Percival Puggina

06/01/2015

O Partido dos Trabalhadores mantém uma relação muito própria com a realidade. A exemplo dos partidos totalitários, os fatos, para o PT, são meras referências a partir das quais são concebidas e propagadas as versões mais convenientes. Três fatores se têm revelado utilíssimos para que cada versão, malgrado sua desconexão com os acontecimentos, produza o efeito político pretendido.

O primeiro desses fatores é a velocidade com que a máquina publicitária petista produz e distribui a versão mais proveitosa. É imperioso que chegue a todos os cantos do país simultaneamente com a notícia a partir da qual a versão foi construída. O partido dispõe, então, de numerosa e bem organizada rede de reprodução e repetição das versões que constrói. Em instantes, no canto mais remoto do país, onde houver um vereador do PT ou um dirigente partidário local, ele sabe muito bem o que deve propagar e repetir incessantemente sobre cada assunto de interesse da sigla. Bastaria essa coesão para fazer da mentira verdade e da verdade mentira. Nada que não tivesse sido utilizado antes por todos os partidos de viés totalitário, ao longo do século 20. Inclusive o anseio por reescrever a história, transformando bandidos em heróis e vice-versa, sempre com base nas versões construídas. A Comissão da Verdade é o recente exemplo local de algo que foi prática corrente no mundo comunista.

O segundo fator tem a ver com a fragilidade intelectual do grande público. Quem faz política com astúcia conta com ela e dela se aproveita. Valem-se dessa fragilidade, aliás, todos os vigaristas bem sucedidos. Confiam nela os mentirosos, nas muitas esferas da vida social. Não bastasse isso, é fato: quase sempre, a mentira bem contada é mais atrativa do que a verdade.

O terceiro fator é uma peculiar idiossincrasia de parte da imprensa brasileira que exige de si conduta estéril, uma azoospermia que parece não ter cura, uma equidistância em relação a toda divergência. Graças a isso, mentira e verdade se defrontam com igualdade de condições. Ponto e contraponto. Ainda que um ou outro seja descarado embuste, são raras, entre nós, matérias editoriais desmascarando tramoias. Mesmo se produzidas em série, como as que rechearam o discurso de Dilma.

Os textos que ela leu durante a posse, preparados por ghost writer, formam duas coletâneas de exemplos do que examinei acima. Versão, versão, versão, ufanismo, falsidade e mistificação. Graças a esse menosprezo aos fatos, a presidente pode afirmar, sob aplausos, que esta é a "primeira geração de brasileiros que não vivenciou a tragédia da fome". Graças a ele, a presidente mencionou os escândalos que espocam na Petrobras feito milho de pipoca como se fossem causados por seres alienígenas vindos de algum planeta capitalista. Graças ao mesmo menosprezo pela verdade e pelos fatos, ela referiu um compromisso com a "Pátria Educadora" (meu Deus, que diabo será isso?) depois de haver entregue o Ministério da Educação a um ex-governador que absolutamente não é do ramo. Graças a ele, prometeu extirpar a corrupção no mesmo dia em que chamava para integrar seu ministério pelo menos uma dúzia de políticos envolvidos em denúncias de corrupção. E por aí foi Dilma, comprometida com muito mais do mesmo.

* Percival Puggina (70), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

04/01/2015

Um bom governo não se faz com discursos e estardalhaço publicitário, mas com boas práticas e boas iniciativas. O primeiro governo Dilma não conseguiu ir além do discurso naquilo que mais importa: uso criterioso dos recursos públicos e desenvolvimento econômico. Por mais que o governo, a cada novo escândalo, insistisse em se atribuir méritos pelas investigações, o fato é que as denúncias sempre vieram de fora do governo. E sempre foi ele, governo, o investigado. Mérito têm a PF, o MPF e o Dr. Sérgio Moro.

 É desalentador saber que enquanto a ação penal do Mensalão era julgada ao vivo e a cores, enquanto os ministros do STF não economizavam adjetivos para qualificar os crimes e desqualificar os criminosos, corria livre, leve e solto, um esquema bilionário drenando recursos da Petrobras. E são fortíssimas as suspeitas de que algo semelhante lateja noutras entranhas da máquina federal.

Do desenvolvimento econômico dependem os investimentos privados, a absorção da força de trabalho, a manutenção dos postos existentes, a elevação da renda, a arrecadação tributária, os investimentos estatais e a atenção social prestada pelo poder público. Ora, somados os dados dos últimos quatro anos, vê-se que a taxa de crescimento que deveria ser buscada como meta anual - algo em torno dos 6% - corresponde ao total atingido em todo o primeiro mandato de Dilma e equivale a pífios 1,5% ao ano. A meta de 6% pode ser considerada inatingível, mas foi alcançada pela economia brasileira em 2004, 2007 e 2010.

O primeiro mandato da presidente, portanto, extinguiu-se melancolicamente em 31de dezembro. A festa do dia seguinte, que deveria ser o "réveillon" de Dilma, ficou devendo às expectativas. O governo esperava 100 mil pessoas, queria algo que sinalizasse a restauração da confiança abalada por escândalos e pela manipulação de dados oficiais. As estimativas mais generosas falam em 40 mil pessoas, numa comemoração nitidamente partidária, nem cívica nem espontânea, com muito vermelho, e quase nenhum verde-amarelo.

Em seu discurso, a presidente deu sequência a um artifício que se desgastou durante a campanha eleitoral. Mais uma vez escondeu a realidade. Mais uma vez apelou para a vanglória, desfiando realizações que, se verdadeiras, lhe teriam proporcionado espetacular vitória eleitoral. Simples como isso. E, ao mesmo tempo, tão assustador quanto isso. O discurso mostrou o mesmo alheamento que caracterizou a política de seu partido e de seu governo. Espero que, desta feita, a "posse" não seja confundida com propriedade ou usufruto.

ZERO HORA, 04 de janeiro de 2015
 

Percival Puggina

31/12/2014

"As idéias são muito mais poderosas do que as armas. Nós não permitimos que nossos inimigos tenham armas. Por que deveríamos permitir que tenham idéias?" Stalin

 Só os muito comunistas, os muito ingênuos e os muito visionários não sabiam que a recente entente cordiale entre os EUA e Cuba, enquanto fortalecia o regime e atendia à alta conveniência do governo cubano, em sentido algum satisfazia os interesses do povo da ilha.

 Cuba, há muitos anos, funciona como um empreendimento privado dos irmãos Castro. Num país onde o governo controla tudo, com maior rigor controlará os novos negócios que se implantarem, bem como o provimento dos novos postos de trabalho. O Minint continuará agindo como sempre, distinguindo ciudadanos confiables de no confiables ao indicar os ocupantes dessas posições privilegiadas. E o governo, a exemplo do que ocorre há décadas, continuará recolhendo para si algo entre 80% e 90% dos valores pagos a trabalhadores cubanos.

 O regime, o regime como existe lá, e não como é relatado aqui pelos devotos das associações de "amigos de Cuba", continuará mantendo seu poder absoluto sobre um povo escravo. Saiba, leitor: em seu próprio país, os cubanos são cidadãos de segunda categoria - "ciudadanos de segunda", dizem de si mesmos. No sistema vigente, só os estrangeiros e os apaniguados do poder são cidadãos de primeira categoria.

Naquele regime diabólico, monopartidário, onde não pode existir oposição política, os "dissidentes" (assim são chamados aqueles que se atrevem a expressar opinião contrária ao governo) podem ser presos a qualquer momento, sem exigência formal. E permanecerão assim enquanto as autoridades desejarem. Se submetidos a julgamento e forem condenados, as penas vão a 20 ou 30 anos com a maior facilidade porque será sempre sob acusação de alta-traição, o mais grave dos crimes possíveis, até recentemente punido no paredón.

Pois bem, entre os dias 29 e 30 deste mês, enquanto Obama e seus amigos do Partido Democrata ainda comemoravam o acordo feito com Raúl, nova onda repressiva se abateu sobre a oposição cubana, com a prisão de pelo menos três dezenas de dissidentes, entre os quais a artista Tânia Bruguera e o marido de Yoani Sanchez. Alguns ficaram em prisão domiciliar e outros foram efetivamente recolhidos. Segundo informações da totalmente ilegal Comissão Cubana de Direitos Humanos (e aí, Maria do Rosário?) prisões preventivas, intimidatórias,  que acabam sem nenhuma acusação, ocorrem com frequência na ilha. Mas podem, também, redundar em meses ou anos numa masmorra do regime. Por quê? Por crime de consciência.

O Departamento de Estado, em comunicado, saiu-se com esta: "Estamos profundamente preocupados com as últimas informações de detenções por parte das autoridades cubanas de membros pacíficos da sociedade civil e de ativistas". E, mais adiante: "Condenamos fortemente a perseguição contínua do governo cubano e a utilização reiterada da detenção arbitrária, às vezes com violência, para silenciar os críticos, perturbar as reuniões pacíficas e a liberdade de expressão, e intimidar cidadãos".

Portanto, concluo como iniciei: só os muito comunistas, porque pensam como o camarada Stalin, os muito ingênuos e os muito visionários não sabiam que isso iria acontecer.

* Percival Puggina (70), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

30/12/2014

Jornalistas costumam dizer que a imprensa tem costas largas, sendo objeto de críticas merecidas e imerecidas. É verdade. Mas também costuma ter costas quentes, pois o poder de que desfruta lhe proporciona uma boa proteção. Numa sociedade de massa, entre muitos outros papéis, a mídia desempenha tarefa relevante na formação da opinião pública, ou seja, no modo de pensar, nos usos e costumes, nos critérios de juízo e na formação dos padrões morais e de conduta que os indivíduos passam a reproduzir no cotidiano.

 Atirarei alguns chapéus ao vento. Há veículos e profissionais de imprensa que deformam as consciências; deprimem os padrões culturais da sociedade; criam hoje os mitos que lhes convêm para derrubá-los amanhã quando já não servirem mais; estimulam o relativismo e atacam os valores morais; servem ao patrão estatal da vez, e por aí afora. Em muitos e muitos casos, tais acusações são tão corretas quanto provavelmente sejam corretas outras suspeitas em que esses mesmos se envolvem. Mas o mesmo dedo acusador que aponta com precisão as culpas da mídia dá sinais de ser uma bússola desorientada quando se trata de vasculhar a própria conduta.

A moderna comunicação é um canal de duas vias onde o público desempenha o papel importante e onde os fenômenos de ação e reação determinam cadência permanente (note-se, a propósito, que a omissão é uma forma bem medida de reação). Cabe indagar, então, especialmente àqueles cuja consciência permite identificar os malefícios causados pela eventual ou permanente irresponsabilidade social dos veículos: quais são suas reações pessoais ante o problema? Como você interage? Em que sua atitude difere daquela adotada pelos consumidores menos sensatos ou omissos? Quantas vezes tornou conhecidas suas divergências, ou mesmo seu apoio, ao julgar merecido? E mais: a que veículos de comunicação concede estímulo, assinatura, leitura, audiência ou patrocínio?

Nos países onde a opinião pública tem boa noção de seu valor e força, manipulações e abusos do tipo que ocorrem entre nós são rapidamente corrigidos. Por isso, estou cada vez mais convencido de que, com freqüência, as vítimas somos co-responsáveis pelos males a que nos submetem, pois bastariam, em muitos casos, vinte ou trinta manifestações por telefone ou e-mail para modificar certos usos ou abusos.

Triste a nação que renuncia à tarefa de transmitir valores morais às suas gerações! Enquanto as famílias cuidam apenas da subsistência; enquanto as escolas são oficialmente usadas para absolutizar o relativismo moral; enquanto as Igrejas se ocupam preferentemente de questões sociais e políticas; enquanto os meios de comunicação abusam de seu poder para seduzir e, ao mesmo tempo, desmiolar seu público; e enquanto as instituições semeiam joio no meio do trigo, quem, afinal de contas, vai orientar a sociedade para o bem?


* Percival Puggina (70), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

28/12/2014

Descobri, há bom tempo, que o Partido dos Trabalhadores tem conceitos próprios sobre democracia e Estado de Direito. Para o PT, democracia é algo que só acontecerá quando ele, partido, exercer a hegemonia e controlar todos os instrumentos do poder. Enquanto isso não se concretiza plenamente, o PT vai manipulando os meios que o regime vigente propicia ao curso de seu projeto.

Graças a isso, o partido conseguiu não ser apenas o PT. Ele é o PT e mais um vasto conjunto de corpos sociais que gravitam ao seu redor. São sindicatos e centrais sindicais; instituições culturais e de ensino; movimentos sociais e grupos minoritários que ele transforma em grupos de pressão a seu favor; grêmios estudantis, diretórios, centros acadêmicos e uniões de estudantes; partidos políticos sem anticorpos contra o uso de recursos públicos; organizações não governamentais; entidades relacionadas às políticas de gênero, ligas pró-aborto e defensoras da liberação das drogas; igrejas e órgãos de peso como a CNBB e a OAB que, convertidos ao rebanho, se entregam à alcateia. Ah, e os conselhos capturados pelo PT! Eles se revelam tão úteis que o partido, agora, pretende "empoderá-los" (coisas da novilíngua petista...) em todo o aparelho estatal federal. A isso e a outro tanto que resultaria exaustivo relacionar, juntam-se, sempre que necessário, organismos e instituições internacionais de isenção mais do que duvidosa.

Para o PT, democrática é toda manifestação desse grupo aí acima. Democrático é o que faz cada tentáculo seu. Ouvi-los, para o PT, é ouvir o povo. E quem o nega passa a ser tratado como cordeiro intrometido no riacho do lobo, acusado das piores ações e intenções.

Tão estranho quanto a democracia petista é o "Estado de Direito" petista. Nele, Direito é o que o partido quer. Por bem ou por mal. Perguntem ao companheiro João Pedro Stédile que, nesses assuntos, fala pelo partido. E Estado de Direito é algo que vai até onde o PT quer. Por bem ou por mal. Sobre essa parte conversem com o companheiro Gilberto Carvalho. O Estado de Direito petista é moldável e elástico segundo suas necessidades. Procurem um pouco e não será difícil encontrar por aí traços comuns aos três totalitarismos do século passado.

Mas no jogo que o PT joga, o Brasil é apenas uma peça do tabuleiro. O jogo tem pretensões maiores. Começou em 1990 com o Foro de São Paulo, promovendo uma convergência multifacetária da esquerda na América Latina e desaguou na União das Nações Sul-Americanas, criada em 2006. Em mais recente estágio, no dia 5 de dezembro, em Quito, com a presença de Dilma, esse organismo, que congrega os países do continente, decidiu criar um programa de formação de quadros militares.

Trata-se da Escola de Defesa, que tem dois objetivos explícitos: produzir uma unidade interna que elimine possíveis conflitos intrarregionais e fortalecer a América do Sul contra o inimigo externo, vale dizer, contra o inimigo ianque. Procure no Google por Unasul e por "Escola de Defesa" (em espanhol e em português), e encontrará informação suficiente. Esse estrupício foi instituído pelo bloco para que o conjunto das Forças Armadas de todos os países componham algo que outra coisa não é senão uma versão bananeira do Pacto de Varsóvia.

* Percival Puggina (70), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

27/12/2014

O escritor Luiz Fernando Veríssimo, competente quando faz humor e engraçadíssimo quando escreve sério, furou o teto da falta de noção no texto publicado  no dia 22 de dezembro, em Zero Hora. Ao longo da coluna, para justificar a terrível violência institucional do totalitarismo chinês e cubano, LFV foi argumentando com base em omeletes e ovos. Meios e fins. Quebrar ovos para fazer omeletes. Deixou de lado o totalitarismo soviético porque, pelo jeito, não serviu à tese. Mais valem dois argumentos na mão do que uma tese voando.

 A paixão ideológica tem razões que a razão desconhece. Os leitores sabem distinguir um ovo de uma pessoa humana, não há necessidade de contra-arrazoar. Vou ao que conheço mais, que é a publicidade comunista em torno do IDH cubano. Atribuir confiabilidade a dados sociais fornecidos por qualquer governo comunista é uma enorme ingenuidade. É o mesmo que acreditar em Fidel Castro. Ou em Lula. Ou em Dilma. Dou um exemplo que serve ao caso. Fidel, no dia 8 de janeiro de 1959, no discurso que fez ao entrar em Havana, logo após a sua revolução (Che Guevara chegara antes), falou assim às mães cubanas: "Hoy yo quiero advertir al pueblo, y yo quiero advertir a las madres cubanas, que yo haré siempre cuanto esté a nuestro alcance por resolver todos los problemas sin derramar una gota de sangre. Yo quiero decirles a las madres cubanas que jamás, por culpa nuestra, aquí volverá a dispararse un solo tiro" (íntegra). As mães cubanas aplaudiram. E ele, ato contínuo, começou a quebrar ovos no paredón. Bem como conviria à omelete de LFV.

 Mentira, agitação e propaganda são a alma do sistema. A exemplo de qualquer país comunista, Cuba não permite que instituições externas monitorem seus dados. Por outro lado, o governo considera que, como fornece alguns itens de alimentação a preço altamente subsidiado, e proporciona estudo e atenção de saúde gratuitos à população, os ínfimos salários que paga aos trabalhadores não são representativos do que eles realmente ganham. Com isso, infla a variável renda agregando a ela os investimentos do governo. Se todos os países fizerem a mesma coisa!... É o que se chama IDH de granja, onde os frangos têm casa, comida e veterinário para cuidar de sua saúde, mas não têm liberdade, nem propriedade, nem dignidade (os estrangeiros têm direitos vedados aos próprios cubanos); não podem decidir sobre o que ler. Não há onde nem como buscar a própria felicidade.

Ah, sim, pois é, tem a Educação. Já no início dos anos 50, os padrões educacionais de Cuba se alinhavam entre os mais elevados do mundo. O que o regime fez, a par, certamente, de uma ampliação do sistema, foi transformar o ensino em "doutrinação para o comunismo", como todo regime comunista faz com vistas à própria estabilidade. Essa é uma obrigação constitucionalmente imposta ao Estado e às famílias. Ora, educar para o comunismo é quase o mesmo que não educar absolutamente, porque resulta em cerceamento da liberdade, junto com a qual, vão-se o interesse próprio, a criatividade, a inovação, a iniciativa pessoal e a recompensa do mérito.

É muito ovo quebrado para pouca omelete.

* Percival Puggina (70), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

21/12/2014

"Eu honrarei o Natal em meu coração e tentarei guardá-lo ali o ano inteiro." Charles Dickens

 

 As coisas andam de tal modo que a palavra Natal, afastando-se do sentido original, passou a significar, principalmente, um dia festivo, uma pausa especial do calendário. Por isso adotei, no título deste artigo, a palavra Nascimento. Ela retira o Natal da autonomia que a pós-modernidade lhe concedeu. Não duvido de que, em breve, as crianças começarão a crer que o Natal e o que em torno dele se narra seja apenas uma história clássica, concebida por autores de contos de fada, e a merecer, ao lado da "A Branca de Neve" ou de "João e o Pé de Feijão", um filme dos estúdios Disney.

 A crítica ao que está acontecendo com o Natal não deve começar pelo consumismo natalino, que raramente é de consumo pessoal. Aliás, quem é contra o consumo precisa reconhecer que é, também, contra o emprego, contra o salário e contra a sobrevivência do trabalhador e do empreendedor. O crescimento da demanda é o primeiro sintoma de que uma economia sai da estagnação. Por outro lado, as comemorações natalinas são acompanhadas de gestos mais largos de generosidade, com aumento de doações aos materialmente carentes.

 O problema sobre o qual me detenho, à luz da fé cristã, supostamente ainda majoritária no Ocidente, é o desaparecimento do mistério da Encarnação e, com ele, o desapreço à intervenção de Deus na história humana. Ora, se o cristão vê o Menino do presépio apenas como um bebê que nasceu em circunstâncias incomuns, ele deixa de lado algo essencial à própria existência. A interrogação de Pietro Petrolini - "Somos apenas um pacote que a parteira entrega ao coveiro?" - não é respondida pelo burrico do presépio, mas pelo Menino que se tornará a figura central da História, aquela da qual mais se fala, sobre a qual mais se escreveram livros e pela qual tantos, passados dois mil anos, ainda dão a própria vida.

É claro que, o profundo respeito de Deus à nossa liberdade, nos deixa em perfeitas condições para dar-Lhe de ombros, considerar que o acaso seja o senhor da História ou confiar nossas inteiras existências ao pensar deste ou daquele filósofo. Cada vez que reflito sobre tal possibilidade eu firmo a convicção de que esse é um muito mau negócio. Ficar sem Deus, podendo ficar com Ele, é isso mesmo - mau negócio.

A você que me lê e a todos os seus, desejo um Natal muito feliz. E que o ano de 2015 seja bem melhor do que as condições atuais parecem sugerir. Acho que isso já estaria mais do que bom, não é mesmo?
 

Percival Puggina

18/12/2014

"Ahora, llevamos adelante, pese a las dificultades, la actualización de nuestro modelo económico para construir un socialismo próspero e sostenible". Raúl Castro, em discurso ao povo cubano no dia 17 de dezembro de 2014.


 Num dia de outubro do ano de 2012 - já contei isso antes por aqui - enquanto caminhava ao longo do Malecón habanero, eu ia observando o incessante bater das ondas contra os molhes que protegem a cidade. Retornara a Havana, passados 10 anos da minha visita anterior, para conhecer as mudanças que se dizia, então, estarem ocorrendo no país. Gastara os dias anteriores perguntando às pessoas sobre essas mudanças. "Câmbios? No hay cambios!", asseguravam-me aqueles com quem falava. De fato, tudo parecia apenas dez anos mais velho, dez anos mais deteriorado, exceto pela novidade dos telefones celulares. "Mas um dia o mar vencerá o muro", eu ia pensando enquanto contemplava a baía de Havana.

 Lendo os jornais de hoje, 18 de dezembro de 2014, me pergunto: será este o momento? Será agora que Cuba tomará a decisão certa, o caminho da democracia sonhado por tantos cubanos, exauridos de sua liberdade e criatividade por um governo comunista, de feitio leninista? A frase com que abro este comentário, feito em cima dos acontecimentos, deixa margem para muitas dúvidas. O ditador Raúl Castro pretende instalar-se sobre uma contradição - "socialismo próspero". Ora, isso não existe. O que pode existir é uma ditadura com capitalismo, tipo chinesa.

 Diante disso, vê-se que Obama acaba de prestar um desserviço ao povo cubano. Se era para fazer acordo, que o acordo previsse a abertura política. Ao isolar das negociações o povo da ilha, Obama reproduz a conduta brasileira, que socorre o ditador em suas necessidades materiais ajustando o estribo para que ele possa continuar cavalgando a nação cubana. Huber Matos, um dos principais comandantes da revolução, no livro "Cómo llegó la noche", relata uma conversa que teve com Fidel, indagando-o sobre quando iriam cumprir a promessa de permitir aos trabalhadores a participação no resultado das empresas. Na resposta, o Líder Máximo afirmou que isso seria impossível porque quando o trabalhador adquire independência econômica logo vai atrás da independência política.

Se tal entendimento os manteve no poder durante 54 anos, não vejo razão para que tenham mudado de opinião. A longa experiência certifica a correção da tese. Ademais, o modelo político cubano, segundo a própria definição de Fidel Castro, é marxista-leninista, ou seja, tem total desapreço à democracia e às liberdades que normalmente a acompanham. Se a questão política interna de Cuba não faz parte da pauta negociada entre Raúl e Obama com as bênçãos de Sua Santidade o Papa Francisco, então esqueceram o principal. Cuba não é um negócio da família Castro & Castro Cia. Ltda, com a qual Obama faz acertos, mas uma nação insular onde, há mais de meio século, 11 milhões de pessoas trabalham como escravas do Estado. Um dia, contudo, o mar vencerá o muro.

* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

17/12/2014

Interessado na história do período que vai de 1964 a 1985, ouvi falar e busquei assistir o documentário Hércules 56. Trata-se de um longa, do diretor Sílvio Da-Rin, composto por entrevistas, gravações de época e uma espécie de coletiva desenrolada numa mesa de bar. Os participantes da coletiva são remanescentes dos sequestradores do embaixador norte-americano em 1969 e do grupo despachado para o México, por exigência deles, a bordo da aeronave que dá nome ao filme. Entre outros, depõem, com a perspectiva que lhes permitiu um afastamento que já chega a quatro décadas, Franklin Martins, Vladimir Palmeira, José Dirceu, Flávio Tavares, Daniel Aarão Reis Filho e Paulo de Tarso Venceslau.

 Eu assistira, antes, ao “O que é isso companheiro?”. Nele, Fernando Gabeira assume participação importante no sequestro. Em Hércules 56 Gabeira some. Por quê? O diretor, após a estreia, em 2006, explicou que Gabeira fora “soldado raso” na operação e jamais teria participado não houvessem os líderes escolhido para refúgio a casa onde ele morava. Praticamente mandou Gabeira procurar a própria turma e não inventar lorota. Só encontro uma explicação: o então deputado Fernando Gabeira se transferira do PT para o PV e perdera a simpatia dos companheiros.

Do conjunto da obra (Hércules 56 é um bom filme), concluí que, hoje, a maior parte dos protagonistas considera o seqüestro e a luta armada como equívocos que estimularam o endurecimento e a continuidade do regime. Escolheram esse caminho por descrerem do jogo democrático. Eram militantes, dispostos a morrer e a matar pela revolução que julgavam estar fazendo, e sobre cuja existência real, pelo que pude presumir, não têm mais tanta certeza.

 Foi exatamente aí que nasceu a observação registrada no título deste artigo: do que escapamos! Imagine, leitor, se, em vez de senhores de meia idade, reflexivos mas orgulhosos dos seus ímpetos juvenis como se apresentam no filme, eles tivessem sido vitoriosos, e chegassem ao poder, como desejavam, na esteira do que realizara Fidel partindo de Sierra Maestra. O que teriam implantado no Brasil? Totalitarismo marxista-leninista, expropriações, tribunais revolucionários e execução de conservadores, liberais, burgueses, latifundiários, empresários, direitistas. E mais, partido único e total absorção da comunicação social pelo Estado. Era o que na época se chamava “democracia popular”, regime adotado pelas referências mundiais do comunismo.

 Não estarei indo longe demais? Não. Assista ao filme e ouvirá Vladimir Palmeira elogiar o chefe do sequestro, Virgílio Gomes da Silva, por lhes ter dito: “Se houver algum problema que, por desobediência a uma ordem minha ou vacilação, coloque em risco a operação, não pensem que vou esperar um tribunal revolucionário. Eu executo na hora”. Quem trata assim os companheiros, como procederá com os adversários? Noutra passagem, os entrevistados respondem à seguinte questão: caso as exigências não fossem atendidas pelo governo, o embaixador seria executado? Foi unânime a confirmação. Palmeira ilustra que essa mesma pergunta lhe fora feita no interrogatório posterior à sua prisão. Resposta: “Teria executado, sim; eu cumpro ordens”. E os cavalheiros, ex-revolucionários, em volta da mesa do bar, riram com ele. Franklin Martins riu mais alto do que todos.

Hoje, personagens daqueles anos acantonaram-se no poder e estamos sob severo risco de andar na mesma direção, por outros meios e com outros modos.

* O filme "Hércules 56" está disponível em boas locadoras e, dividido em nove partes, pode ser assistido no YouTube, buscado pelo título.

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* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.