Artigos do Puggina
Percival Puggina
01/12/2024
Percival Puggina
Havíamos mudado para a casa nova. A saleta onde há 40 anos funciona o que denomino minha pequena “cápsula de trabalho” ainda estava sendo mobiliada e, por isso, minha escrivaninha ficava no quarto, abaixo da TV. Assim estávamos certa ocasião – eu escrevendo e minha mulher assistindo à TV – quando uma voz se ergue sobre o som normal do aparelho. A voz exclamava: “Não podem fazer isso comigo! Eu sou uma pessoa humana! Eu sou uma pessoa humana”. Aquelas palavras me fizeram olhar imediatamente a tela onde um miserável era submetido a visível constrangimento. Comentei com minha mulher: “Esse infeliz está usando em sua defesa o argumento perfeito, mais forte e sábio possível. O principal motivo para que não ajam assim contra ele está impresso em sua natureza. Ele é uma pessoa humana. E ponto. Nada mais é necessário ser dito”.
Infelizmente, costumamos interagir de outro modo. Alinhamos prerrogativas com base nas nossas credenciais. “Sou o Dr. Fulano, sou isto, sou aquilo; sou parente do Beltrano, amigo do Cicrano” e, na maior parte dos casos, funciona, embora tudo isso seja infinitamente menos relevante do que a dignidade inerente à nossa natureza.
Noventa e nove por cento do genoma humano é semelhante ao dos chimpanzés. Esses benditos um por cento fazem enorme diferença! E criam complexidades que se revelam em tensões existenciais decorrentes de nossa natureza. Somos individuais. Absolutamente individuais, únicos e insubstituíveis. Nosso DNA diz quem somos e conta nossa origem na cadeia contínua da vida. Mas temos existência social. Somos imperfeitos, mas aperfeiçoáveis e é bom termos consciência disso para não causarmos infelicidade aos outros. Somos materiais, mas somos, também, espirituais. Somos racionais, mas também instintivos.
Observe o leitor que nossa condição de “animais políticos” nas palavras de Aristóteles, decorre dos dois primeiros pares de atributos acima. Se fôssemos apenas individuais, a política seria impossível; se apenas sociais, ela seria desnecessária. Se fôssemos apenas imperfeitos, ela seria impossível; se apenas perfeitos, seria desnecessária. É perante esse par de atributos que a dimensão moral da política e de seus agentes se torna tão significativa ao bem comum. Se aqueles que exercendo o poder em nome do Estado – tendo em mãos o monopólio da força – ignorarem a dignidade da pessoa humana e não contiverem nem forem contidos no uso dessa força, a tirania se haverá de instalar.
De onde vem, então, a dignidade do ser humano? É só pelo DNA que nos distinguimos dos chimpanzés? Muitos creem que a essência esteja na inteligência, mas isso é um erro porque somos inteligentes com coeficientes diferentes e não parece sensato criarmos uma escala de dignidade referida ao QI de cada um. Do mesmo modo, não cabe fazermos algo assim com qualquer outro atributo humano, beleza, força, idade, riqueza material, cultura e assim por diante.
Das respostas já dadas pela humanidade à pergunta do parágrafo anterior, se eleva, sobre todas as demais, a resposta da tradição judaico-cristã: somos criados à imagem e semelhança de Deus, que, no ensino cristão, se fez homem, assumiu essa mesma natureza e foi ao extremo sacrifício por amor à criatura única e insubstituível que somos.
Eis porque toda tirania é abjeta e deve ser rejeitada.
Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
Percival Puggina
25/11/2024
Percival Puggina
Há uma tempestade de interpretações envolvendo as turbulências na Praça dos Três Poderes. Ela faz sentido, pois as piores bombas provêm de dentro dos prédios... A política brasileira, seja em nível local, seja em nível nacional não é e nunca foi um marasmo. O que está em curso, porém, vai de trepidante a desastroso.
O Congresso, feitas as devidas, honradas, ameaçadas e perseguidas exceções, mantém-se em completa alienação quanto aos anseios da sociedade por segurança jurídica e institucional, pessoal e social. Nas duas casas legislativas, ampla maioria dos congressistas trocou a representação dos eleitores pela representação de si mesmos e das próprias conveniências.
O governo petista é eterno dependente químico das alquimias do déficit fiscal, cujas consequências inflacionárias e recessivas incidirão mais sofridamente sobre os mais pobres. Empenha-se, insistentemente, em controlar as redes sociais como antes delas queria “regular a mídia” (lembram?). O “coletivo” dos ministros e dignitários com direito a chapa preta e guarda-costas bate cabeças sem prumo nem rumo. Engalfinham-se por verbas porque sem verbas não dá para fazer política.
Como afirma o catecismo neoconstitucional que praticam enquanto transformam a Carta de 1988 em caixa de ferramentas, os ministros do STF dobram aposta contra a divergência. Nas palavras do seu presidente, a Corte “vive vertiginoso processo de ascensão institucional”, deixou de ser já há um bom tempo, um departamento técnico especializado” e “passou a ser um poder político na vida brasileira”. Não é apenas dos “extremistas de direita” das redes sociais, mas do mundo inteiro que chegam notícias informando sobre os acontecimentos silenciados pela imprensa daqui. No entanto, com ares de fornida superioridade, asseguram a quem se dispõe a ouvi-los que as instituições – bem identificadas causadoras dos problemas reais da sociedade – estão sólidas e cumprindo seus papéis!
Sob lideranças deficitárias em moderação, temperança, bom senso, equilíbrio, prudência, imparcialidade, senso de proporção e noção de limites, a nação vive o drama do país numa verdadeira tempestade de ideias! O que está acontecendo é o tema de todas as conversas. Tempestade de ideias, aliás, é o correspondente em língua portuguesa da denominação inglesa “brainstorm”, uma técnica de trabalho em grupo usada com o intuito de encontrar soluções criativas para problemas empresariais. Com método semelhante, existe outra, conhecida em inglês como “What if”. Ela propõe que as ideias surjam a partir da pergunta “E se... isto?” ou “E se... aquilo?”. Ao cogitar das respostas suscitadas pelas hipóteses levantadas, muito erro é corrigido e muito sucesso obtido.
Resulta inevitável, então, o seguinte “What if”: “E se ... o ‘golpe’ for isso que estamos vivendo, num acordo institucional sem sintonia com a sociedade?
Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
Percival Puggina
21/11/2024
Percival Puggina
O leitor não foi à Praça dos Três Poderes, talvez nem seja de Brasília, mas constitui, no debate sobre anistia, um “terceiro interessado”, para dizer como os advogados. Está fora, mas ela o afeta enormemente e não por motivos jurídicos, mas pelos mesmos que me levam a escrever este artigo, ou seja, razões cívicas, de natureza política no bom sentido dessa palavra.
Depois de tantas e tão recorrentes manifestações de ministros do STF contra a ideia da anistia aos presos e condenados pelos atos de 8 de janeiro de 2023, eu fico pensando se realmente não sabem que anistia é tarefa da política, com causas políticas e consequências políticas. Ou estão, de fato, dispostos a continuar fazendo política sem votos, apenas com suas canetas?
Se depender dos que, de parte a parte clamam, por justiça, jamais haverá anistia. Eu os leio e ouço diariamente. Uns sonham com julgar os julgadores; outros os apoiam incondicionalmente. Uns consideram os réus inocentes ou que sofrem penas excessivas, tratamento desumano e que a anistia seria uma admissão dos crimes. Outros, ainda falam das muitas esquisitices da eleição de 2022.
Diferentemente do que tenho lido, anistia não é esquecimento, como a palavra sugere. Esquecer, sumir da memória não são consequências de atos de vontade. A anistia de penas, diferentemente, se refere a um ato de vontade política materializado por lei editada pelo Congresso Nacional. Está no âmbito de sua exclusiva competência, que não é compartilhada nem compartilhável com qualquer outro poder. É por isso que mesmo quando o governo da União ou das unidades federadas querem conceder uma anistia tributária, ela só pode viger mediante aprovação de lei no respectivo parlamento.
Não envolvendo esquecimento, a anistia não terá o poder de fazer com que os condenados pelos atos do dia 8 de janeiro, os que tiveram suas vidas destroçadas, os que ainda pendem de julgamento esqueçam tudo por que passam. Ela tampouco faz cessar o trabalho dos historiadores. Ela simplesmente extingue as consequências penais do que aconteceu.
É bom lembrar que a Emenda Constitucional 26 de 1985, ao convocar a Assembleia Nacional Constituinte, reconheceu o perdão concedido a militantes e militares. Ela foi o ato fundador da nova ordem constitucional do país, cancelando as tentativas revisionistas tentadas à época por movimentos de esquerda. No STF, em seu voto sobre a questão (2010), o relator, ministro Eros Grau, afirmou (aqui *): “Reduzir a nada essa luta é tripudiar contra os que, com assombro e coragem, na hora certa, lutaram pela anistia. É a página mais vibrante de atividade democrática da nossa história.” Décadas mais tarde, a esquerda brasileira ainda tentaria abolir o ato quanto ao perdão concedido aos militares e reescrever a história com as pretensões da Comissão da Verdade.
Em artigo de abril de 2010, referindo-me às reivindicações da esquerda contra o caráter amplo da anistia concedida pelos atos de 1979 e 1985, escrevi e reafirmo perante o que hoje leio, vejo e ouço: “Assusto-me quando os que buscam isso dizem agir pelo Direito e pela Justiça, desconhecendo a importância da Política e o eminente valor moral, profundamente cristão, do perdão institucionalmente concedido. Há uma parcela da esquerda que foi perdoada por seus muitos crimes, mas não aprendeu a perdoar.”
* https://www.conjur.com.br/2010-abr-28/anistia-entrou-constituicao-antes-1988-ministro-eros-grau/
Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
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