakeshott, Roger Scruton… Todos esses nomes, ou não constam, ou constam de maneira esporádica nos bancos de dados. É provável que a imensa maioria dos universitários brasileiros contemporâneos nunca tenha sequer ouvido o nome desses autores, quanto mais as suas idéias. Para a esquerda brasileira da Nova República, a “direita” é, em larga medida, uma fantasmagoria, um espantalho, um vetor dos próprios traumas e preconceitos históricos.

Saltará a esquerda brasileira para fora do trem-fantasma? Estará a esquerda pós-PT preparada para abandonar o modelo gramsciano de hegemonia cultural e ocupação de espaços? Estará ela disposta a um debate franco de idéias e propostas para o país, com um adversário real e auto-consciente? Saberá a esquerda nacional compreender a direita como substantivo, não apenas como adjetivo de desqualificação a priori? Abrirá mão a nova esquerda da monopolização das virtudes e da eterna postura acusatória? Aceitará disputar honrosamente com a direita um espaço no coração e nas mentes dos brasileiros?

Seria bom, mas eu duvido. A nova esquerda nacional parece-me familiar, prematuramente senil e cansada, pronta a, ao primeiro sinal de embate com um adversário de carne-e-osso, aconchegar-se no conforto psicológico das categorias políticas de 1968, o ano que nunca termina.

4) “O ponto central é que a esquerda tem muito mais razões para apoiar a agenda popular do que a direita”.

Não é verdade. Como vêm demonstrando pesquisas de opinião recentes, a “agenda popular” no Brasil tende a ser predominantemente conservadora e de direita, sobretudo no que diz respeito a costumes e valores – aborto, legalização das drogas, desarmamento, redução da maioridade penal, novos arranjos familiares, políticas de identidade sexual e de gênero etc. Em quase todos esses temas, a elite cultural de esquerda vai para um lado; a população em geral, para o outro. Com exceção do apego ao Estado forte e ao assistencialismo, a agenda da esquerda está quase sempre em desacordo com a dita “agenda popular”.

A afirmação de que a esquerda tem mais razões para apoiar a “agenda popular” não passa de wishful thinking, talvez auto-lisonjeiro, mas objetivamente equivocado. Se pensamos nos valores do brasileiro médio, especialmente dos mais pobres, é fácil constatar que a esquerda já não tem muito o que lhes dizer.

Grosso modo, a esquerda ama tudo o que o povão odeia (legalização das drogas e do aborto; estatuto do desarmamento; beijo lésbico idoso na novela; manutenção da maioridade penal aos 18 anos; fim do capitalismo, revolução social e Marcha das Vadias; patrulhas politicamente corretas da linguagem; desmilitarização da PM; Canal Futura; comida vegetariana; ciclovias; Tropa de Elite II) e odeia tudo o que o povão ama (religião cristã, em geral; pastores evangélicos, em particular; ordem; família tradicional; “bandido bom é bandido morto”; programa do Datena; piada da bichinha contada pelo Costinha; o Papa; o programa Patrulha da Cidade, da rádio Tupi; churrasco na laje; carros possantes; Tropa de Elite I).

Se a sociedade está relativamente dividida, deveria caber aos intelectuais, como de costume, a responsabilidade de organizar e dar expressão simbólica a essa divisão, para que ela possa fluir, através dos canais legítimos e institucionais do debate público, até desaguar na disputa política formal. Sem radicalismos, sem traumas, sem rupturas revolucionárias. Em suma, à moda conservadora…

 

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  • Og Leme
  • 07 Novembro 2016

 

(Publicado originalmente em www.institutoliberal.org.br)

O economista inglês Arthur Seldon, do Institute of Economic Affairs (IEA) de Londres, conceitua o capitalismo como o sistema de organização econômica que faz tão pouco uso do processo político quanto necessário e tanto uso do mercado quanto possível. À luz dessa ideia, impera no Brasil o anticapitalismo, pois praticamos exatamente o inverso: somos pródigos no uso do processo político de decisões coletivas e economizamos avarentamente na utilização do processo de mercado de decisões individuais para a solução dos nossos problemas econômicos. Isto é, politizamos desnecessariamente, e com elevados custos, a solução dos nossos problemas econômicos. Nosso setor público e o nosso processo político padecem de acromegalia, se agigantaram com o passar dos anos, comprimindo anatomicamente e comprometendo fisiologicamente o processo de mercado de decisões individuais. Nossa economia funciona mal porque, além de não ter espaço, sofre de engessamento e disfunções impostos pelo setor público. Perdemos, os cidadãos, em liberdade, eficiência e dignidade. Gera enorme perplexidade constatar que, a despeito de ser o processo político o mais incompetente dos processos sociais e, entre eles, o mais inclinado à corrupção, que exatamente a ele tenhamos delegado tantos desnecessários poderes em detrimento da autonomia, da responsabilidade e da eficiência individuais.

Essa alienação de direitos individuais – contrapartida do crescimento da maquinaria estatal e sua intervenção no mercado – decorreu de várias causas, entre as quais, e para os efeitos desta nota, vale a pena destacar: 1. a suposição de que o mercado tem falhas e, portanto, devem elas ser reparadas pela ação compensatória governamental; 2. a iniciativa pública pode conduzir o crescimento econômico nacional, levando-nos de volta ao paraíso perdido, onde a escassez é desconhecida.

Que o mercado tem falhas, é indiscutível; ele é imperfeito, fruto que é da imperfeita ação humana. Ocorre, porém, que o processo político também é um produto dessa mesma imperfeição e, portanto, tem falhas e estas são muito piores que as de mercado. Além disso, grande parte das chamadas falhas de mercado não passa de perversões induzidas ou diretamente produzidas pelas autoridades públicas.

Com relação à iniciativa pública na condução do processo de crescimento econômico, parece-me importante considerar-se o seguinte; a prosperidade das nações tem sido o fruto, não da ação estatal, mas da livre interação de agentes particulares responsáveis no seio do mercado, cada um deles na busca de seus próprios interesses pessoais. O progresso e o desenvolvimento dos povos têm sido o subproduto da ação humana, mas não de uma ação humana deliberada que se delineia numa prancheta de apenas algumas pessoas, que acabam impondo suas decisões às demais. O progresso da humanidade tem resultado de fato do exercício autônomo da liberdade individual, num ambiente institucional respeitador dos direitos humanos e dos contratos autonomamente pactuados por indivíduos responsáveis; tem resultado também do respeito ao princípio da igualdade de todos diante da lei; da eficácia da justiça, que impede a impunidade e facilita o acesso aos tribunais; tem resultado, finalmente, da qualificação do agente humano, pela melhoria da sua saúde e educação. Em síntese, a prosperidade das nações (Adam Smith, 1776) resulta da eficácia de duas instituições: Estado de Direito e Economia de Mercado; e de uma condição: a da saúde e educação das pessoas.

A intervenção estatal na economia brasileira perverteu aquelas instituições, e a essa ação demolidora foram dedicados tanto tempo e recursos que pouco restou para a educação e a saúde. A solução da crise brasileira está na devolução, ao processo de mercado de decisões individuais, da solução dos problemas que foram delegados à política.

Nota: Artigo retirado do livro de crônicas Og Leme, um liberal, editado pelo Instituto Liberal em 2011.

* Og Leme foi um dos fundadores do Instituto Liberal, permanecendo por décadas como lastro intelectual da instituição. Com formação acadêmica em Ciências Sociais, Direito e Economia, chegou a fazer doutorado pela Universidade de Chicago, quando foi aluno de notáveis como Milton Friedman e Frank Knight. Em sua carreira, foi professor da FGV, trabalhou como economista da ONU e participou da Assessoria Econômica do Ministro Roberto Campos. O didatismo e a simplicidade de Og na exposição de ideias atraíam e fascinavam estudantes, intelectuais, empresários, militares, juristas, professores e jornalistas. Faleceu em 2004, aos 81 anos, deixando um imenso legado ao movimento liberal brasileiro.

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