Entrevista com Mons. Michel Schooyans
Por Alexandre Ribeiro
SÏ PAULO, quinta-feira, 25 de dezembro de 2008 (ZENIT.org). — Quando se celebram os 60 anos da Declara? Universal dos Direitos Humanos, a maior amea?ao documento e aos princ?os ali proclamados vem da pr?a entidade que deu vida ao texto: a ONU.
Neste m?de anivers?o da Declara? de 1948, Zenit entrevistou mons. Michel Schooyans, renomado especialista em filosofia pol?ca e demografia.
Mons. Schooyans ?embro da Pontif?a Academia para a Vida, da Pontif?a Academia das Ci?ias Sociais e professor em?to da Universidade de Lovaina (B?ica).
— Fale-nos, por favor, do surgimento da Declara? de 1948.
— Mons. Michel Schooyans: A ONU foi criada em 1945 com a carta de S?Francisco e, de certa forma, consolidada em 1948 com a Declara? Universal dos Direitos Humanos. Foi consolidada na base de uma miss?essencial que ? promo? dos direitos de todo ser humano. Todo ser humano tem direito ?ida, afirma o artigo terceiro da Declara?. O texto convida todos os homens, pa?s, governantes a reconhecer a dignidade de cada ser humano, qualquer que seja a sua for? a cor da sua pele, a sua religi? idade. Todos merecemos ser reconhecidos simplesmente pelo fato de sermos homens. ?sobre esta base, diz a Declara?, que vamos poder construir novas rela?s internacionais, uma sociedade de paz e de fraternidade.
Se houve a Guerra Mundial que terminou em 1945, ?orque houve um desconhecimento da realidade desses seres humanos que, todos, t?direitos inalien?is e imperec?is. A Declara? situa-se na continuidade de todas as grandes declara?s que marcaram a hist? pol?ca e jur?ca das na?s ocidentais. Por exemplo, a Declara? da Independ?ia dos Estados Unidos, de 1776, a Constitui? dos Estados Unidos de 1787, a Declara? dos Direitos do Homem e do Cidad? da Fran? em 1789, s?as declara?s cl?icas. A Declara? de 1948 se situa na tradi? mais fiel ?elas Declara?s que demonstraram a sua efic?a no campo do reconhecimento e da promo? dos direitos humanos. Esses direitos s?reconhecidos em decorr?ia de uma atitude moral e antropol?a. Eu reconhe?a realidade do meu semelhante. Eu me inclino na sua presen? Reconhe?a sua dignidade. Ainda que ele seja doente, esteja no in?o ou no final da sua vida, ele tem uma dignidade igual ?inha.
— Que tipo de documento ? Declara? de 1948?
— Mons. Michel Schooyans: A Declara? n??m documento de Direito no sentido t?ico da palavra. O documento enuncia os direitos b?cos. Mas para que esses direitos b?cos sejam colocados em pr?ca, eles necessitam de uma tradu? em textos legais. Precisam ser codificados. Devem ser prolongados em instrumentos jur?cos apropriados, no que se chama o direito positivo. Isso significa que os direitos proclamados em 1948 devem se exprimir em leis que ser?aplicadas pelos governos das na?s e controladas pelo poder judicial. S? portanto, duas coisas: primeiro, o reconhecimento da realidade de seres humanos que t?a mesma dignidade e os mesmo direitos b?cos, e, por outro lado, instrumentos jur?cos que d?uma forma concreta, exig?l, ?eles direitosreconhecidos como fundamentais.
Quando se trata da Declara? de 1948, conv?perceber que os mesmos direitos fundamentais podem dar lugar a codifica?s diferentes de acordo com as diversas tradi?s jur?cas dos pa?s. As na?s podem traduzir diferentemente o mesmo respeito que elas t?aos direitos fundamentais dos homens.
O que acabamos de evocar ? que se chama a tradi? realista. Essa tradi? se inclina frente ?ealidade de seres concretos: voc?eu e a universalidade dos seres humanos. Essa mesma tradi? comanda todo o edif?o das na?s democr?cas, n?s?edif?o jur?co, mas o edif?o pol?co, que tamb?se baseia no reconhecimento da igualdignidade. Agora, hoje em dia, a Declara? de 1948, que se inspira n?da e explicitamente na tradi? realista, e que foi redigida com a colabora? de um dos brasileiros mais ilustres da hist?, Alceu Amoroso de Lima, est?endo contestada.
— Que tipo de contesta??
— Mons. Michel Schooyans: Uma contesta? que vem da influ?ia da teoria positivista do Direito, elaborada sobretudo por um autor chamado Kelsen (1881-1973). Sob a influ?ia de Kelsen, propagou-se uma nova concep? do direito e, portanto, dos direitos humanos. Tudo o que a gente explicou a respeito dos direitos inatos do homem que, por ser homem, tem naturalmente direitos, ?ontestado. Tudo isso ?egado, ?olocado entre par?eses, ?esprezado e esquecido. S?bsistem as normas jur?cas; s?bsiste o direito positivo, barrando toda refer?ia aos direitos que os homens t?naturalmente. Nesse contexto, as determina?s jur?cas s?a ?a coisa que merecem estudo e respeito. Agora esses ordenamentos jur?cos, essas disposi?s lavradas nos C?os, podem mudar ao sabor de quem tem for?para defini-las. S?puro produto da vontade de quem tem poder, de quem consegue impor a sua vis?do que seja tal ou tal direito humano. De modo que, como salta aos olhos, a vis?puramente positivista dos direitos humanos depende finalmente do arb?io de quem tem a possibilidade de impor a sua concep? pr?a dos direitos humanos, j?ue n?h?ais nenhuma refer?ia ?erdade, concernente ?ealidade do homem.
— Quais as consequ?ias?
— Mons. Michel Schooyans: S?tr?cas. O positivismo jur?co abriu e abre o caminho para todas as formas de ditadura. Como o pr?o Kelsen dizia, na Uni?Sovi?ca de Stalin havia estado de direito, j?ue havia leis. Era um ditador, mas ele fazia a lei. Mas que lei? A lei que era a express?da vontade dele, da brutalidade dele. N?tinha refer?ia a direitos que seriam naturais, que seriam objeto de uma verdade ?ual a gente adere e que se imp?elo seu fulgor. A lei no tempo de Stalin era reflexo da vontade do mais forte. Hoje em dia, a lei que permite o aborto, que permite a eutan?a, n??utra coisa. ?uma lei que permite que ven?a for?do mais forte, que diz: j?ue tal ? minha vontade, n?amos decidir quem pode ser admitido ?xist?ia e quem n?pode.
Essa mentalidade entrou em v?as ag?ias da ONU. E a ONU hoje em dia est?e comportando como uma superpot?ia global, transnacional, na linha exata de Kelsen. Ele mesmo diz que as leis nacionais, as que conhecemos nos nossos C?os nacionais, devem ser submetidas ?prova?, valida?, de um centro de poder piramidal. A validez das leis nacionais depende da validade outorgada, concedida pelo poder supranacional aos c?os nacionais, particulares. Isso significa que as na?s ficam totalmente alienadas da sua soberania e os seres humanos de sua autonomia. A gente observa isso todos os dias, nas discuss?parlamentares. Muitos parlamentos s?simplesmente teatros de marionetes que executam determina?s vindo de fora, cumprem a vontade de quem imp?uas decis? eventualmente comprando os votos, atrav?da corrup?.
Isso tudo se passa sob o simulacro da globaliza?, que merece muito a nossa vigil?ia. ?que, na mentalidade de quem adere a essa concep? puramente positivista do direito, a lei n?est? servi?dos homens e da comunidade humana; est?penas a servi?deste ou daquele centro de poder. Este pode ser uma na? como os Estados Unidos, mas pode ser sobretudo a trama das vontades que se aglomeram nas Na?s Unidas, apoiadas por numerosas ONGs, e tamb?por algumas sociedades secretas, como a ma?aria. Isso mostra que hoje em dia o direito internacional tende a prevalecer sobre os direitos nacionais, a esmag?os, pois est?sendo aos poucos desativados. ?uma coisa terr?l! Estamos assistindo ?merg?ia de um direito internacional tir?co porque puramente positivista, ignorando os direitos humanos inalien?is proclamados em1948. E a gente n?percebe...
— Um novo tipo de totalitarismo?
— Mons. Michel Schooyans: Sim, porque daqui em diante a soberania das na?s ?ura fachada. Kelsen explica muito bem isso: o direito internacional, que dita sua lei ?na?s, deve ser ele mesmo validado, aprovado, pelo topo da pir?de, pela inst?ia suprema. Vejamos um exemplo: no momento em que estamos falando, h?ma discuss?na sede das Na?s Unidas sobre a introdu? ou n?do aborto como novo direito humano. Seria uma nova vers?da Declara? de 1948. Uma modifica? calamitosa porque introduziria sub-repticiamente um princ?o puramente positivo numa declara? que ?ntropol?a e moral. Ali se colocaria tamb?o direito ?utan?a. Restaria ?na?s particulares ratificar estes novos direitos humanos emanando da inst?ia suprema. Isso significa que, como a refer?ia aos direitos naturais dos homens j?eria sido desativada, essa nova Declara? se tornaria um documento de direito puramente positivo, que deveria ser aplicado por todas as na?s que aderissem ao novo texto da Declara? ou a algum outro documento similar.
?uma coisa pavorosa o que est?uase acontecendo. E vai mais longe. A Corte Penal Internacional, que foi institu? h?lguns anos, vai ter como ?a de compet?ia julgar as na?s ou as entidades que se recusarem a reconhecer esses novos direitos inventados ou a serem inventados. A Igreja Cat?a ?m dos alvos poss?is dessa Corte Internacional. J?ouve quem dissesse h?nos que o Papa Jo?Paulo II poderia ter sido intimado a comparecer no Tribunal Internacional por se opor a um novo direito, o direito da mulher ao aborto. Amea?semelhante paira sobre Bento XVI. E no dom?o da educa? ? mesma coisa com a ideologia do g?ro. Em virtude de um novo direito humano, as pessoas escolheriam o seu g?ro, poderiam mudar de g?ro. Ent?o g?ro deve ser ensinado nas escolas. ?doutrina? ideol?a em grande escala, a ponto de quem n?subscrever a essa ideologia ser pass?l de puni? por uma corte internacional.
— Discute-se ent?uma altera? do texto da Declara??
— Mons. Michel Schooyans: A Declara? de 1948 enuncia princ?os fundamentais. S?verdades primeiras, fundadoras. N?econhecemos esse fato, que o ser humano tem naturalmente direito ?ida, ?iberdade, ?ropriedade, a se casar, a se associar, a se exprimir livremente e que tudo isso n?decorre da vontade arbitr?a dos homens. Mesmo antes de entrar numa sociedade pol?ca, organizada, o homem j?em direitos humanos fundamentais. E os direitos precedem a lei. Mas o homem precisa que a sociedade se organize para que esses direitos sejam aplicados, respeitados e que, eventualmente, as infra?s sejam reprimidas. Tudo isso est?endo questionado atualmente. Circulam abaixo-assinados. H?m abaixo-assinado a favor do aborto e outro contra. Mas os que mais alto gritam s?os partid?os da introdu? de uma modifica? da Declara?de 1948 que alteraria a natureza da Declara?, bem como da pr?a ONU.
— Isso ?ruto unicamente da manipula? do poder ou tamb?de um obscurecimento das consci?ias, utilizando uma express?de Bento XVI?
— Mons. Michel Schooyans: Bento XVI tem motivos dos mais s?os para insistir no papel e na nobreza da raz? Tudo o que acabamos de discutir s?problemas de antropologia e de moral natural. Note-se que a defesa do ser humano n??m privil?o da Igreja; faz parte do patrim? das grandes tradi?s morais da humanidade. A necessidade de defender o homem, de reconhecer a dignidade do homem ?ma coisa ?ual a gente tem acesso atrav?do uso correto da raz? Infelizmente estamos assistindo a uma esp?e de pervers?da pr?a raz? A raz??tilizada para ser levada a certas armadilhas dela mesma. O homem ?apaz de ser manipulado; ?apaz de ser dominado. Em portugu?h?ma express?muito bonita, ao que parece usada no candombl?para dizer isso: a gente pode fazer a cabe?de algu? ?exatamente isso. A raz?de um indiv?o ou de um povo pode ser desconectada. E voc?ode encher a cabe?de algu?com id?s completamente malucas. ?o caso do aborto e da eutan?a.
Na B?ica, o aborto foi criminalizado pela lei em 1867. Quem mandou aprovar essa lei n?eram os cat?os, mas sim os liberais, que, naquela ?ca, eram mais de tend?ia ma?ica, como at?oje, ali? Foram eles que fizeram essa lei. Os cat?os aprovaram, mas a iniciativa veio dos liberais, ent?majorit?os. Quer dizer que a raz?funcionava. A raz?deles tinha descoberto que era evidente que o ser humano devia ser protegido antes do nascimento. ?uma quest?de raz? Os tempos mudaram. Pode-se alterar a capacidade de racioc?o. Hoje assistimos a v?as manobras que v?nesse sentido. H?s casos de aborto, de eutan?a, do g?ro. H? problema da homossexualidade: h?0 anos, quem teria pensado em promover um novo direito ?omossexualidade? A raz?humana ?apaz de genialidade, mas ?amb?uma faculdade delicada, vulner?l, fr?l, uma faculdade que pode ser desmobilizada, hibernada. A pior forma de escravid?? escravid?mental, a escravid?da raz? que comporta um brinde: o naufr?o da f?porque n?h?to de f?ue n?seja razo?l. Ent?se voc?ntra naquela confus?mental de dizer que o aborto ?m direito, a eutan?a ?m direito, voc?ntra num processo que acaba corrompendo n?s?sua raz? mas tamb?a sua f?
Fonte: Zenit