(Publicado originalmente em O Globo 21/10/2016)
Com a impunidade de Cunha, você podia até defender Lula e Dilma numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil
A prisão do companheiro Eduardo Cunha deixou aturdidos os heróis da resistência democrática. Como vão explicar isso em casa?
Cunha era o grande vilão do golpe, a mente perversa que arquitetou a destituição da mulher honesta para entregar o poder aos brancos, velhos, recatados e do lar. A impunidade do Darth Vader do PMDB era o lastro da lenda, a prova de que estava tudo armado para arrancar do governo os quadrilheiros do bem. Mas eis que Sérgio Moro, esse fascista que só persegue os bonzinhos, prende Cunha. E agora?
É grave a crise. Eduardo Cunha era a reserva moral do PT. E do PSOL, da Rede e seus genéricos. Com a impunidade dele, você podia até defender Lula e Dilma numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil na sua cara: bastava dizer que era contra o Cunha — o fiador do golpe, o homem do sistema. Mas que sistema é esse que põe seu articulador no xadrez? Ficou confuso. Melhor tomar uma água de coco, que o sol está forte.
Os juros começaram a cair depois de quatro anos. A inflação de outubro é a menor em sete anos, e ano que vem o desemprego começa a baixar. Isso não é mágica, é governo. Temer faz parte da mobília antiga do PMDB, e não tem nenhuma bandeirinha simpática para acenar. Se aparecer em alguma negociata, adeus. Mas, ao assumir o Planalto, resolveu escalar os melhores para tomar conta do dinheiro. Banco Central, Tesouro, Fazenda, BNDES, Petrobras — todos sendo desinfetados pelos melhores cérebros, mundialmente reconhecidos.
Por que Michel Temer fez isso, e não simplesmente substituiu os parasitas esganados do PT pelos velhacos do PMDB? Não interessa, perguntem a ele.
A vida no Brasil vai melhorar, e isso é muito grave. O que será daquelas almas puras que gritam “fora Temer” e se tornam instantaneamente grandiosas? O que será dos corações valentes que ficam bem na foto denunciando a entrega do país ao bando do Cunha? Talvez só uma Bolsa Psicanálise para fazer frente a tanto sofrimento.
Na época do Plano Real foi igualzinho. Na privatização da telefonia, que libertou a população dos progressistas retrógrados de sempre, esses mesmos que gritam contra o golpe (ou seus ancestrais) estavam lá nas barricadas — apedrejando quem chegava para os leilões. Eram os heróis da resistência democrática contra a ganância capitalista. Aí a privatização se consumou, a vida de todo mundo melhorou, e os heróis foram combinar a próxima narrativa — pelo celular.
A eleição no Rio de Janeiro, terra de Eduardo Cunha, apresenta um fenômeno surpreendente. No primeiro turno, a cidade confirmou a sua vocação de oposição a si mesma. No segundo turno, Marcelo Crivella disparou. Como pode? Gente esclarecida, eleitores de candidatos respeitáveis como Fernando Gabeira e que jamais votariam num bispo da Igreja Universal, cogitando votar em Crivella?
Talvez a resposta seja simples: Marcelo Freixo é o candidato contra o golpe. O bom entendedor fez suas contas: o discurso que cultiva a mística de esquerda, à prova de vida real, é exatamente o que destruiu o país nos últimos 13 anos.
Freixo surgiu muito bem na vida pública. Fez um trabalho corajoso de denúncia das milícias, num tempo em que muitos as viam como justiceiras contra os traficantes. Se tornou personagem real de “Tropa de elite”, clássico extraído do trabalho excepcional de Luiz Eduardo Soares — acadêmico de esquerda que jamais sujeitou sua honestidade intelectual às místicas lucrativas. Já Freixo preferiu se tornar o personagem de si mesmo. Seria ótimo, se fosse de verdade.
Falar a verdade dá trabalho. O próprio Gabeira correu o risco do suicídio político algumas vezes, para não trair suas convicções. Primeiro a fazer a crítica da luta armada ainda em plena ditadura, apoiou a privatização da telefonia pelo governo FH — e na época era difícil ao eleitorado de esquerda ver aquilo como o melhor para a coletividade, e não uma traição neoliberal. Depois desembarcou da base de Lula no auge, ao enxergar a putrefação do governo pré-mensalão: “sonhei o sonho errado”.
As viúvas do governo que caiu de podre 13 anos depois disso ainda tentam ver em Dilma (se lembram dela?) uma vítima inocente da direita: preferem embelezar o pesadelo a parar de sonhar.
No Rio, o sonho errado ainda rende um bom mercado eleitoral. Na ânsia de cultivar essa mística revolucionária, Freixo estimulou protestos violentos (nega, mas estimulou) — logo ele, que denunciou as milícias sanguinárias. Apoiou sindicalistas que bloquearam o trânsito e engessaram a cidade. Para vender o seu peixe humanista, ele prende e arrebenta — como diria o general Figueiredo.
Infelizmente, ainda há quem escolha candidato pelo crachá de progressista ou conservador (no sentido de moderno ou retrógrado). Então vamos lá, sem crachá: quem põe em risco seus votos para defender o bem comum, como fez Gabeira, é progressista; quem põe em risco o bem comum para defender seus votos, como faz Freixo, é conservador.
E não adianta botar o Cunha no meio, porque agora ele está ocupado.
(Publicado originalmente em O Globo, 22/10/2016)
Os equipamentos de rastreamento de escutas telefônicas também executavam as escutas, e a atuação da Polícia Legislativa fora do Senado, protegendo as casas particulares dos senadores em Brasília e também em seus Estados, passou a ser uma rotina. A Polícia Legislativa do Senado tinha virado uma polícia particular e apartidária, uma espécie de milícia para a proteção dos senadores, segundo a definição corrente em Brasília.
Prestavam serviços pessoais aos senadores e familiares, desde fazer uma ronda de segurança em uma residência, até livrar filhos e parentes de senadores que se metessem em confusão nas noites brasilienses (brigas, dirigir embriagado).
Essa promiscuidade acabou servindo para que a Polícia do Senado atuasse também fora da capital, indo aos Estados quando senadores passavam por algum problema que envolvesse segurança, desde escutas clandestinas - evitavam algumas, faziam outras - a ações políticas mais amplas.
As varreduras nos gabinetes de senadores e mesmo em suas residências oficiais não caracterizam uma interferência nas investigações, mas, segundo o Ministério Público Federal, a situação foge do legal quando os endereços que passaram pela vistoria são de pessoas investigadas pelo Supremo Tribunal Federal devido ao foro privilegiado, e é utilizado dinheiro público para financiar as ações desses policiais, que recebiam diárias e passagens para atuar em outros Estados, fora da área permitida, que deveria ser restrita aos imóveis oficiais na Capital.
Mesmo assim, já houve abusos, como quando membros da Polícia do Senado tentaram impedir que a Polícia Federal entrasse no apartamento da Senadora Gleisi Hoffman para fazer busca e apreensão de objetos do maruido da senadora, o ex-ministro Paulo Bernardo, que acabou preso. Havia ainda atividades mais corriqueiras, como ajudar senadores e seus parentes a desembaraçar a bagagem no aeroporto, por exemplo.
É preciso que venham a público os "fatos gravíssimos" apontados pelo juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília ao acatar o pedido de prisão contra os policiais legislativos do Senado, que também levaram o ministro da Justiça, Alexandre de Moares, a afirmar que os agentes "extrapolaram suas funções".
Só assim saberemos se a polícia do Senado estava agindo fora da lei para proteger alguns senadores da Operação Lava Jato, ou se a Polícia Federal foi que abusou de sua prerrogativa, numa disputa corporativa com os agentes do Senado.
Não faz bem à democracia que exista uma polícia atuando paralelamente para a proteção do Legislativo, assim como não é aceitável que a Polícia Federal possa se aproveitar de uma investigação de repercussão nacional para cercear a atividade de segurança normal do Senado.
A história da polícia do Senado, no entanto, não favorece a versão de que agiam dentro do estrito cumprimento da lei. O Chefe do grupo, Pedro Ricardo, considerado pela Polícia Federal como líder de uma "associação criminosa armada", faz parte de uma tradição de agentes que sempre serviram aos senadores para além de suas atividades institucionais, especialmente o presidente da Casa.
O que agrava a situação do senador Renan Calheiros é que no mesmo dia em que a Polícia Federal pôs em xeque a atuação da Polícia Legislativa, seu nome aparece em delações premiadas como receptador de propinas vindas de diversas fontes. De acordo com reportagem da revista Época, os repasses a Renan Calheiros e Jader Barbalho, relatados aos Procuradores da Lava Jato por Felipe Parente, o homem da mala do PMDB se referem às empreiteiras Queiroz Galvão e UTC, e a uma empresa de afretamento de navios Teekay Norway, que chegou a dispor de sete embarcações de transporte de petróleo em alto mar exclusivamente contratadas pela Transpetro.
Sua ligação era Iara Jonas, assessora do Senado, que apanhava malas cheias de dinheiro em restaurantes do Rio de Janeiro. Também Sérgio Machado, indicado para dirigir a Transpetro por Renan, afirmou em sua delação premiada que era requisitado pelo presidente do Senado para dar mensalmente quantias para sustentar a atuação política do senador e seu grupo.
(Publicado originalmente em pontocritico.com 21/10/2013)
CAMPANHA DE SAÚDE PÚBLICA
Mais do que sabido há, no Brasil todo, uma exaustiva e continuada campanha de esclarecimento público, promovida pelo Ministério da Saúde, chamando atenção da enorme importância que tem para o país o combate ao mosquito -aedes aegypti-, um terrível inseto que transmite TRÊS DOENÇAS diferentes: dengue, febre chikungunya e vírus zika.
TECIDO DESTRUÍDO
Pois, diante do reconhecido e preocupante estado de saúde da economia brasileira como um todo, que destruiu grande parte do tecido social, cabe ao Ministério da Fazenda lançar uma forte campanha chamando atenção para a necessidade de combater as graves doenças que foram transmitidas pela MATRIZ ECONÔMICA PETISTA-BOLIVARIANA.
PARA MANTER VIVO
Para estancar a forte hemorragia dos GASTOS PÚBLICOS, o governo está empenhado em aprovar a PEC 241, ou PEC do TETO. Ainda que tal providência deva ser aplaudida e incentivada, é importante que todos saibam que tal aprovação nada mais é do que a condição para que o paciente -Brasil- se mantenha vivo. Atenção: permanece vivo, porém respirando por aparelhos.
TRÊS REFORMAS
Tomando por base o difícil quadro de saúde da economia brasileira, o Ministério da Fazenda deveria enfatizar, nesta sugerida campanha de esclarecimento público, que sem a realização de, no mínimo, TRÊS REFORMAS (Previdenciária, Fiscal e Trabalhista), o Brasil está condenado à morte por DOENÇAS MÚLTIPLAS.
O MOSQUITO É OUTRO
O que está levando a economia e o social do nosso doente Brasil a definhar, mostrando um quadro tétrico de continuado desânimo, não é um mosquito. Aí, vale a pena esclarecer, o inseto é outro: são as corporações, que pregam aos quatro ventos que as REFORMAS são prejudiciais ao país, quando, na mais pura verdade, só produzem saúde, em forma de justiça social, menor custo para a sociedade e mais eficiência nos gastos públicos.
PISO INTACTO
Pelo que se lê e ouve nos meios de comunicação, as corporações tem se mostrado, de forma desesperada, contrárias às REFORMAS. Sem exceção. No caso da PEC 241 o que mais tem feito é bombardear o necessário teto dos gastos públicos alegando, sistematicamente, que isto vai levar a saúde e a educação ao caos.
Ora, o que deveriam saber, e entender, é que, ao fixar um TETO NOS GASTOS, o governo mantém o PISO, que permanece absolutamente intacto.
UBER, O SÍMBOLO
Mudando de assunto, não posso deixar de mencionar a última estupidez que foi promovida, ontem, pela maioria dos vereadores de Porto Alegre: ao votar a regulamentação do UBER, foi aprovada a existência de uma quota de 20% de mulheres na composição da frota. Pode?
Creio que as mulheres deveriam protestar contra tal medida, pois além de ridícula não leva em conta que em nenhum momento o UBER discriminou quem queira aderir ao que determina o aplicativo. É DURO, GENTE, VIVER EM PORTO ALEGRE!
(Publicado originalmente em Zero Hora, 22/10/2016)
Durante toda a minha vida, ouvi o mesmo discurso de amigos e conhecidos. A mesma queixa, feita num tom entre o amargo e o irônico, entre o resignado e o enojado: o problema do Brasil era a impunidade, os poderosos jamais pagariam por seus crimes e tudo ficaria para sempre como sempre foi. O Brasil não tinha jeito.
Esses meus amigos, muitos deles intelectuais, jornalistas, advogados, políticos, quase todos "de esquerda", esses meus amigos suspiravam pelos países mais desenvolvidos, onde não havia tolerância com quem descumprisse a lei. Pois bem. Houve uma mudança no Brasil. Poderosos que descumprem a lei estão sendo investigados, processados e punidos. E aqueles meus amigos agora vão a público para reclamar... da punição.
O juiz Sergio Moro é o grande alvo desses intelectuais. Tenho lido e ouvido todo gênero de invectivas contra Moro, egressas inclusive de pessoas que eu admirava intelectualmente (sim, está no passado: admirava).
A má intenção das análises é compreensível: é fruto do dogma partido, das ilusões perdidas, das convicções abaladas.
Já a desinformação é imperdoável, sobretudo quando propagada por profissionais da informação. Moro é tratado por esses intelectuais como justiceiro. Bem. Mesmo que ele quisesse ser um justiceiro, não conseguiria. Moro é juiz de primeira instância, não tem poder suficiente para fazer o que seus críticos acham que faz.
Ontem, conversava sobre isso com o desembargador Eduardo Delgado, meu amigo, também ele perplexo com as reflexões absolutamente equivocadas cometidas por alguns de meus colegas. Eduardo lembrou que as decisões de Moro são revistas por no mínimo outros SEIS juízes, três desembargadores do TRF de Porto Alegre e três ministros do STJ. Isso se o caso não for parar no STF. Quer dizer: são TRÊS INSTÂNCIAS depois de Moro. Três instâncias que podem mudar tudo o que ele determinar. Moro não manda nada.
No famoso caso do Banestado, muitas das decisões de Moro foram revisadas pela mesma segunda instância que as apura hoje, o Tribunal Regional Federal, sediado em Porto Alegre. Moro condenou muita gente, naquele episódio, e a maioria de suas sentenças foi reformada. É provável que ele tenha aprendido com a experiência, porque, hoje, o índice de aprovação das suas decisões é de 96,4%. Considere que os advogados de defesa são alguns dos melhores do Brasil, e não há como não chegar à conclusão de que, pelo menos tecnicamente, esse é um juiz corretíssimo. Mas é erro grave acreditar que Moro é o único neste processo de transformação do Brasil.
Há outros juízes, promotores, policiais e funcionários públicos envolvidos, todas "pessoas comuns", nenhum deles poderia ser definido como um dos "poderosos" dos quais reclamavam meus amigos antigamente. São homens como eu e você, profissionais que estão fazendo apenas o que todos tentamos fazer: eles estão fazendo o seu trabalho. Estão fazendo a coisa certa. Mesmo assim, são criticados por esses intelectuais. E é isso que mais entristece, na situação do Brasil de hoje.
É descobrir que os que criticavam a impunidade dos poderosos não combatiam a impunidade: combatiam "aqueles" poderosos.
Porque hoje, quando os poderosos são amigos deles, ou estão no mesmo lado, eles anseiam pela impunidade, eles criticam a punição. Lembro desses meus amigos, colegas e conhecidos, tempos atrás. Como poetou Belchior e cantou Elis, na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais. Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos. E vivemos como nossos pais.
(Publicado originalmente no Diário do Poder)
O Brasil tinha todos os recursos para se transformar em imenso edifício, mas se esqueceu de construir a base sobre a qual edificaria seu futuro. Entre as muitas causas dessa fragilidade está a falta de base educacional e de credibilidade financeira. A conquista de credibilidade é condição básica para construir o edifício Brasil.
É nesse sentido que o país debate a decisão radical de impor constitucionalmente um limite nos gastos do setor público. Pode-se discutir se o teto deve ser reajustado apenas pela inflação ou levar em conta parte do aumento da receita de um ano para o outro, seja por melhor eficiência na arrecadação, pelo crescimento do PIB ou por aumento de impostos, mas, com a falência financeira do setor público e o descrédito de décadas de irresponsabilidade e inflação, a proposta de considerar a aritmética financeira é condição necessária para retomar a credibilidade e, em consequência, o crescimento do emprego.
Caso a regra já existisse, talvez não tivéssemos feito milagres econômicos, mas teríamos um edifício Brasil sólido, diferente do instável no qual vivemos e que deixaremos para nossas crianças. Além disso, o teto forçará debates sobre quais são as prioridades que a sociedade define, fazendo surgir os conceitos de “direita” e “esquerda” na escolha do destino dos recursos públicos limitados e sem a ilusão da inflação.
No lugar da mentira de aumentar gastos em todos os setores, sem disputas, como nos acostumamos, a política “cairá na real” e demonstrará quem escolhe os gastos sociais, dentro das possibilidades de uma economia eficiente, sem ilusões, acomodamento ou desperdícios, e com finanças equilibradas.
Mas o teto poderá impedir a construção da base educacional necessária se o Congresso não for capaz de agir para elevar as despesas no setor, graças à redução de outros gastos supérfluos ou injustos. Dependendo de força política, o teto não bloqueia mais recursos para saúde ou educação nem impede a continuação de obras faraônicas ou as políticas de subsídios a setores industriais ineficientes, nem evita privilégios salariais a marajás.
Tudo dependerá da força política. Será possível descobrir quem estará a favor da educação, porque agora precisará ficar contra gastos em outros setores. Os recursos limitados induzirão também quem é capaz de fazer mais, com menos gastos, graças à maior eficiência.
Não se deve esquecer que esse teto poderá ser mais um fracasso se se limitar às despesas sem ao mesmo tempo impedir a avassaladora pressão que existe, inclusive na Constituição, por mais gastos; e se não transferirmos para o setor privado os investimentos que não exigem exclusividade estatal.
Sem essas ações, em poucos anos, a PEC se esgotará e exigirá nova reforma da Constituição para liberar os gastos, aceitar a inflação e a crônica falta de credibilidade. Nesse caso, a crise fiscal se transformará em crise constitucional: será a crise do teto.
Cristovam Buarque é senador pelo PPS-DF.
(Publicado originalmente no Estadão, 22/10/2016)
Bastou a prisão de Eduardo Cunha para que as nuvens ficassem mais carregadas e os dilemas da República se agigantassem.
Já se sabia de tudo, mas a prisão trouxe à tona uma trajetória que chama atenção pela longevidade, pela desfaçatez e pelo tamanho das ilicitudes. Cunha tem peso próprio, não é um qualquer quando se trata de exploração das brechas existentes na legalidade e na cultura político-administrativa do Estado brasileiro. É um profissional. As acusações contra ele abrangem um leque impressionante de fraudes, negócios escusos, abusos e irregularidades. Vêm lá de trás, mais ou menos do final dos anos 1980. Como foi possível sobreviver durante tanto tempo e seguir uma carreira ascendente que poderia tê-lo levado à Presidência da República? O sistema assistiu impassível à performance, que teria continuado se não houvesse a Lava Jato.
No mínimo por isso, o juiz Sergio Moro merece aplausos. Ele está a desnudar os podres de nossa vida estatal, valendo-se de uma obstinação que o tem ajudado a resistir a intempéries mil, ainda que o levando em certos momentos ao limite da temperança e da moderação.
As vozes mais sensatas e certeiras da República afirmam que a pressão sobre Moro aumentará terrivelmente. A prisão de Cunha fará um tsunami desabar sobre o juiz, impulsionado tanto pelos ventos que sopram do lado dos que não desejam o prosseguimento da Lava Jato, quanto pelos vagalhões produzidos por aqueles que não gostam do estilo de Moro e o veem como autoritário. No governo Temer, no Congresso e na oposição, quem tem o rabo preso está suando frio. A lógica das coisas aponta na direção deles. Decaído o chefe, é de esperar que o restante dos dominós caia também, ou seja ao menos ameaçado. Sobretudo se Cunha der com a língua nos dentes, contar o que sabe, com quem tramou, por que o fez, quanto ganhou e quanto distribuiu. Nitroglicerina pura, que será por ele usada com inteligência estratégica e instinto de sobrevivência, atributos que não lhe faltam.
No day after da prisão, não faltou quem fizesse a ilação apressada: Cunha derrubará Temer ou lhe roubará as bases de apoio a ponto de levar seu governo à asfixia. Setores da direita e sebastianistas de esquerda deram-se as mãos, desavergonhadamente, para atacar as detenções preventivas decretadas por Moro. Alegaram que elas ferem o Estado de Direito, que a prisão de Cunha não passaria de pretexto para prender Lula, que a Lava Jato teria criado a imagem da “corrupção sistêmica” só para justificar o arbítrio da república de Curitiba e “criminalizar o PT”. Cunha seria mais uma vítima desse procedimento judicial que fere a justiça, abusa da autoridade e desrespeita direitos.
Moro respondeu quase de imediato. Em palestra feita em Curitiba para desembargadores e juízes do Paraná, reiterou que a “aplicação vigorosa da lei” é o único meio de conter casos de “corrupção sistêmica”. As detenções cautelares seriam indispensáveis, até para deixar estabelecido que “processos não podem ser um faz de conta”. E explicou: “Jamais e em qualquer momento se defendeu qualquer solução extravagante da lei na decretação das prisões preventivas”. Seria preciso manter viva a “fé das pessoas para que a democracia funcione”, ou seja, impedir que se perca a “fé maior, de que a lei vale para todos”.
Evidenciou-se assim que o juiz sabe que a pressão sobre ele continuará a crescer. A coisa toda, no fundo, pode ser vista de forma mais simples.
Quando gente de direita e de esquerda se une para atacar um juiz, é porque há algo de muito errado no xadrez político. A causa, no mínimo, torna-se suspeita de antemão, especialmente quando estruturada para proteger pessoas que estão a ser investigadas há tempo, com provas que se superpõem e se acumulam.
Um juiz tende a ter atrás de si todo o sistema da Justiça: outros juízes, promotores, procuradores, tribunais, leis, jurisprudências, ritos consagrados, policiais federais. Moro não é, evidentemente, uma unanimidade entre seus pares e há muito conflito entre os órgãos e os aparatos de investigação e penalização. Mas, de algum modo, atacar hoje um juiz como ele pode significar um ataque ao conjunto do sistema.
Afinal, tudo parece indicar que a “corrupção sistêmica” está aí e atingiu níveis graves, que precisam ser contidos não só por uma questão de justiça, mas também por uma questão operacional: o sistema enfartará se não for “purificado” e esvaziado de trambiques e sujeira. Se é assim, em maior ou menor grau, Moro tem razão quando fala que “a condição necessária para superar a corrupção sistêmica é o funcionamento da Justiça”. Não haveria por que propor alguma espécie de “solução autoritária”, mas é preciso que se tenha vontade para que os processos cheguem a bom termo.
Ações judiciais na esfera política são acompanhadas com interesse pela sociedade, especialmente numa época de informações intensivas e protagonismo das opiniões. O cidadão assiste àquilo como parte de uma “limpeza” que ele gostaria de ver realizada. Muitas vezes joga o bebê fora junto com a água do banho: condena todos os políticos sem se esforçar para perceber que há diferenças entre eles, raciocina com o fígado e bate em todos como se fossem farinha do mesmo saco.
Se uma sociedade rejeita a corrupção sistêmica, o enriquecimento ilícito e os políticos “sujos”, com seus empresários a tiracolo, então não será o ataque a um juiz que vai convencê-la do contrário. Tal ataque, porém, se bem-sucedido, poderá fazer com que ela não se mobilize.
Até prova em contrário, se a sociedade assim quiser e souber se manifestar, Moro seguirá em frente, contra o sistema político que deseja seu silêncio, contra o governo e a oposição, contra o histrionismo da direita e as lágrimas de crocodilo da esquerda.
*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp