• Olavo de Carvalho
  • 25 Outubro 2016


(Publicado originalmente no Jornal da Tarde, em 03/09/98)

Já acreditei em muitas mentiras, mas há uma à qual sempre fui imune: aquela que celebra a juventude como uma época de rebeldia, de independência, de amor à liberdade. Não dei crédito a essa patacoada nem mesmo quando, jovem eu próprio, ela me lisonjeava. Bem ao contrário, desde cedo me impressionaram muito fundo, na conduta de meus companheiros de geração, o espírito de rebanho, o temor do isolamento, a subserviência à voz corrente, a ânsia de sentir-se iguais e aceitos pela maioria cínica e autoritária, a disposição de tudo ceder, de tudo prostituir em troca de uma vaguinha de neófito no grupo dos sujeitos bacanas.

O jovem, é verdade, rebela-se muitas vezes contra pais e professores, mas é porque sabe que no fundo estão do seu lado e jamais revidarão suas agressões com força total. A luta contra os pais é um teatrinho, um jogo de cartas marcadas no qual um dos contendores luta para vencer e o outro para ajudá-lo a vencer.

Muito diferente é a situação do jovem ante os da sua geração, que não têm para com ele as complacências do paternalismo. Longe de protegê-lo, essa massa barulhenta e cínica recebe o novato com desprezo e hostilidade que lhe mostram, desde logo, a necessidade de obedecer para não sucumbir. É dos companheiros de geração que ele obtém a primeira experiência de um confronto com o poder, sem a mediação daquela diferença de idade que dá direito a descontos e atenuações. É o reino dos mais fortes, dos mais descarados, que se afirma com toda a sua crueza sobre a fragilidade do recém-chegado, impondo-lhe provações e exigências antes de aceitá-lo como membro da horda. A quantos ritos, a quantos protocolos, a quantas humilhações não se submete o postulante, para escapar à perspectiva aterrorizante da rejeição, do isolamento. Para não ser devolvido, impotente e humilhado, aos braços da mãe, ele tem de ser aprovado num exame que lhe exige menos coragem do que flexibilidade, capacidade de amoldar-se aos caprichos da maioria – a supressão, em suma, da personalidade.

É verdade que ele se submete a isso com prazer, com ânsia de apaixonado que tudo fará em troca de um sorriso condescendente. A massa de companheiros de geração representa, afinal, o mundo, o mundo grande no qual o adolescente, emergindo do pequeno mundo doméstico, pede ingresso. E o ingresso custa caro. O candidato deve, desde logo, aprender todo um vocabulário de palavras, de gestos, de olhares, todo um código de senhas e símbolos: a mínima falha expõe ao ridículo, e a regra do jogo é em geral implícita, devendo ser adivinhada antes de conhecida, macaqueada antes de adivinhada. O modo de aprendizado é sempre a imitação – literal, servil e sem questionamentos. O ingresso no mundo juvenil dispara a toda velocidade o motor de todos os desvarios humanos: o desejo miméticode que fala René Girard, onde o objeto não atrai por suas qualidades intrínsecas, mas por ser simultaneamente desejado por um outro, que Girard denomina o mediador.

Não é de espantar que o rito de ingresso no grupo, custando tão alto investimento psicológico, termine por levar o jovem à completa exasperação impedindo-o, simultaneamente, de despejar seu ressentimento de volta sobre o grupo mesmo, objeto de amor que se sonega e por isto tem o dom de transfigurar cada impulso de rancor em novo investimento amoroso. Para onde, então, se voltará o rancor, senão para a direção menos perigosa? A família surge como o bode expiatório providencial de todos os fracassos do jovem no seu rito de passagem. Se ele não logra ser aceito no grupo, a última coisa que lhe há de ocorrer será atribuir a culpa de sua situação à fatuidade e ao cinismo dos que o rejeitam. Numa cruel inversão, a culpa de suas humilhações não será atribuída àqueles que se recusam a aceitá-lo como homem, mas àqueles que o aceitam como criança. A família, que tudo lhe deu, pagará pelas maldades da horda que tudo lhe exige.

Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente: amor ao mais forte que o despreza, desprezo pelo mais fraco que o ama.

Todas as mutações se dão na penumbra, na zona indistinta entre o ser e o não-ser: o jovem, em trânsito entre o que já não é e o que não é ainda, é, por fatalidade, inconsciente de si, de sua situação, das autorias e das culpas de quanto se passa dentro e em torno dele. Seus julgamentos são quase sempre a inversão completa da realidade. Eis o motivo pelo qual a juventude, desde que a covardia dos adultos lhe deu autoridade para mandar e desmandar, esteve sempre na vanguarda de todos os erros e perversidade do século: nazismo, fascismo, comunismo, seitas pseudo-religiosas, consumo de drogas. São sempre os jovens que estão um passo à frente na direção do pior.

Um mundo que confia seu futuro ao discernimento dos jovens é um mundo velho e cansado, que já não tem futuro algum.
 

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  • Dora Kramer
  • 25 Outubro 2016

 

 (Publicado no Estadão, 24/10/2016)

Eduardo Cunha não foi o primeiro nem será o último político de destaque a ser preso pela operação Lava Jato. Sequer pode ser apontado como aquele que maior poder e/ou volume de informações reuniu na República. As presenças de José Dirceu e Antônio Palocci em Curitiba – chefões da era em que o PT mandava (e principalmente desmandava) no País – dão por si tal testemunho.

Pode ser que ele venha a fazer uma delação devastadora que comprometa do baronato ao cardinalato da política? Pode ser que haja vida em Marte. No terreno das possibilidades criam-se, entre outras coisas, fantasmas. Tudo é possível embora nem tudo seja provável. Para dirimir quaisquer dúvidas, o melhor método é o exame das condições objetivas.

A principal delas esteve registrada no placar eletrônico da Câmara no dia 12 de setembro último, quando o então deputado afastado de suas funções legislativas pelo Supremo Tribunal Federal teve o mandato cassado por 450 votos a favor e 10 contra.
No início, quando o processo foi aberto no Conselho de Ética, a avaliação preponderante era a de que Eduardo Cunha sairia ileso. Segundo essa versão, teria poderes ilimitados para impedir o andamento dos trabalhos e um embornal de informações a respeito de seus pares tóxico o suficiente para garantir votos a favor da manutenção de seu mandato.

No campo da suposição, isso parecia fazer sentido. Mas a realidade tem componentes menos esquemáticos. No caso, a opinião pública, a revelação de novas e cada vez mais contundentes acusações, o comportamento excessivamente ousado de Cunha, a decisão do STF de afastá-lo do cargo, a impossibilidade de contar com ajuda do governo, o instinto de sobrevivência eleitoral dos deputados, uma série de fatores que desmontou a presunção inicial e produziu um resultado surpreendentemente desfavorável a ele.

A prisão menos de quarenta dias depois provocou alvoroço, não obstante fosse algo esperado, líquido e certo. Fez-se o silêncio em Brasília. Pudera, dizer o quê? Lamentar, comemorar? O governo e mundo político em geral não poderiam fazer uma coisa nem outra. Até o PT se manteve discreto, dada sua impossibilidade de falar de corda em casa de enforcado.

Enquanto na capital federal a palavra de ordem era não passar recibo, no restante do País estabeleceu-se a gritaria em torno dos presumidos efeitos de uma delação premiada. Por ora apenas um fantasma nessa ópera composta pela operação Lava Jato. Não que seja um equívoco supor que Cunha faça delação e provoque com ela uma devastação em massa. Mas é preciso medir e pesar as circunstâncias. E estas não lhe são necessariamente favoráveis.

Não é ele quem dita as regras muito menos o rumo dos acontecimentos como, de resto, já ficou demonstrado. A faca e o queijo estão nas mãos do Ministério Público e da Justiça. Ainda que o ex-deputado tenha disposição de delatar não significa que os procuradores se interessem pela contrapartida ou que as condições estabelecidas em lei para a obtenção de benefícios se apliquem a Eduardo Cunha.

A força tarefa da Lava Jato trabalha há mais de dois anos, período em que reuniu uma montanha de informações a respeito das quais seguramente o País ainda não sabe da missa a metade. De onde é possível que o ex-deputado não tenha dados que os investigadores considerem novos e/ou necessários ao esclarecimento dos fatos. Se não pôde controlar seu destino quando presidente da Câmara nem se utilizar do arsenal intimidador de maneira eficiente, não será preso que Eduardo Cunha terá êxito no manejo da figura de assombração.

Ademais, terá de ter muito cuidado com o que disser para não piorar sua já sofrível situação.

 

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  • Ricardo Bordin
  • 25 Outubro 2016


(Publicado originalmente por institutoliberal.org.br)

Tudo começou com uma constatação inequívoca do perfil no Twitter “Editora Humanas”: praticamente toda pessoa que publicava posts manifestando posição contrária ao impeachment de Dilma, criticando os Bolsonaro, pregando o socialismo, tremulando a bandeira do feminismo, pedindo votos em Marcelo Freixo, clamando pela legalização dos entorpecentes (enfim, bancando o idiota útil da Esquerda), já havia, em algum momento de seu passado (ou até na mesma postagem), maldito os próprios pais ou queixando-se de sua ausência em suas vidas, por meio de alguma mídia social. O percentual de casos verificados com esta coincidência foi tão significativo que acabou gerando um “spin-off” daquele perfil, o @meupaiausente. Só que tal ocorrência, infelizmente, não se trata tão somente de uma surpreendente casualidade, mas sim do resultado prático de décadas de doutrinação marxista, a qual, por meio de diversos instrumentos ideológicos, ataca a família tradicional incessantemente. O cenário atual no Brasil não poderia, pois, ser diferente.

Que a ausência dos pais pode comprometer a saúde emocional dos filhos não é novidade alguma. O que impinge aqueles que buscam o agigantamento do aparato estatal a usarem estas pessoas carentes como ferramentas, em busca de seu propósito máximo, é que precisa ser elucidado. Marilena Chauí nos fornece algumas pistas quando assevera que aqueles que defendem a família são “bestas”, e que os pais são “déspotas de sua prole”. Se ela assim afirma, é sinal de que a família representa um obstáculo para o arranjo social que ela gostaria que fosse implantado. Mais do que isso: a estrutura familiar é o último sustentáculo da civilização ocidental, e já não é mais possível prever por mais quanto tempo poderá resistir ao empuxo “progressista”.

O amadurecimento do indivíduo passa, necessariamente, por uma fase de dependência familiar, onde ele ainda não possui maturidade suficiente para fazer escolhas por conta própria. Neste período, portanto, ele não deve dispor da liberdade para traçar os próprios rumos, e deve subordinar-se às decisões tomadas por seus pais, com um grau mínimo de ingerência própria. Com o avanço da idade, é natural que a pessoa, por meio da experimentação e do acúmulo de conhecimento prático, desconecte-se, gradativamente, da “barra da saia” da mãe, passando a assumir as consequências por seus erros e a auferir os louros de suas conquistas.

Quando este processo é interrompido ou sequer tem início, há grande chance de esse indivíduo procurar esta referência paternal em alguma outra figura abstrata ou concreta. E já que o governo não pode ver ninguém sofrendo que já fica alvoroçado, é claro que ele vai se oferecer para “tomar conta” desses pobres coitados, assumindo a função de “babá”. Só que esta pessoa adotada pelo Estado precisa entender que este papai tem muitos outros filhos órfãos sob sua tutela, e, portanto, ela deve submeter-se ao interesse coletivo de todos os demais desamparados recolhidos.

Ademais, ele não deve almejar sua independência jamais, pois tal ato de rebeldia colocaria em risco a subsistência dos demais maninhos. Caso insista na pirraça, deverá ser castigado, como medida pedagógica, emitindo um aviso aos demais membros da grande família estatal. Assim, todos devem trabalhar em prol da comunidade, sob a orientação do generoso padrasto, permitindo que ele esquadrinhe cada aspecto de sua vida, determinando desde sua alimentação até o que ele vai assistir na TV. Sim, é exatamente o que parece: o totalitarismo encontra forte resistência na família, e a forma mais eficaz de subjugá-la é, na verdade, tomando seu lugar e assumindo suas funções. Não à toa, no livro 1984, de George Orwell, o indivíduo é criado pelo estado, e a família serve apenas para procriação.

Ou seja, a destruição do modelo de família tradicional é o primeiro passo para instalar a desordem social que servirá de base para esta revolução cultural – e isso já está acontecendo bem diante de nossos olhos. Karl Marx, em seu medonho Manifesto Comunista, considera o núcleo da “família burguesa” uma instituição que precisa ser abolida, pois, segundo consta, ela seria baseada somente no capital – homens exploram mulheres, pais exploram crianças. Interessante notar que, vendo a questão por este ângulo, os marxistas simplesmente desconsideram que tais pessoas permanecem ligadas por laços afetivos. Será que Marx também ficaria famoso no @meupaiausente se houvesse twitter aquela época? Bem provável.

Assim sendo, não basta aos revolucionários catarem somente os frutos que caem da árvore; isto é, não é suficiente cooptar para seu exército de desocupados apenas aquelas pessoas que, por motivos de ordem diversa, não possuem vínculos familiares sólidos. Não mesmo. Eles precisam atacar também aquelas que são membros de famílias estáveis e felizes (até então), e voltá-las contra seus irmãos e genitores. Desta forma, o “monopólio da generosidade” fica na mão do Estado.

Entenda: se eu precisar de socorro financeiro, por exemplo, posso recorrer a algum dos meus parentes; mas se eu mal olho na cara deles, quando vier a atravessar uma situação de penúria, precisarei aceitar ajuda estatal (bolsa família, seguro-desemprego, subvenções para cursar faculdades e adquirir moradia, e por aí vai). Extrapolando os efeitos desta lógica para todas as situações da vida em que demandamos auxílio de terceiros, passa a ser aceito com naturalidade que o Estado cresça até níveis insuportáveis pelos pagadores de impostos – sempre em nome do “social”, que nada mais é do que socorrer pessoas em necessidade, como descrito no exemplo. Quando a família não mais pode prover abrigo material e psicológico para seus entes (ou mesmo existir), os camaradas surgem como o último recurso, a mão estendida, o ombro amigo. E pense em um ombro caro.

Como provas do sucesso parcial alcançado por este pessoal “gente boa” que quer prestar serviços terceirizados de caridade, estão aí o aumento do número de divórcios; o avanço dos defensores do assassinato de bebês; o crescente número de idosos abandonados; a ridicularização, em filmes e seriados, do homem ocidental como provedor da família; a ideologia de gênero ganhando terrenX; o feminismo cada vez mais convencendo mulheres de que seus maridos são seus inimigos, que seus filhos (quando são gerados) são estorvos em suas vidas, e que colecionar parceiros sexuais em profusão faz parte da luta pela libertação feminina; os “educadores” estatais declarando descaradamente que cabe a eles decidir o que deve ser ensinado a nossas crianças – e lecionando, claro, tudo o que consta em sua agenda enviesada politicamente; o vício em drogas destruindo famílias como um verdadeiro tsunami.

A propagação do relativismo moral e a flexibilização dos sensos de justiça e de honra contribuem para erigir um império de conflito e agitação, propício para aqueles que buscam corromper a ordem natural das coisas e lançar por terra tudo o que tirou a humanidade da barbárie do período pré-civilizatório. Roger Scruton, em artigo recentemente publicado, abordou essa necessidade de desapego do mundo real na busca pelo igualitarismo:
“Dessa forma, para Žižek (stalinista), o pensamento cancela a realidade, quando o pensamento está “à esquerda”. O que você faz importa menos do que o que você pensa estar fazendo, dado que o que você pensa estar fazendo tem o objetivo principal de emancipação – de égaliberté, como colocou o teórico marxista Étienne Balibar. O objetivo não é igualdade ou liberdade no sentido qualificado em que você ou eu entendemos esses termos. É a igualdade absoluta (com um pouquinho de liberdade, se você tiver sorte), que, por sua natureza, só poderá ser atingida por meio de um ato de total destruição. Buscar esse objetivo também pode significar reconhecer sua impossibilidade – não é a isso que equivalem esses projetos “totais”? Não importa. É precisamente a impossibilidade da utopia que nos prende a ela: nada pode macular a pureza absoluta do que jamais será testado”.

Sendo a família considerada a mais importante célula da sociedade, já que através dela que aprendemos a perceber o mundo e a nele nos situarmos, formando nossa identidade e dando início ao processo de socialização do indivíduo, ela não poderia deixar de ser a primeira vítima daqueles que buscam subverter ostatus quo. Ataque-a, e tudo o mais virá abaixo, facilitando o trabalho dos inimigos dos valores e princípios conservadores. Russell Kirk costumava afirmar que uma sociedade amoral é uma sociedade caótica, e que“independentemente do sistema político vigente, uma sociedade em que homens e mulheres conheçam as normas e respeitem as convicções de “certo” e “errado”, sempre será uma boa sociedade. Entretanto, seres humanos voltados apenas para a “gratificação de seus apetites”, produzirão uma sociedade ruim”.

Adulterar as fases do amadurecimento do indivíduo tem se mostrado, até então, uma das estratégias mais eficientes adotadas com este intuito de convulsionar a sociedade. Expondo crianças ao sexo precoce em sua infância, e privando-lhes, destarte, de uma etapa essencial de seu desenvolvimento emocional, verdadeiro alicerce do ser humano que será formado ali na frente, torna-se improvável que ele venha a reunir condições de constituir uma família.

O resultado que se costuma observar são pessoas buscando eternamente esta etapa perdida de suas vidas, sem conseguir portarem-se como adultos, e, claro, sem demonstrar a estrutura psicológica necessária para responsabilizar-se pelo bem estar de outras pessoas – exatamente em que consiste ser arrimo de família. Adicionem-se neste caldo os filhos de adolescentes (alguns deles gerados dentro da escola – literalmente), advindos dessa mesma deturpação de padrões e costumes, e está pronto o preâmbulo de tantas histórias de “pai ausente” em nosso país. Ainda bem que a “creche estatal” sempre mostra-se solícita em acolher estas eternas crianças que sentem falta dos pais, não é mesmo? Essa indústria de massa de manobra é a única no Brasil que não sofre os efeitos da crise…

Sobre o autor: Atua como Auditor-Fiscal do Trabalho, e no exercício da profissão constatou que, ao contrário do que poderia imaginar o senso comum, os verdadeiros exploradores da população humilde NÃO são os empreendedores. Formado na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR) como Profissional do Tráfego Aéreo e Bacharel em Letras Português/Inglês pela UFPR. Também publica artigos em seu site:https://bordinburke.wordpress.com/

 

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  • Jorge B. Ribeiro
  • 25 Outubro 2016

 

Arrumando a minha biblioteca deparei-me com velhos artigos e antigas anotações de origens diversas, capazes de decifrarem e contribuírem para o entendimento do atual caótico cenário político, econômico e psicossocial brasileiro que não nasceu de repente. Vem sendo construído, gota a gota, homeopaticamente, desde os primórdios do Século XX.

Duas destas fontes de consulta ressalto como verdadeiras profecias. A primeira, diz respeito a um ensinamento de Lênin, versando sobre o trabalho de massa da militância comunista para a desintegração moral da sociedade, objetivando criar o caldo de cultura propício para que o golpe mortal no inimigo capitalista se tornasse possível e fácil. Complementava dizendo: “os capitalistas nos fornecerão a corda com a qual nós os enforcaremos”.

E agora estão nas manchetes da imprensa e nas prisões, os amorais capitalistas, dirigentes das empreiteiras, os doleiros e lobistas, comprometidos no projeto criminoso de poder dos comunistas. Embora esses comunistas também estejam sendo indiciados e alguns deles punidos, os procedimentos dos capitalistas os caracterizaram como tão sórdidos quanto seus algozes comunistas. Grande conquista para a desmoralização do sentimento capitalista.

A segunda profecia foi de autoria do dramaturgo, escritor e jornalista Nelson Rodrigues que em priscas eras diagnosticou os principais motivos condutores das más escolhas da maioria dos eleitores brasileiros que se especializaram em cavar as próprias sepulturas, escolhendo a fina flor dos falsários que sabem prometer o Nirvana aqui na Terra. Isto é, o estado de libertação do sofrimento. Vejamos esta profecia:

A REVOLUÇÃO DOS IDIOTAS - Nelson Rodrigues

"Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina."

"O artista tem que ser gênio para alguns e idiota para outros. Se puder ser idiota para todos, melhor ainda".

"Até o século XIX o idiota era apenas O Idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar um cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. Os 'melhores' pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele.

Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas."
 

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  • Thomas Giulliano
  • 24 Outubro 2016


(Publicado originalmente em historiaexpressa.com.br)

Muito escutei nas aulas universitárias que participei. Lá se falou de tudo. Principalmente de todas as sociologias que justificam todas as supostas opressões. Há de concordar comigo, quem conhece alguma coisa sobre essas coisas, que se ignorou muito a cicrana coerência e o beltrano paradoxo de querer salvar o mundo sem saber sequer usar o banheiro. Como sei disso? Simples, fui aos diferentes banheiros dos prédios de humanas. De vários cursos e faculdades – as que têm os seus tronos pagos com impostos e até as pagas com a mais-valia.

Conto o caso que não é causo – singular apenas por circunstância textual: uma vez, no intervalo de uma fatídica aula ou em uma escapada (sempre necessária) durante alguma lição sobre alguma opressão, realmente não me recordo, mas lembro-me bem que antes de qualquer ato biológico, deparei-me com diversas imoralidades dos combatentes da moral, intoxicados de verborragias, incapazes de notar o brotar particular de seus stálins apaixonados, simbolicamente materializados em seus reparados papéis usados por todos os cantos – (alguns amarronzados), fazendo do banheiro público uma espécie de decoração de interior inspirada em qualquer DCE.

Algumas das pessoas que limpam o banheiro são negras (informação relevante apenas no tocante à hipocrisia crítica dos que criticam até a crítica). Há também, agora em tom de conclusão, coisas que se tornam quase um exagero crítico ao se mencionarem, tais como as torneiras escorrendo, portas quebradas e as sempre críticas pichações. Sobre isso nada mais quero escrever. Só quis com estas linhas dizer que os homens de pensamentos críticos merecem a crítica de tornarem o banheiro a materialização de seus pensamentos teóricos, pois, querem transformar o mundo, gritando verborragias sobre as desigualdades ou achando que as suas opiniões são relevantes, desconsiderando os seus gestos de pequenos imitadores da higiene de Mao Tsé-Tung.

Aos apressados, aponto que há banheiros de outros cursos sujos tal qual, entretanto com menos verborreia canhota.

 

*Professor de História
 

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  • Guilherme Fiuza
  • 24 Outubro 2016

 

(Publicado originalmente em O Globo 21/10/2016)


Com a impunidade de Cunha, você podia até defender Lula e Dilma numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil


A prisão do companheiro Eduardo Cunha deixou aturdidos os heróis da resistência democrática. Como vão explicar isso em casa?

Cunha era o grande vilão do golpe, a mente perversa que arquitetou a destituição da mulher honesta para entregar o poder aos brancos, velhos, recatados e do lar. A impunidade do Darth Vader do PMDB era o lastro da lenda, a prova de que estava tudo armado para arrancar do governo os quadrilheiros do bem. Mas eis que Sérgio Moro, esse fascista que só persegue os bonzinhos, prende Cunha. E agora?

É grave a crise. Eduardo Cunha era a reserva moral do PT. E do PSOL, da Rede e seus genéricos. Com a impunidade dele, você podia até defender Lula e Dilma numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil na sua cara: bastava dizer que era contra o Cunha — o fiador do golpe, o homem do sistema. Mas que sistema é esse que põe seu articulador no xadrez? Ficou confuso. Melhor tomar uma água de coco, que o sol está forte.

Os juros começaram a cair depois de quatro anos. A inflação de outubro é a menor em sete anos, e ano que vem o desemprego começa a baixar. Isso não é mágica, é governo. Temer faz parte da mobília antiga do PMDB, e não tem nenhuma bandeirinha simpática para acenar. Se aparecer em alguma negociata, adeus. Mas, ao assumir o Planalto, resolveu escalar os melhores para tomar conta do dinheiro. Banco Central, Tesouro, Fazenda, BNDES, Petrobras — todos sendo desinfetados pelos melhores cérebros, mundialmente reconhecidos.

Por que Michel Temer fez isso, e não simplesmente substituiu os parasitas esganados do PT pelos velhacos do PMDB? Não interessa, perguntem a ele.

A vida no Brasil vai melhorar, e isso é muito grave. O que será daquelas almas puras que gritam “fora Temer” e se tornam instantaneamente grandiosas? O que será dos corações valentes que ficam bem na foto denunciando a entrega do país ao bando do Cunha? Talvez só uma Bolsa Psicanálise para fazer frente a tanto sofrimento.

Na época do Plano Real foi igualzinho. Na privatização da telefonia, que libertou a população dos progressistas retrógrados de sempre, esses mesmos que gritam contra o golpe (ou seus ancestrais) estavam lá nas barricadas — apedrejando quem chegava para os leilões. Eram os heróis da resistência democrática contra a ganância capitalista. Aí a privatização se consumou, a vida de todo mundo melhorou, e os heróis foram combinar a próxima narrativa — pelo celular.

A eleição no Rio de Janeiro, terra de Eduardo Cunha, apresenta um fenômeno surpreendente. No primeiro turno, a cidade confirmou a sua vocação de oposição a si mesma. No segundo turno, Marcelo Crivella disparou. Como pode? Gente esclarecida, eleitores de candidatos respeitáveis como Fernando Gabeira e que jamais votariam num bispo da Igreja Universal, cogitando votar em Crivella?

Talvez a resposta seja simples: Marcelo Freixo é o candidato contra o golpe. O bom entendedor fez suas contas: o discurso que cultiva a mística de esquerda, à prova de vida real, é exatamente o que destruiu o país nos últimos 13 anos.

Freixo surgiu muito bem na vida pública. Fez um trabalho corajoso de denúncia das milícias, num tempo em que muitos as viam como justiceiras contra os traficantes. Se tornou personagem real de “Tropa de elite”, clássico extraído do trabalho excepcional de Luiz Eduardo Soares — acadêmico de esquerda que jamais sujeitou sua honestidade intelectual às místicas lucrativas. Já Freixo preferiu se tornar o personagem de si mesmo. Seria ótimo, se fosse de verdade.

Falar a verdade dá trabalho. O próprio Gabeira correu o risco do suicídio político algumas vezes, para não trair suas convicções. Primeiro a fazer a crítica da luta armada ainda em plena ditadura, apoiou a privatização da telefonia pelo governo FH — e na época era difícil ao eleitorado de esquerda ver aquilo como o melhor para a coletividade, e não uma traição neoliberal. Depois desembarcou da base de Lula no auge, ao enxergar a putrefação do governo pré-mensalão: “sonhei o sonho errado”.

As viúvas do governo que caiu de podre 13 anos depois disso ainda tentam ver em Dilma (se lembram dela?) uma vítima inocente da direita: preferem embelezar o pesadelo a parar de sonhar.

No Rio, o sonho errado ainda rende um bom mercado eleitoral. Na ânsia de cultivar essa mística revolucionária, Freixo estimulou protestos violentos (nega, mas estimulou) — logo ele, que denunciou as milícias sanguinárias. Apoiou sindicalistas que bloquearam o trânsito e engessaram a cidade. Para vender o seu peixe humanista, ele prende e arrebenta — como diria o general Figueiredo.

Infelizmente, ainda há quem escolha candidato pelo crachá de progressista ou conservador (no sentido de moderno ou retrógrado). Então vamos lá, sem crachá: quem põe em risco seus votos para defender o bem comum, como fez Gabeira, é progressista; quem põe em risco o bem comum para defender seus votos, como faz Freixo, é conservador.

E não adianta botar o Cunha no meio, porque agora ele está ocupado.

 

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