• Olavo de Carvalho
  • 21 Janeiro 2018

Hipnotizada pela lógica do desejo, que não enxerga cura para os males senão na busca de mais satisfações e mais liberdade, como poderia ela descobrir que seu problema não é falta de bens ou prazeres, mas falta de deveres e sacrifícios que restaurem o sentido da vida e a integridade da alma? (Olavo de Carvalho)


Adam Smith observa que em toda sociedade coexistem dois sistemas morais: um, rigidamente conservador, para os pobres; outro, flexível e permissivo, para os ricos e elegantes. A história confirma abundantemente essa generalização, mas ainda podemos extrair dela muita substância que não existia no tempo de Adam Smith. O que aconteceu foi que o advento da moderna democracia modificou bastante a convivência entre os dois códigos. Primeiro elevou até à classe dominante o moralismo dos pobres: na América do século XIX vemos surgir pela primeira vez na História uma casta de governantes que admitem ser julgados pelas mesmas regras vigentes entre o resto da população. No século seguinte, as proporções se invertem: a permissividade não só se instala de novo entre a classe chique, mas daí desce e contamina o povão. É verdade que não o faz por completo: metade da nação americana ainda se compreende e se julga segundo os preceitos da Bíblia. Mas os efeitos da "revolução sexual" foram profundos, espalhando por toda parte o permissivismo e o deboche para muito além da esfera sexual. O episódio Clinton, perdoado pelo Parlamento após ter usado o Salão Oval da Casa Branca como quarto de motel, mostra que, para uma grande parcela da opinião pública, até as aparências de moralidade se tornaram dispensáveis. Um breve exame das estatísticas de gravidez infanto-juvenil e do uso de drogas mostra que idêntica transformação ocorreu nos países da Europa ocidental, onde a dissolução dos costumes já vinha desde o fim da I Guerra Mundial (v. Modris Eksteins, Rites of Spring ).

As conseqüências dessa transformação se ampliam para muito além do domínio "moral". Conforme vem demonstrando E. Michael Jones numa série memorável de estudos (Degenerate Moderns: Modernity as Rationalized Sexual Misbehavior , San Francisco, Ignatius Press, 1993, e volumes subseqüentes) , é aí mesmo que se deve procurar a causa do sucesso das ideologias totalitárias no século XX. Articulando o seu diagnóstico com o de Gertrude Himmelfarb em One Nation, Two Cultures: A Searching Examination of American Society in the Aftermath of Our Cultural Revolution (New York, Vintage Books, 1999), podemos chegar a algumas conclusões bem elucidativas.

O poeta Stephen Spender, após romper com o Partido Comunista, já havia admitido que o que conduzia os intelectuais ocidentais à paixão por ideologias contrárias à própria liberdade de que desfrutavam era o sentimento de culpa e o desejo de livrar-se dele a baixo preço. A origem dessa culpa reside no fato de que amplas faixas da classe média passaram a desfrutar de lazeres e prazeres praticamente ilimitados, sem ter de arcar com as responsabilidades políticas, militares e religiosas com que a antiga aristocracia pagava o preço moral dos seus desmandos sexuais e etílicos. Num tempo em que a França era o país mais cristão da Europa, Luís XIV tinha nada menos de 28 amantes, mas sua rotina de trabalho era mais pesada que a de qualquer executivo de multinacional, sem contar o fato, tão brilhantemente enfatizado por René Girard (Le Bouc Émissaire , Paris, Grasset, 1982), de que a função real trazia consigo a obrigação de servir de bode expiatório para os males nacionais: quando a cabeça de Luís XVI rolou em pagamento das dívidas de seu pai e de seu avô, isso não foi uma inovação revolucionária, mas o simples cumprimento de um acordo tácito vigente no cerne mesmo do sistema monárquico. Já na Idade Média, os encargos da defesa territorial incumbiam inteiramente à classe aristocrática: ninguém podia obrigar um camponês ou comerciante a ir para a guerra, mas o nobre que fugisse aos seus deveres bélicos seria instantaneamente executado pelos seus pares. Noblesse oblige : a classe aristocrática era liberada de parte dos rigores morais cristãos na mesma medida em que pagava pela sua liberdade com a permanente oferta da própria vida em sacrifício pelo bem de todos. A democratização da permissividade espalha os direitos da aristocracia por uma multidão de recém-chegados que de repente se vêem liberados da pressão religiosa sem ter de assumir por isso nenhum encargo extra, por mínimo que seja, capaz de restaurar o equilíbrio entre direitos e deveres. Ao contrário, junto com a liberdade vem o acesso a bens inumeráveis e a um padrão de vida que chega mesmo a ser superior ao da velha aristocracia – tudo isso a leite de pato. Ortega y Gasset notou, no seu clássico de 1928, La Rebelión de las Masas , que o típico representante da moderna classe média, o "homem massa", era realmente um filhinho-de-papai, um señorito satisfecho que se julgava herdeiro legítimo de todos os benefícios da civilização moderna para os quais não havia contribuído em absolutamente nada, pelos quais não tinha de pagar coisa nenhuma e dos quais, geralmente, ignorava tudo quanto aos sacrifícios que os produziram.

Por toda parte, nas civilizações anteriores, um certo equilíbrio entre custo e benefício, entre direitos e deveres, entre prazeres e sacrifícios, era reconhecido como o princípio central da sanidade humana. A liberação de massas imensas de população para o desfrute de prazeres e requintes gratuitos é uma das situações psicológicas mais ameaçadoras já vividas pela humanidade desde o tempo das cavernas. Para cada indivíduo engolfado nesse processo, o efeito mais direto e incontornável da experiência é um sentimento de culpa tanto mais profundo e avassalador quanto menos conscientizado. Mas como poderia ele ser conscientizado, se na mesma medida em que se abrem as portas do prazer se fecham as da consciência religiosa? O señorito satisfecho é corroído por um profundo ódio a si mesmo, mas está proibido, pela cultura vigente, de perceber a verdadeira natureza de suas culpas, e mais ainda de aliviá-las mediante a confissão religiosa e o cumprimento de deveres penitenciais. A culpa mal conscientizada, conforme a psicanálise demonstrou vezes sem conta, acaba sempre se exteriorizando como fantasia persecutória e acusatória projetada sobre os outros, sobre "o mundo" sobre "o sistema". O homem medianamente instruído do nosso tempo joga suas culpas sobre "o sistema", fingindo para si mesmo que está revoltado pelo que ele nega aos pobres, quando na realidade o odeia por aquilo que esse sistema lhe dá sem exigir nada em troca. Não que o sistema seja isento de culpas; mas a mesma prosperidade geral que espalha os benefícios da civilização entre massas crescentes que jamais poderiam sonhar com isso nos séculos anteriores mostra que essas culpas não são de ordem econômica, mas cultural: o capitalismo não cria miséria e sim riqueza; mas junto com ela espalha o laicismo e o permissivismo, rompendo o equilíbrio entre o prazer e o sacrifício, necessidade básica da psique humana. Daí o aparente paradoxo de que o ódio ao sistema se dissemine principalmente – ou exclusivamente – entre as classes que dele mais se beneficiam materialmente (lembre-se do que eu disse sobre o movimento gay no artigo da semana passada). A tentação socialista aparece aí como o canal mais fácil por onde as culpas do filhinho-de-papai são jogadas precisamente sobre as fontes do seu bem-estar e da sua liberdade.

Vejam essa meninada da USP, gente de classe média e alta, depredando uma universidade gratuita, e compreenderão do que estou falando: o que esses garotos precisam não é de mais benefícios; é de uma cobrança moral que restaure a sua sanidade. Mas, como os representantes do Estado são eles próprios señoritos satisfechos que também não compreendem a origem das suas próprias culpas, sua tendência é fazer dos jovens enragés um símbolo da sua própria consciência moral faltante; daí que lhes cedam tudo, num arremedo de penitência, corrompendo-os e corrompendo-se cada vez mais e precipitando uma acumulação de culpas que só pode culminar na suprema culpa da sangueira revolucionária. "Vivemos num mundo demente, e sabemos perfeitamente disso", dizia Jan Huizinga na década de 30, pouco antes que o desequilíbrio da alma européia desaguasse no morticínio geral. Transcorridas quase oito décadas, a humanidade ocidental nada aprendeu com a experiência e está pronta a repeti-la. Hipnotizada pela lógica do desejo, que não enxerga cura para os males senão na busca de mais satisfações e mais liberdade, como poderia ela descobrir que seu problema não é falta de bens ou prazeres, mas falta de deveres e sacrifícios que restaurem o sentido da vida e a integridade da alma?

Não é preciso dizer que a adesão ao Ersatz revolucionário e socialista, sendo na base uma farsa neurótica, não alivia as culpas de maneira alguma, mas as recalca ainda mais fundo no inconsciente, onde se tornam tanto mais explosivas e letais quanto mais encobertas por um discurso de autobeatificação ideológica (Marilena Chauí sonhava em "viver sem culpas"; o sr. Luís Inácio Lula da Silva admite modestamente ter realizado esse ideal). O ódio ao sistema – com sua expressão mais típica hoje em dia, o anti-americanismo — cresce na medida mesma em que a ilusão autolisonjeira da pureza de intenções induz cada um a sujar-se cada vez mais na cumplicidade com a corrupção e os crimes do partido revolucionário. Os capitalistas, os representantes do "sistema", por sua vez, aceitam passivamente ser objeto de ódio e até se regozijam nele, na vã esperança de assim purgar suas próprias culpas; mas, como estas não residem onde as aponta o discurso revolucionário, cada nova concessão ao clamor esquerdista os torna ainda mais culpados e vulneráveis.

Antecipando as análises de Jones e de Himmelfarb, Igor Caruso ( Psychanalyse pour la Personne , Paris, Le Seuil, 1962) localizava a origem das neuroses não na repressão do desejo sexual, mas na rejeição dos apelos da consciência moral. O abandono da consciência de culpa não pode trazer outro resultado senão a proliferação de culpas inconscientes. E as culpas inconscientes necessitam de novos e novos bodes expiatórios, cujo sacrifício só as torna ainda mais angustiantes e intoleráveis.

Diário do Comércio, 11 de junho de 2007
 

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  • Leonardo Giardin de Souza, promotor de Justiça.
  • 19 Janeiro 2018

 

O grande Percival Puggina, em recente publicação (1), trouxe à colação alguns excertos ilustrativos do pensamento da corrente ideológica hegemônica no Brasil em matéria de criminologia, direito penal e segurança pública. Alguns dos soi disant arautos da “tolerância”, da “democracia” e da “liberdade” foram acolherados em um único artigo, com o perceptível objetivo de que seu discurso de proveta, uniformizado e reproduzido em intermináveis operações de clonagem, adquirisse a aparência externa de um consenso dogmático revestido da mais absoluta cientificidade, fruto de sincera busca dialética da verdade, liberto de quaisquer ranços ideológicos. Malgrado, no entanto, esse verniz “científico”, a “disposição” para o debate desses “tolerantes” denuncia-se no título autoexplicativo do artigo: “A sanha punitivista e/ou a boçalidade do discurso da impunidade” (2).

Quem quer que leia o texto, assinado por Leonardo Yarochewsky, será imediatamente tomado pela sensação de que alguém está substituindo realidade por discurso: ou há uma “sanha punitivista” irracional e despropositada, movida por um mórbido e um tanto sádico “desejo” de jogar pobres e desvalidos em calabouços, ou tenta-se soterrar a realidade sob um sem-número de palavras-gatilho, clichês e chavões, a fim de gerar uma confusão dos demônios, desqualificar os pensadores antagonistas e desviar o foco do coitado do assunto.

Com acuidade e finíssima ironia, o professor Puggina limitou-se a transcrever, para nosso “deleite”, alguns cacos desse latão pseudocientífico banhado no ouro de tolo de títulos acadêmicos. Permite, assim, que o leitor julgue por si o conteúdo. Entretanto, permito-me tecer algumas considerações sobre o material generosamente trazido pelo brilhante escritor gaúcho ao conhecimento do público em geral. Evito, desse modo, ser confundido com os que, olimpicamente, passam ao largo do pensamento alheio, substituindo-o convenientemente por rótulos e etiquetas, calculados para inibir o incauto leitor de travar qualquer tipo de contato substancial com o que querem proibir.

Em sua compilação, Yarochewsky, advogado criminalista e doutor em Ciências Penais, “denuncia” algo que nomeia “criminologia midiática”. Para ele, o “discurso” da impunidade contribui “para o avanço do Estado autoritário e para a cólera do punitivismo”, o que geraria uma “tendência” à proposição de leis “com viés autoritário, conservador e reacionário.” Yarochewski, confiante no impacto a ser causado por conta do costume arraigado no nosso mainstream de torcer o nariz para o termo “conservador”, coloca o maltratado epíteto convenientemente ao lado de termos aterrorizantes como “reacionário” e “autoritário”.

Na monumental obra “A Corrupção da Inteligência”, Flávio Gordon explica - por meio de uma analogia com o conceito de “marcação” da linguística estrutural - como a classe falante brasileira “normaliza” sua própria visão sobre determinados assuntos, dando ares de logos dogmático a perspectivas francamente minoritárias em comparação com o que pensa o cidadão comum. Este, sem meios de expressar coletivamente seu pensamento, acaba por sentir-se um fragmento “anormal” que boia caoticamente em um oceano de unanimidade. Os pontos de vista “não marcados” são o “padrão”, referenciados de forma neutra, e os pontos de vista “marcados” passam por específicos e parciais. Eis o estratagema utilizado por Yarochewsky: “marcar” quem não comunga de seu ideário como “conservador”, “autoritário”, “reacionário”, “punitivista” e “colérico” para, em seguida, valer-se de um velho e surrado clichê, dado como pressuposto científico indiscutível: a prisão se destina aos “criminalizados” por um “processo de estigmatização, segundo a ideologia e o sistema dominante”. Reverbera o discurso pueril da criminologia crítica marxista - todo ele baseado em inversão de causa e efeito e sua confusão com condições e influências.

Yarochewski cita Ricardo Genelhú, que, brandindo o título de pós-doutor em Criminologia, afirma que “o discurso contra a impunidade tem servido de motivo para uma suposta restauração da ‘segurança social’”, mas não passa de “desculpa para a perseguição ao “outro” (...) com seu ensaio neurótico promovido por pessoas com onipotência de pensamento”, servindo mais “para ‘justificar’, ‘ratificar’ ou ‘manter’ a exclusão dos ‘invisíveis sociais’, tragicamente culpados e, por isso, incluídos por aproximação com os ‘inimigos’ (parecença), do que para demonstrar a falibilidade seletiva e estrutural do sistema penal antes e depois que um ‘crime’ é praticado, ou enquanto se mantiver uma reserva delacional publicizante, seja porque inafetadora do cotidiano privado, seja porque indespertadora da cobiça midiática." A primeira ideia que me veio à mente ao travar contato com esse estilo intragável, pedante e de pouca inteligibilidade ao vulgo, foi o indefectível diagnóstico de Roger Scruton, para quem “o jargão afetado e sem sentido é muito mais eficaz na propagação das opiniões de esquerda e progressistas do que os argumentos bem fundamentados”, em razão de que “quando afirmadas explicitamente, expõem-se à ameaça de refutação, algo a que elas nem sempre sobrevivem”(3) . Quando ao jargão afetado une-se o manjadíssimo truque “xingue-o do que você é, acuse-o do que você faz”, a coisa assume ares de escandaloso golpe contra o debate racional. É até ofensiva a desfaçatez de alguém que, arrogando-se a condição de dono da verdade e demonstrando verdadeiro horror à divergência, aponte no outro, e não em si, “neurose” e “onipotência de pensamento”. Acresce-se a isso a audácia de falar em “perseguição ao outro”, embutida em um sujeito que demite o delinquente de sua própria condição humana, ao negar-lhe capacidade decisória fundada na autoconsciência e na liberdade individual. Ao mesmo tempo, objetifica a vítima como instrumento de busca de bens materiais pelo “excluído social” que ele mesmo, ao fingir defender, despersonaliza e equipara a um animal que age movido apenas por instintos e reflexos condicionados. Dividir o mundo entre “nós” e “eles”, prática indissociável dos intelectuais marxistas, implica assumir a visão de um mundo de objetos, sem sujeitos, cuja consequência necessária é falta generalizada de empatia com o próximo. Eis o perfil real de certos intelectuais que denunciam atentados à “outridade”, e que, quando convém, utilizam a palavra crime entre aspas.

Yarochewski prossegue invocando Salo de Carvalho, advogado e professor, que diz haver um “sintoma contemporâneo” que denomina “vontade de punir”. Nada pode ser mais projetivo: ao medir o outro com sua própria régua, o citado jurista não faz nada além de criar um espantalho com quem brigar, de pronto decalcando-lhe na testa o oposto de seu ideário laxista (a vontade férrea de não punir bandidos que não respeitam nenhuma “outridade”). Por meio dessa variante da cosmovisão “nós x eles”, retira providencialmente o debate do campo da discussão sobre a necessidade de punição para a seara da voluntariedade. Note-se que é exatamente essa a condição mental na qual surge a decisão de cometer um crime. Carvalho parece identificar-se com esse voluntarismo, para o qual quer atrair, na base de um tu quoque invertido, os que defendem resposta adequada e proporcional à conduta de um malfeitor. Essa postura intelectual abre campo a uma discussão que resultará inexoravelmente na escolha do tipo de arbítrio que deve prevalecer. Daí porque o próprio Salo nos impõe um dilema, sem notá-lo, entre dois tipos de arbítrio: o da “democracia substancial” (marcação “neutra” ou com aparência científica), que blinda a decisão de delinquir sob uma carapaça causal-determinista, ou o “das macropolíticas punitivistas (populismo punitivo), dos movimentos políticos-criminais encarceradores (lei e ordem e tolerância zero) e das teorias criminológicas neoconservadoras”, marcados com rótulos de intenção de significado infamante, que nem de longe refletem o apelo à justa retribuição que embasa o pensamento “analisado”.

Por fim, Marildo Menegat, pós-doutor em Filosofia, sob aplausos efusivos de Gramsci e Alinsky desde algum círculo profundo do inferno, clama pela “politização” do debate, “o único caminho para pôr termo, quem sabe aos martírios e sacrifícios desde sempre praticados” pela “espécie” humana. Não se sabe em que sentido a politização da potência de fazer o mal poderia servir para corrigir essa tara inata dos indivíduos humanos, que se atualiza pari passu com seu tratamento “politizado”. Mas por que não buscar reduzir os “martírios e sacrifícios” provocados por tantos criminosos “empoderados” pelo discurso justificador e pela cultura da bandidolatria, de cuja conduta resulta o sacrifício de 60.000 brasileiros por ano? Pois, alheio a isso, Menegat propõe que “é hora de nos entregarmos à realização da liberdade e, para isso, o fim das prisões torna-se imperativo”, sem esclarecer a liberdade de quem seria “realizada” com o fim das prisões e a consequente libertação de toda sorte de assassinos, assaltantes, traficantes e estupradores. No entanto, há algo a comemorar no discurso, que encerra, com chave de ouro, o trailer do inferno coletado com luvas de laboratorista pelo mestre Puggina: a confissão espontânea, compartilhada pelos desencarceramentistas, da mais descarada apologia do abolicionismo penal. É evidente que convém a esse grupo ideológico travestido de científico, em sua “sanha” laxista e seu abolicionismo “colérico”, que as prisões sejam lugares cada vez mais inabitáveis, para que possam berrar neuroticamente, aos quatro ventos, a “falência” do sistema e exigir de modo autoritário sua extinção. Quando um porta-voz dessa ideologia afirma que o sistema carcerário “faliu”, é algo como Caim avisar candidamente que Abel “morreu”.

Para esses intelectuais orgânicos, apontar racionalmente a necessidade de uma punição adequada aos crimes cometidos voluntariamente por agentes individuais - abordando do ponto de vista empírico a chaga da impunidade - torna-se, num grotesco truque de mágica, “desejo” de punição, “cólera” e “sanha” persecutórias, “neurose” e delírio de onipotência. Exclui-se da esfera do pensamento racional a argumentação do oponente de ideias para jogá-la indevidamente na seara da psicopatologia. Sobre isso, diria Pirandello: ma non è uma cosa seria! Nesse campo, quanto mais a vítima da artimanha maliciosa se defende, mais louca parece aos desavisados. Ante tamanho grau de impostura com verniz de pseudociência, só resta render-me à “metodologia” desses doutos ilusionistas e desmascará-los: “é golpe!”.

Sempre desconfiei que esses senhores julgassem idiotas todos os demais membros da humanidade, à exceção dos iniciados nos ritos de sua igrejinha acadêmica. Mas não imaginava que fizessem tão pouco da inteligência alheia, ignorando ao mesmo tempo a catastrófica situação de sua própria. Esse paradoxo é muito bem observado e descrito por Flávio Gordon, para quem esses intelectuais são as primeiras vítimas do fenômeno que ele denomina, em seu extraordinário livro homônimo, “a corrupção da inteligência”, espécie de corrupção não criminalizável porque não se refere a um fenômeno causal, mas é fruto de uma alteração substancial do ser que afeta de forma trágica o intelecto e a personalidade do agente-vítima. Quem quer que pretenda nunca mais entender coisa alguma, que ingresse resoluto nessa prisão mental e jogue a chave fora, como fazem esses homens. Sendo essa uma decisão livre, de nada adianta buscar culpados que não sejam as próprias vítimas desse longo e doloroso processo de suicídio intelectual.

Essas observações aparentemente irreverentes não constituem de maneira alguma insultos ou adjetivações gratuitas. Busca-se uma descrição que só adquire contornos ácidos justamente por respeitar o objeto, descrevendo-o com fidelidade. Vimos que esses intelectuais ousam sugerir, senão afirmar, que impunidade não existe neste paraíso perdido. Não passaria de um “discurso midiático” forjado para gerar “autoritarismo” e “criminalizar” os “excluídos”. É perceptível que, não dispondo de meios racionais para refutar uma realidade indesmentível e brigar com os fatos (4), somente resta-lhes um apelo emotivo: imputar intenções malignas e soturnas, temperadas de estupidez e ignorância, àqueles que ousam descrever o que qualquer um vê com os olhos da cara. Arrogam-se a condição de defensores de uma humanidade que só amam em abstrato. A impunidade real cuja ostensividade e feiúra estampada em seus frutos cotidianos é insuportável à visão daqueles que se comportam ao modo avestruz, deve ser, juntamente com a humanidade de carne e osso que sofre com a criminalidade, convenientemente posta de lado e excluída do debate. Em seu lugar, entra em cena uma “impunidade” prêt-a-porter, mistificada, retórica e evanescente, moldada como espantalho para uso dos “defensores” de um humanismo sem humanidade, abstrato, insípido, inodoro, incolor e sem sangue. Assim, esperam tornar politicamente incorreto o uso da própria palavra “impunidade” e estigmatizar quem dela se vale como instrumento de descrição dos fatos.

É preciso estar demasiado fora da realidade para crer haver “punitivistas encolerizados” à mancheia, como lobos perseguidores, prontos a devorar pobres cordeirinhos marginalizados (5) pela sociedade e empurrados inexoravelmente para a criminalidade por culpa de entidades etéreas como “capitalismo tardio” e “sistema burguês”. De fato, parafraseando o professor Percival Puggina, a imagem do restante da biblioteca deve ser imprópria para menores, e aqueles que sustentam nossas universidades com o suor do próprio rosto, na vã ilusão de estar investindo em conhecimento e ensino “superior”, devem atentar para esse tipo de conteúdo nefasto e imbecilizante, a ser neutralizado não mediante censura, mas pela persistente exposição dessas ideias, por si aptas a causar repulsa, e pela contínua análise crítica desse pensamento destrutivo. Somente assim serão criados anticorpos intelectuais para defesa de mentes incautas, expostas ao fluxo torrencial desse ideário maligno nas artes, nos meios de comunicação e nos ambientes acadêmicos.
 

(1)  http://www.puggina.org/artigo/puggina/conheca-o-pensamento-dos-defensores-da-impuni/10951
(2)  http://emporiododireito.com.br/backup/a-sanha-punitivista-eou-a-bocalidade-do-discurso-da-impunidade-por-leonardo-isaac-yarochewsky/
(3)  ROGER SCRUTON, “Uma Filosofia Política: Argumentos para o Conservadorismo”. É Realizações, p. 137.

(4) Vivemos em um país cujos níveis de elucidação de homicídios atinge até 8% (ainda assim superior à taxa de esclarecimento dos crimes em geral), que registra mais de 1.700.000 roubos por ano (dos quais um Estado como o Rio de Janeiro consegue apurar menos de dois por cento dos autores), em que há cerca de 700.000 mandados de prisão em aberto (o número de foragidos supera o de encarcerados em nosso país “autoritário”), e onde a punição efetivamente aplicada dilui-se em progressões de regime carcerário cuja velocidade é turbinada com remições, “prisões” domiciliares, monitoramento eletrônico, fugas etc.
 (5) Uma dessas “vítimas do sistema” é o hoje “jurista” Marcinho VP, líder da facção criminosa Comando Vermelho. Recentemente, VP anunciou que irá lançar um livro sobre o que entende por “direito penal do inimigo”, que muito bem poderia ser prefaciado por qualquer um dos doutos aqui citados: as ideias defendidas pelo novel “doutrinador”, atualmente hóspede da Penitenciária Federal de Mossoró, RN, muito se assemelham aos excertos analisados no presente texto.

 

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  • Ênio Meneghetti
  • 18 Janeiro 2018

 

Mesmo não sendo advogado, semana passada redigi e enviei uma representação à primeira instância do MPF aqui no RS, pedindo providências legais sobre o flagrante descumprimento, por Dilma e Lula, do disposto no Artigo 49 de nossa Constituição, quando governantes.

O Artigo 49 da CF determina como competência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.

A questão é elementar e pode ser compreendida com a resposta a três simples quesitos:

a) O Brasil emprestou dinheiro a países da África e América do Sul nos governos Dilma Vana Roussef e Luiz Inácio Lula da Silva? Sabe-se que a resposta é SIM.
b)Tais empréstimos a países estrangeiros foram submetidos e tiveram a aprovação do Congresso Nacional, conforme determina o Artigo 49 de nossa Constituição? Sabe-se que a reposta é NÃO.
c) Foi dada PUBLICIDADE dos CONTRATOS, de suas cláusulas até hoje secretas e detalhes, como taxas de juros subsidiadas, firmados pelos dois presidentes brasileiros, conforme determina nossa Legislação? Sabe-se que a resposta é NÃO.

Várias vezes foi noticiado que “investigações” estariam sendo feitas sobre este assunto gravíssimo, onde foram enterrados bilhões que estão nos fazendo falta agora. “Pedidos de explicações”, foram encaminhados, só resultaram em informações vagas e insuficientes. De concreto, até hoje, apenas a certeza que o Brasil jogou uma enorme quantia de dinheiro fora, por ordem de Dilma e Lula.

Moçambique é o primeiro de uma série de calotes que o BNDES levará, dentre todos os empréstimos ilegais concedidos nos governos Lula e Dilma a países da África e da América Latina sem as mínimas condições de honrarem os pagamentos.

Entre os países que dificilmente honrarão os pagamentos temos Argentina, Angola, Bolívia, Costa Rica, Equador, Gana, Honduras, Guatemala, Moçambique, Nicarágua, Panamá, Peru, República Dominicana, Venezuela, etc.

Por absurdo que possa parecer, não há informações precisas sobre o montante do abuso cometido. Consta que o valor médio de cada obra ficou em mais de um bilhão de reais e que vários dos países agraciados tiveram mais do que apenas uma intervenção.

A quantia final da orgia com o dinheiro do contribuinte brasileiro literalmente posto fora chega a muitos bilhões de reais.

Isto é muito grave, é ilegal e não pode ficar impune.

Quando receber resposta sobre o andamento da representação enviada, imediatamente informarei.

 

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  • Alexandre Garcia
  • 18 Janeiro 2018

 

As ameaças, intimidações e pressões que a Justiça Federal vem recebendo, fazem lembrar a intervenção chavista na Suprema Corte da Venezuela. A Presidente do PT faz alusões a “mortes”; militantes fanatizados prometem quebrar a cabeça de juízes; partidários do réu anunciam que não vão aceitar uma eventual confirmação da sentença do Juiz Sérgio Moro. São manifestações que me fazem lembrar de 1963, quando eu ouvia discursos sobre a reforma agrária “na lei ou na marra”. O grupo que ameaçava com isso, acabou sendo retirado na marra. Quando se sai do caminho civilizado, democrático, entra-se na lei das selvas, onde prevalece quem tem o calibre mais grosso.

Agora chega-se ao cúmulo de o desembargador presidente de um Tribunal Federal precisar pedir garantias para a incolumidade dos juízes daquele foro e de suas famílias. Isso rebaixa ainda mais o Brasil no nível da democracia. Juízes com frequência têm precisado de guarda-costas para exercerem seus encargos, o que mostra o avanço do crime. Faz lembrar dos atentados, na Sicília, em que a Máfia explodiu juiz e procurador. E não vale atribuir apenas à ignorância, ao fanatismo, ao desconhecimento de como funciona uma democracia, porque até dirigentes de partidos e detentores de mandato popular têm pregado a violência e o desrespeito à Lei e à Justiça como reação.

O diálogo e a argumentação que nos foram legados há mais de 2 mil anos pelos gregos, estão sendo esquecidos no Brasil, assim como a organização dos poderes do estado, demonstrada por Montesquieu, há 300 anos. E há um silêncio significativo por parte dos políticos citados na Lava-jato. Eles devem estar pensando: se pegarem um líder popular como Lula, o que vai ser de nós? Como estão em pecado, são solidários com os que estão atirando pedras. Por outro lado, seus contrários igualmente convocam reações violentas para conter os manifestantes. Coisa do mesmo nível grosseiro e violento de torcidas organizadas que se engalfinham.

Há lei para tudo isso. O Código Penal prevê crime de ameaça e crime de obstrução à Justiça, assim como pune agressão física ou dano ao patrimônio público. Parece um desespero que o Doutor Freud explica. Perderam a matriz, quando acabou a União Soviética, perderam a alternativa, quando a China virou capitalista; caiu o Muro de Berlim, Cuba e Venezuela afundaram e agora podem perder aquele que finalmente lhes deu poder, ainda que não fosse movido pela ideologia. Mas houve o devido processo legal e não há tribunal de exceção, como nas ditaduras extremistas. O jus sperneandi – o direito de espernear – é limitado pela lei, na prática da democracia.

• Publicado originalmente em www.sonoticias.com.br

 

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  • Ipojuca Pontes
  • 18 Janeiro 2018

 

Ia escrever sobre a nova revolução cultural da China, nação escravocrata transformada em poderosa máquina de guerra cujo principal objetivo (já denunciado por inúmeros analistas militares) é avançar sobre o mundo livre e estabelecer a hegemonia comunista em escala planetária. Como se sabe, a China do ditador Xi Jinpíng - que está comprando o Brasil a preço de banana - virou potência econômica vendendo produtos ordinários mal copiados da indústria dos EUA para investir pesado em ogivas nucleares e estoques de bombas atômicas em quantidades inimagináveis por russos ou norte-americanos desde os tempos da Guerra Fria (que, de resto, nunca terminou).

Em âmbito interno, mas com repercussão mundial, foi anunciado que a ditadura de Xi, reeditando as coordenadas da sangrenta revolução cultural do pedófilo Mao Tsé-tung, vai reunir escritores, artistas e intelectuais num retiro dos cafundós de Hangzhou a fim de que assimilem os meandros do “novo pensamento socialista com características chinesas” – uma deliberação do 19° Congresso do PCC que enquadra a cultura e as artes nos cânones adotados pela nefasta ortodoxia marxista-leninista. Para tanto, mais de cem cineastas, atores e cantores pop foram reunidos num “colégio doutrinário” para que “não cometam desvios” e aprendam a “exaltar nosso partido, nosso país, nosso povo e nossos heróis”. A catequese, ou lavagem cerebral, como queiram, está sendo administrada por teóricos do PCC especializados em formular estratégias para o acirramento de “luta de classes”.

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Dito o que, passemos à “Polícia Federal – A lei é para todos”, um filme decente, imprevisível no atual panorama do cinema brasileiro (totalmente dominado por militantes políticos às esquerdas há, pelo menos, quatro décadas). Negócio sério. (Por essas bandas, creio, seria jogar dinheiro fora, como faz hoje o PC chinês, reunir nos cafundós do Judas gente de cinema para fazer qualquer tipo de lavagem cerebral. Por razão elementar: no capítulo “seguir os ditames do marxismo-leninismo” a rapaziada cabocla tem a cabeça feita – por vocação ou malandragem - desde a mais tenra infância).

Confesso que, por preconceito, só agora vi “Polícia Federal – A lei é para todos”. Sabe como é: cinema político brasileiro filtrado na grana pública pode ser uma furada. Depois, por acaso, vi O Globo ilustrar a avaliação crítica do filme com o Bonequinho dormindo. “Bem” – pensei comigo – “se a mídia global (amestrada) se manifesta contra é porque temos, no mínimo, um filme decente”. E não deu outra.

 “Polícia Federal”, pela clareza e integridade (vide leis estéticas de Aristóteles) é obra lapidar. No futuro, quem quiser ver algo confiável sobre a Era Lula, terá no filme, oportuno, um documento único, incontornável e imprescindível.

Trata-se de um thriller político muito bem produzido (Tomislav Blazic, sem dinheiro público), eficientemente dirigido (Marcelo Antunez) e excepcionalmente adaptado (do livro homônimo de Carlos Graieb e Ana Maria Santos) e melhor roteirizado (Thomas Stavros e Gustavo Lipsztein). A correção, a harmonia e o empenho do elenco asseguram a depurada credibilidade interpretativa difícil de encontrar em filmes do gênero, aqui ou lá fora (com destaque para o trabalho de Ari Fontoura, no papel de Lula, um caso de osmose reversa). Enfim, em termos de fluência narrativa e escritura fílmica (cinegrafia), a fita só encontra paralelo no admirável thriller (de idéias) “Margin Call – O dia antes do fim” (EUA, 2011 – de J. C. Chandor), obra-prima sobre os percalços do rombo financeiro de Wall Street, em 2008).

Parafraseando Nelson Rodrigues, só a má cínica ou a obtusidade córnea da crítica engajada pode acusar “Polícia Federal – A lei é para todos” de alguma parcialidade. Um desses “opiniáticos”, curiosamente de jornal cujo controle editorial é mantido a ferro e fogo por proto-esquerdistas, chega a sugerir que o melhor seria não fazer o filme e “esperar o fim da Operação Lava-Jato” para fazê-lo – uma idéia de asno, claro.

Muito bem, admitamos, por hipótese, que o filme só fosse realizado quando o processo de Lula chegasse ao fim. Quanto tempo ele poderia demorar? É público e notório que Lula (e sua quadrilha) nomeou 7 dos 11 ministros que compõem o STF (um deles, Toffoli, advogado e cria do PT). De fato, com os bilhões (de dólares) que surrupiou da nação poderá procrastinar tal julgamento com chicanas advocatícias durante pelo menos 10 anos. Sem desprezar a hipótese – implausível, mas não impossível - do velho predador, com o apoio da mídia camarada, voltar ao poder.

Em suma: neste caso, “Polícia Federal” jamais seria produzido e o distinto público, aqui e no exterior, ficaria sem saber se, no Brasil, depois de assistir ao firme relato da tramoia socialista, a “lei é para todos” ou não.

Para não ser preso, Lula, com Dirceu e asseclas, vem “fazendo o diabo” para ver o circo pegar fogo.

Na sua guerra de guerrilha, intimida juízes e ameaça desembargadores, explora fake news em profusão, arma o exército de Stedile e atiça milhares de militantes integrados no aparelho do Estado com o propósito de, em Porto Alegre, no dia 24, explodir o “Dia do Ódio”. Grana e aliados não lhes faltam. Resta saber se os 59% dos brasileiros que querem ver Lula por trás das grades vão ficar de braços cruzados.

Lula, sujeito indecente, sem nenhum compromisso moral, ético ou religioso, corrompeu e transformou a própria vida e a vida da nação num charco de lama purulenta. O Brasil, depois de treze anos sob sua tutela, acanalhou-se numa escala sem precedentes. Hoje, já não há esperança possível para arrancá-lo da degradação.

Mas, há uma certeza: ver Lula, o Chacal, por trás das grades!


*Publicado originalmente no Diário do Poder
     

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  • Guilherme Fiuza
  • 16 Janeiro 2018

 

 

Dizem que o Brasil vive uma nova onda de censura e moralismo conservador. Já temos inclusive vigilantes guardiões da liberdade de expressão e dos bons costumes atuando vigorosamente. Eles denunciaram, por exemplo, a queima de uma boneca representando a feminista Judith Butler em frente ao Sesc Pompeia, em São Paulo, onde a filósofa americana palestrava. Os arautos da liberdade disseram que os reacionários usaram métodos medievais para reprimir a defesa dos direitos da mulher.

É isso aí. Cada um tem o direito de falar o que quiser, onde quiser, dentro das regras da democracia. Não é isso? Bem, mas então surge a pergunta: onde estavam esses mesmos ativistas libertários que não toleram a censura quando a blogueira cubana Yoani Sánchez foi impedida de falar, no grito, nessa mesma cidade de São Paulo?

Diferentemente de Judith Butler, Yoani não conseguiu nem fazer a palestra para a qual fora convidada – onde, sintomaticamente, denunciaria o autoritarismo e a falta de liberdade na ditadura socialista da ilha. E ela estava dentro de uma livraria. Não teve conversa: aos berros, os manifestantes progressistas, libertários e adversários da sociedade moralista e conservadora calaram a palestrante. Impediram na marra que ela expressasse suas ideias. Reacionários são os outros.

Não houve nenhuma grita contra a censura por causa disso. Ao contrário, de lá para cá surgiu um movimento – organizado pelas mesmas figuras desse 342 contra as trevas – chamado Procure Saber, nascido basicamente para lutar pela censura prévia a biografias não autorizadas. Um primor de liberdade, estrelado por esses mesmos heróis da MPB que estão aí gemendo contra a onda conservadora. Reacionários, obscurantistas, autoritários e medievais são os outros. É proibido proibir – a não ser que estejam atrapalhando meus negócios, minha lenda, meu presépio de bondade tarja preta.

Não deixa de ser comovente todo esse esforço para a construção de um inimigo imaginário. Agora os arautos de laboratório estão gritando contra o tabu da nudez. Tabu de quê? No ano de 2017? Depois de tudo que a TV e a internet escancararam para todas as idades e em todos os lares, eles resolveram querer chocar a burguesia de novo ficando pelados... Nostalgia é fogo. Melhor nem contrariar. Como você vai conversar a sério com alguém que quer ser vanguarda de museu? Outro dia no Rio de Janeiro havia um grupo de mulheres fazendo topless contra a onda conservadora. Uma graça, parecia foto de época. Daqui a pouco elas descobrem a pílula anticoncepcional.

Enfim, inventaram a luta pela liberdade de cativeiro. O sujeito quer de qualquer maneira ser herói da contracultura e se propõe obstinadamente a uma masturbação cenográfico-temporal para fingir que o mundo vive dilemas de meio século atrás. É a mais completa definição do reacionário, coitado, mas ele ainda encontra plateias aplaudindo sua modernidade mórbida. Normal. Atrás dos muros altos também há vários Napoleões ganhando guerras entre um banho de sol e outro.

Os ativistas intrépidos das liberdades não se importaram com a ideologização vagabunda das provas do Enem. Não há problema transformar educação em panfleto. E ainda surgiu o requinte da ameaça de nota zero para o estudante que afrontasse os direitos humanos – e se você quiser imaginar quem, nesse caso, decidiria o que são direitos humanos, basta lembrar do bando que calou Yoani Sánchez no berro. É isso aí. Professores simpatizantes do PSOL, dos black blocs, do MST, do Maduro e grande elenco da fofura revolucionária avisando: quem desrespeitar os direitos humanos leva porrada.

Não tinha o general que ameaçava prender e arrebentar quem fosse contra a abertura política? Então por que os Napoleões de hospício da contracultura não podem barbarizar os subversivos que ousarem atrapalhar a lenda deles?

Os novos heróis da liberdade de cativeiro não gritam contra a campanha medieval para matar os aplicativos de transporte, não gritam contra a tentativa de censura da exposição sobre as vítimas de Stálin, não gritam contra a repressão sexual às mulheres e a escravização do povo nos regimes que seus amiguinhos do PT, PSOL e companhia apoiam. Censura é o que eles apoiam todas as noites nos seus travesseiros.


• Publicado em 16/11/2017 na revista Época
 

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