Percival Puggina

02/07/2016

 

 Foi o ministro Marco Aurélio Mello quem conferiu ao Supremo o atributo de última trincheira da cidadania. Ora, cidadania é a condição do cidadão que desfruta do direito de participar da vida política nacional. Ao ouvir o ministro, vislumbrei, então, esse cidadão ao qual ele se referia. No fragor da batalha contra a corrupção, sujo de terra e fuligem, levava ele à mão um farrapo verde e amarelo. Vi-o arrastando-se pelo chão, noite adentro, até resvalar para o interior da trincheira onde onze homens e suas sentenças o acolheriam no abraço cálido da Justiça. Foi o que a imaginação me proporcionou, mas nem eu acreditei em tal delírio.

 Bem ao contrário, o que a realidade mais tem trazido ao conhecimento dos cidadãos brasileiros é um STF convertido em centro das expectativas dos mais destacados membros na hierarquia da corrupção. É lá e em nenhum outro lugar que todos os investigados desejam estacionar seus processos. É ali que os poderosos suplicam. Foi ali que Paulo Bernardo retomou a liberdade. Ali sumiu do mundo dos fatos o crime de obstrução da justiça tentado por Dilma e revelado naquela infame conversa telefônica com Lula. Oito minutos de gravação, disponibilizados no YouTube e já ouvidos por algo como três milhões de cidadãos, simplesmente deixaram de existir. Ali, segundo o site stf.jusbrasil.com.br, trafegam 275 inquéritos e 102 ações penais contra autoridades. É bem provável que muitos desses processos tenham nascido nas investigações e delações ocorridas no âmbito da Lava Jato, onde cerca de 70 "plebeus" já foram condenados. Quantas outras investigações dessa mesma operação, porém, bateram na trave do foro especial por prerrogativa de função e foram desviadas para as espaçosas gavetas do STF, onde o prazo médio de aceitação de uma denúncia é de 617 dias? Por enquanto, o placar mostra 70 x 0. E não é o zero, mas são os 70 que traziam desconforto ao ministro Marco Aurélio quando falou em "justiça de cambulhada".

 Centenas de parlamentares e autoridades encrencados no STF contam com as regalias do sigilo, com a prolongada ocultação de seus crimes, com o faustoso usufruto dos bens mal havidos e com a sonhada regalia da prescrição. O ministro Roberto Barroso afirmou, há poucos dias, que foro privilegiado é uma herança aristocrática. E tem razão. Privilégios da nobreza acompanham o direito vigente no Brasil pelo menos desde as Ordenações Manuelinas (1521). Aqui, o cidadão comum sempre soube o seu lugar e sempre reconheceu a existência de uma cidadania superior à sua, chapa branca, de cujas regalias ele, cidadão comum, é detentor do direito de pagar a conta.

 É tão benevolente o foro especial por prerrogativa de função, que ganhou, na linguagem plebeia, o nome daquilo que de fato é: foro privilegiado. Talvez o leitor esteja ponderando, coberto de razão, que a extinção dessa iniquidade seja uma prerrogativa do Congresso Nacional, que jamais o eliminará ou moderará, por motivos óbvios. Mas não é bem assim. O STF já tem legislado tanto contra o próprio texto constitucional! Basta-lhe, para isso, apontar inércia do parlamento ou contradições entre o texto da Carta de 1988 e determinado princípio constitucional. Nada o impede, então, de acabar com o foro privilegiado pelo mesmo caminho, invocando, por exemplo, o princípio constitucional da Igualdade. De que vale o Art. 5º proclamar que todos são iguais perante a lei se a uns é reservado o direito de ter seus crimes encobertos por delongas e pelo véu do sigilo, além da possibilidade de receber o impagável benefício da prescrição? A nada serve o Supremo tecer críticas ao foro privilegiado e permanecer servindo à impunidade tanto quanto o Congresso Nacional.

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* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

28/06/2016

 Pertenço a um grupo de brasileiros, talvez pequeno hoje, que lamentam o fato de a proclamação da República haver rompido nossas raízes europeias. Era de lá que vinham as bases da nossa cultura, da nossa literatura e da nossa fé cristã. Era de lá o nosso idioma. O gesto de enviar D. Pedro e sua família para o desterro cortou laços que deveríamos, naquela época, ter entendido como um privilégio em relação às demais nações da América Ibérica. Devido a esse sentimento pessoal, a esse estado de alma, diria, amei a Europa antes mesmo de a haver conhecido. Amava-a nas páginas dos livros de História, nas enciclopédias e nas fugazes visões externas que o cinema proporcionava. Amei-a ainda mais desde que lá estive com minha mulher, como turista, na primeira de muitas vezes que a ela retornamos. Amei-a em cada museu, em cada uma das centenas de basílicas, santuários, mosteiros, catedrais e igrejas góticas, barrocas e românicas que visitei extasiado por aquela dedicação em construir o belo para Deus. Quantas vezes nos quedamos, ela e eu, em reverente silêncio diante da determinação com que cada país cuidou de sanar as destruições da guerra restaurando para a humanidade os bens de sua cultura!

Lembro da emoção quando cruzei a primeira fronteira rodoviária com aduana inoperante, que ali ainda remanescia como marca da unidade em construção. Embora estrangeiro, emocionou-me a sensação de liberdade - vejam só! - que isso me proporcionou. A sensação se renovou quando comecei a usar a mesma moeda para pagar despesas em países diferentes. E estranhei a negativa dos britânicos em aceitarem o euro.

Passei os últimos dias meditando sobre o plebiscito do Reino Unido, ponderando, na contradição das opiniões, as causas e consequências de cada uma. Por isso, tardei em escrever. No passar dos dias, foi ganhando nitidez uma questão de início quase indiscernível, bem ao fundo desse cenário de luzes e sombras. Estariam os ingleses deixando de ser europeus? Tal quesito me interessou porque acima dos negócios, dos acordos políticos e comerciais, importa-me a Europa e o que ela representa. Conexa a essa questão, uma outra se levantou: o que está acontecendo lá? Em outras palavras: a filosofia grega, o direito romano e o cristianismo - bases da cultura e da civilização que amo de espírito, coração e mente por suas fulgurantes emanações através dos séculos - ainda estão no zelo da União Europeia?

A conclusão a que chego é que não estão, de modo algum! A UE aceitou ser tutelada por uma burocracia internacional que, por muitos meios trouxe para a agenda e tem imposto pautas que confrontam aquilo que estava no espírito europeu e nos três principais fundadores da política continental pós-guerra. De fato, Alcide de Gasperi, Konrad Adenauer e Albert Schuman, modernos pais da Europa, eram cristãos fervorosos (os três tiveram e os dois últimos ainda têm processo de beatificação em curso). Com o passar dos anos, porém, a UE compôs onerosa e poderosa estrutura de poder que já se converte num caso clássico em que a burocracia se sobrepõe à política. Não satisfeita, ainda é empurrada ao ateísmo e ao paganismo de modo acelerado.

Nas atuais circunstâncias, diante dos mastodontes em que se converteram as estruturas de poder efetivo na UE, não está fora de sentido afirmar, com Roger Scruton, que o Reino Unido decidiu ser Europa e não União Europeia. Para continuar sendo Europa tornou-se forçoso recuperar sua soberania. Difícil imaginar os britânicos, tendo feito pelo Continente tudo que já fizeram, abdicarem dela - da sua soberania - nas atuas circunstâncias. União Europeia, sim. Mas não com sangrias fiscais que as nacionalidades tributadas jamais aprovariam (no caso do Reino Unido, isso contraria 800 anos de história), nem com imposições contrárias à democracia, ou com avanços sistemáticos contra os valores característicos do Ocidente.

Faço votos que a crise suscitada pelo Brexit induza a mudanças na UE antes de os burocratas instalados em Bruxelas acabarem por descaracterizar totalmente a Europa.

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* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

27/06/2016

 

 Dia 15 agendei-me para ir ao centro de Porto Alegre tratar de um assunto na Secretaria Municipal da Fazenda. O taxi não conseguiu chegar nem perto. A região central e seu entorno estavam bloqueados em indescritível engarrafamento. Segui a pé. Diante da Secretaria, uma tenda e um carro de som tocavam pagode. Pequeno grupo de funcionários ocupava a via e uma grande faixa afirmava com admirável senso de humor: “Essa crise não é nossa!”. Meninos, eu vi!

 A poucos metros, defronte à agência do Banco do Brasil, o distinto público era informado de que o governo Temer, quando propõe que os fundos de pensão (esses que as gestões petistas quebraram) tenham administração profissional e conselheiros independentes, não partidários, está pretendendo privatizar e age contra o interesse de seus participantes.

 Na Assembleia Legislativa, um grupo de supostos estudantes retirava-se do prédio que invadira dois dias antes. No Centro Administrativo do Estado, professores mantinham-se no edifício que haviam invadido na segunda-feira anterior. Estado afora, mais de uma centena de escolas continuavam tomadas por pequenos grupos de professores e estudantes, como parte de uma ação orquestrada. Tudo coincidência? Fruto indigesto do acaso? Claro que não. Trata-se de uma conjunção carnal. O descontentamento com o impeachment uniu-se ao oportunismo ideológico dos demais partidos revolucionários.

Examinemos por partes esse roteiro, começando pela piada emplacada diante da Prefeitura. "Essa crise não é nossa!". Em que país vizinho vivem aqueles manifestantes? A qual cidade estrangeira, próxima a Porto Alegre, servem tais funcionários? Onze milhões e meio de desempregados, inflação reduzindo o poder de compra de toda a população, empresas fechando as portas, economia encolhendo para além do mais negativo registro histórico, receita fiscal em queda, e eles se consideram cidadãos de uma bolha onde, por vontade do "coletivo", a crise não está autorizada a entrar. Disse-me um dos guardiões da porta do prédio a quem expus meus direitos de ser atendido e de livre movimentação na cidade: "Se não fizermos isso, politicamente não se consegue nada". Politicamente - palavrinha mágica. "Conheço bem as letrinhas dessa política", respondi.

Diante do Banco do Brasil, as mesmas letrinhas armavam o velho truque de atribuir aos outros os próprios erros. O governo petista e as administrações sindicalistas e partidárias servis, entre outros abusos, usaram recursos dos fundos de pensão para os fracassados delírios do pré-sal e das empresas campeãs. Em alguns casos essa conta vai para todos. Mas para as letrinhas em conjunção carnal, quem pretende meter a mão nos fundos é o novo governo. Então tá.

Malgrado as portas fechadas e aferrolhadas, não havia como esconder ao conhecimento público o caráter político e ideológico da invasão das escolas. Ainda que tratadas eufemisticamente pela mídia como "ocupações", o que ocorreu em todo o Estado foram invasões. Pequeno grupo de alunos e um número ainda muito menor de professores agiram a serviço da causa num indisfarçado treinamento de militância. Qual causa? A causa das letrinhas, ora essa: envenenar as mentes juvenis com a ideologia do atraso econômico e social, desconstituir os poderes, corromper o conceitos de democracia e liberdade, atacar a autoridade dos pais, romper com a ordem. "A escola é nossa!", proclamavam os invasores, mão canhota erguida, punho cerrado. É? Ganharam-na de quem? Quem acha que esses alunos e professores apenas brincam de "cidadania" saiba que não é brincadeira e que o objetivo disso, lá adiante, é revolução. Leia o restante do artigo aqui:
http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/noticia/2016/06/conjuncao-carnal-das-letrinhas-6165685.html

Especial para Zero Hora, 25 de junho de 2016.

 

Percival Puggina

23/06/2016

 

 Nesta quinta-feira (23/06), enquanto milhões de brasileiros acordavam para mais um dia de trabalho (ou a procura de trabalho), na capital paulista e outras cidades do país, algumas pessoas amanheceram com a Polícia Federal batendo à porta de suas residências. Era uma fase de busca, apreensão, condução coercitiva e prisões da operação Custo Brasil. No centro das atenções estavam dois ex-ministros de Lula e Dilma, dois ex-tesoureiros do PT, destacados advogados e a própria sede do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores.

 Sem emitir juízo prévio sobre qualquer dos investigados, mas examinado o conjunto dessas operações que se desenvolvem na esteira da Lava Jato, é impossível não perceber, no nome da recente operação da Justiça Federal paulista, sua relação com a crise que vive o país: "Custo Brasil". Numa infortunada combinação de incompetência, irresponsabilidade e desonestidade, o Brasil foi se tornando um país oneroso a todos nós. Quem dentre os leitores não tem, no círculo de suas relações, brasileiros que, neste momento, buscam no exterior melhores oportunidades e condições de vida? Resultado do custo Brasil. Nosso país, sempre aberto às mais variadas etnias, hoje perde muitos de seus jovens, muitos de seus talentos, por verem exauridas, aqui, oportunidades e esperanças.

 Tão dolorosa ruptura, tão antinatural desarraigamento tem muito a ver com a rapinagem do Estado e com a abundância de recursos para os quadrilheiros do poder, com a demagogia, com os privilégios da elite do setor público, com os luxos sustentados pelo erário e com os delírios de grandeza e popularidade daqueles que hoje, escondidos na escuridão dos automóveis, se deslocam de garagem para garagem sumidos da luz do sol e das vistas da população. Nossa insegurança, a violência no meio urbano e rural, a miserabilidade da atenção à saúde pública, a decadência de todo o sistema de ensino e o desastroso conjunto das carências sociais, são consequência dessas práticas.

 No entanto, se temos tanto a lamentar, temos, simetricamente, muito a celebrar com a atuação firme do Ministério Público, e em especial, nestes episódios, do Ministério Público Federal. O MPF está fazendo prova do efeito positivo de algo a que nosso país acostumou-se a considerar irrelevante: o papel das instituições. As franquias e abusos que maus governantes proporcionam, que maus políticos aproveitam e ante os quais o Poder Judiciário não pode agir se não for provocado, estão encontrando adversário à altura na autonomia institucional que o Ministério Público recebeu na Constituição de 1988.

Quem dera os pagadores do Custo Brasil despertassem, também, para a necessidade de promover combate cívico aos vícios institucionais que favorecem a apropriação criminosa do Estado! Estou falando do presidencialismo e do voto proporcional para os parlamentos, cuja manutenção muito convém ao jogo e ao mandato dos quadrilheiros. Apesar de darem cada vez menos certo há mais de um século, misteriosamente ambos continuam percebidos como essenciais à democracia.


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* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

20/06/2016

 

 Estados quebrados, alquebrados e ainda encontro quem diga: "Fulano não é o governador? Então ele que resolva". Resolver, aqui, significa que o governante deve encontrar uma fórmula de manter ou ampliar o gasto público, porque os abusos da festa não podem parar. Nosso modelo institucional terceiriza responsabilidades e irresponsabilidades. O que faz a maior parte dos governos e o que fazem os parlamentos diante dessa mentalidade senão determinar que siga o embalo, que role a droga da gastança, que se mantenham os vícios do sistema, que se atendam todas as demandas?

 No nosso sistema político, com escassas exceções, parlamentares e governantes funcionam como organismos que metabolizam recursos públicos e os transformam em votos. Os ambicionados sufrágios não provêm da dedicação ao bem da comunidade ou de uma convicção sobre como alcançar o desenvolvimento econômico e social. Não, não. Os votos são moeda de troca num balcão onde, de algum modo, a contribuição fiscal de todos pode ser canalizada para atender demandas de alguns. Quem o fizer com maior eficiência, mais futuro terá, ainda que tais conquistas representem freio puxado no futuro dos demais.

 Observe o que ocorre quando, num parlamento brasileiro, em plena crise econômica e fiscal, está em deliberação projeto que eleva vencimentos dos poderes ou de determinadas categorias de servidores. As galerias estão tomadas por interessados na aprovação. A cada pronunciamento favorável, chovem elogios e aplausos. A cada fala em contrário, trovejam insultos e vaias. Sentado em sua cadeira, o parlamentar-padrão a tudo assiste e se indaga: "Quantos eleitores meus estão aí? Quantos votos posso ganhar junto a essa categoria se me posicionar favoRavelmente ao que pretendem? Quantos perderei se o fizer?". É uma contabilidade inequivocamente favorável à festa Rave porque, em nosso sistema, os parlamentares não sabem quem são ou podem vir a ser seus eleitores. Ademais, deputados eleitos obtêm, em média, votos de 1/3 do eleitorado apto (e a maior parte de seus eleitores não lembra seu nome). Os 2/3 restantes correspondem a votos nulos, brancos, abstenções ou foram concedidos a candidatos não eleitos.

No voto distrital, o território do Estado ou do município é dividido em distritos eleitorais e cada distrito escolhe seu parlamentar numa eleição majoritária (como a eleição de prefeito). Ora, assim como dificilmente alguém esquece o nome do prefeito, dificilmente alguém esquece o nome do representante de seu distrito. Sua atividade e seu voto são acompanhados de perto. Ele é uma pessoa "criada ali na volta", como se costuma dizer no interior. Na hora de uma votação como a descrita acima, em que o parlamentar tem que escolher entre a responsabilidade e a irresponsabilidade, ele ponderará: "Quantos eleitores desse grupo de interesse existem em meu distrito? (E verá que são poucos). Quantos eleitores do meu distrito não estão dispostos a pagar essa conta? (E verá que são muitos). É uma contabilidade inequivocamente contra a festa Rave da irresponsabilidade fiscal.

Numa eleição pelo sistema distrital, ninguém consegue mandato com votos de uma camada da sociedade ou de um grupo organizado, como esses que hoje viabilizam eleições de inúmeros parlamentares. Para eleger-se num distrito, o candidato precisa colher votos, como numa fatia de torta, em todas as camadas sociais do distrito que deseja representar. Também isso é fortemente determinante de sua conduta.

A festa Rave da irresponsabilidade fiscal consome duas drogas fornecidas pelo nosso sistema político: o presidencialismo e a eleição proporcional para os parlamentos.


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* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.


 

Percival Puggina

17/06/2016

 

 Chega a ser simplória a ideia de que, no modelo político brasileiro, campanhas eleitorais possam ser adequadamente viabilizadas apenas por contribuições individuais. Estamos nos encaminhando para ver, no dia 2 de outubro, em que vai dar essa decisão do STF, mas antecipo algumas observações. E a primeira diz respeito à pergunta que dá título a este artigo. Você, leitor, está disposto a meter a mão no bolso e doar dinheiro para a campanha de seus candidatos à prefeitura e à vereança?

 Pois é. Imagino que não seja significativo o número de pessoas que responderão afirmativamente. O dinheiro está tão ou mais curto do que a confiança do eleitorado naquilo a que chamamos "classe política". Aqui no Rio Grande do Sul, e não será diferente, por certo, em todo o país, o poder público está quebrado e o ânimo alquebrado, exceto para o pedido de reposições, planos de carreira, quando não, direitos e vantagens para membros dos poderes e categorias funcionais mais bem aquinhoadas! Ponto de exclamação? Escândalo? Não, tudo perfeitamente habitual. Enquanto o setor privado nacional se constrange a fechar milhões de postos de trabalho, os três níveis da Federação mantêm seus contingentes funcionais, e seus parlamentos vão aprovando elevação de suas despesas com pessoal.

E aí? Nesse contexto, vamos ajudar candidatos? A família vai concordar com isso? Pela lei, você pode doar até 10% de sua renda no ano passado. Vejo muita dificuldade para todos que se disponham a concorrer. Uma das formas encontradas para tornar as campanhas menos onerosas financeiramente foi a redução dos prazos para o trabalho explícito de busca de votos. No entanto, quanto mais curto o tempo de campanha, maior a vantagem de quem já tem mandato porque, salvo desistência, há quatro anos trabalha pela reeleição. Isso reduzirá a renovação e preservará o onipresente corporativismo. Adicionalmente, o uso de recursos próprios favorecerá candidatos com alta renda. Para estes, 10% dos ganhos do ano anterior representa valor expressivo. Por tudo isso, se você identificar em sua comunidade candidato a prefeito e a vereador que mereça ser apoiado em virtude de sua história de vida, valores, convicções, compromisso com responsabilidade fiscal e redução do gasto público, sugiro enfaticamente que o faça.

No entanto, é bom visualizar o cenário mais amplo. Nosso sistema de governo e nosso sistema eleitoral são incompatíveis com eleições de baixo custo. Temos partidos em excesso e, neles, candidatos em excesso disputando no mesmo espaço geográfico. Se fizéssemos o que a quase totalidade dos países com democracias estáveis fazem, elegendo o governante indiretamente através da maioria parlamentar, só isso representaria um enorme ganho financeiro e aumentaria muito a responsabilidade da maioria parlamentar. Se, essas democracias elegem indiretamente seus governantes, de onde tiramos a ideia de que a eleição indireta não é democrática ou é menos democrática do que a eleição direta? Estamos podendo observar nestes dias o quanto nosso sistema age contra o interesse público ao dificultar sobremodo a substituição do mau governo. Num sistema racional, o governo cai no momento em que perde a maioria parlamentar, sem choro nem vela, sem passeata nem quebra-quebra. Normal e pacificamente.

Eleições com baixo custo, adequadamente fiscalizadas, só as teremos com parlamentarismo e voto distrital (um candidato por partido em circunscrições eleitorais pequenas). Há poucos dias passei, na Itália, pela cidade de Trieste, onde se disputavam eleições municipais. Os partidos ocupavam pequenas tendas nas praças, lado a lado, com alguém atendendo os eleitores e fornecendo volantes dos candidatos. Nenhum carnaval publicitário. Quem pode dizer que isso não é democrático? Quem dirá que o saco sem fundo das arrecadações para campanhas de grande visibilidade serve melhor ao interesse público do que o processo eleitoral simples, travado num espaço geográfico reduzido, onde quem trabalha é o candidato e não o dinheiro que ele arrecada?
 

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* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

14/06/2016

 

 Marcelo Odebrecht foi insuperável no financiamento e nas cortesias dispensadas ao partido que governou o Brasil de janeiro de 2003 a maio de 2016. Consolidou longa e sólida parceria irrigando contas, tapando buracos, emprestando aeronaves, arrumando negócios, fazendo corretagem de palestras para Lula e pavimentando com pedrinhas de brilhantes o caminho para seu PT passar. Durante mais de dez anos, uma mão lavou a outra.

Mas as impressões digitais ficaram. O homem cuja prisão, nas palavras do próprio pai, acabaria com a República num fim de semana, cravou o facão no toco e resistiu, como poucos, um ano inteiro na humilhante rotina do xilindró. Só então, começou a cantar o verso e o reverso.

Ele é o número 1 entre os benfeitores do PT. O número dois vai para Eduardo Cunha. Sim, leitor, o proclamado inimigo número 1 é, na verdade, o amigo número 2. O PT jura que não, mas é falso. Acompanhe o raciocínio. Ele foi eleito para comandar a Câmara em fevereiro do ano passado e, logo no mês seguinte, desabaram sobre sua mesa cerca de três dezenas de pedidos de impeachment da presidente Dilma. Que fez então, desatento à maledicência que o acusava das piores intenções em relação a esses requerimentos? Nada. O PT falava mal dele e ele cuidava do PT. A nação ia para a rua, pedia impeachment e o Cunha se mantinha impassível. Era como se não fosse com ele. Tanta demora, ao longo dos meses, foi esfriando a motivação nacional, silenciando as redes sociais e, claro, reduzindo o público das manifestações.

A mídia amiga do governo e os militantes assalariados deitavam e rolavam ante a debandada dos coxinhas. Lembram? Obra exclusiva do Cunha, leitores! E assim terminou o verão de 2015. E assim passaram, também, o outono, o inverno e quase toda a primavera. Quanto mais requerimentos pedindo impeachment chegavam, mais Cunha permanecia imperturbável, dando inutilmente ao PT o ano inteiro para livrar a pele, escusar-se ante Nação, adotar medidas para superar a crise, reconstruir credibilidade e o que mais a astúcia e a malícia pudessem conceber.

Quando se sentiu perdido, abandonado pelo oposição que lhe negou apoio na Comissão de Ética e, por fim, pelo próprio PT, Cunha mergulhou na pilha dos pedidos de impeachment para escolher um. Esse mergulho ainda precisa ser bem contado. Havia dezenas de processos fundamentados, listando os crimes praticados pela presidente e pelo governo sob seu comando. Havia a penca de denúncias da Lava Jato, a negociata da refinaria de Pasadena, as irregularidades na arrecadação de recursos de campanha, a falsidade ideológica na ocultação da realidade nacional durante a disputa eleitoral de 2014. Dentre tantos, qual o requerimento escolhido por Cunha? Pois é. Cunha escolheu o das pedaladas fiscais, crime real, grave, mas politicamente estéril, ruim de explicar, incompreensível ao povão. Por fim, pego com a boca na botija, apresentou a si mesmo para o papel de inimigo, sem o qual o PT não sabe fazer política. Amigo é para essas coisas.

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* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

11/06/2016

 

 Não preciso buscar autor cristão para encontrar observações importantes sobre os antagonismos acima. Até um marxista da Escola de Frankfurt percebeu o vigor presente nesses sentimentos e atitudes. Mirando o nazismo e não o conjunto das experiências totalitárias de seu tempo, Erich Fromm entendeu que odiar e destruir também eram formas de transcendência. Mas eram inferiores a amar e construir.

"Se for necessária a violência, que venha a violência!", esbravejou certa vez um professor durante debate do qual participei sentado a cautelosa distância no outro lado da mesa. O moço queria transcender à realidade que via e o caminho arrebatado, rompante, tão pouco civilizado, parecia lhe servir. No chamado à turbulência existem conteúdos explícitos e implícitos. Há o voluntarismo dos que só se subordinam a leis próprias. Há uma atitude perante a vida que não vê limites ao querer. Há boa dose do desejo de transcendência pelo viés negativo mencionado por Fromm. E há a enfermidade psíquica que se compraz com a sensação de poder advinda da brutalidade: bateu, quebrou, causou dor, gerou perda, ferrou com tudo? Êxtase!

Escrevo estas linhas pensando nos vândalos que escolheram a rua mais charmosa do bairro mais elegante da cidade para suas pichações políticas e manifestações de ira em favor da continuidade do mandato da presidente Dilma. Era prazerosa, apesar de malsã, a tarefa de entrar por aquela específica rua expressando uma forma de poder que ultrapassava os limites dos códigos de conduta dos frequentadores, antagonizando-os politicamente. Não se diga que "até aí nada de mais". O que estou descrevendo é a opção real por uma política que construiu assim seu caminho para o poder. Assim a ele chegou. E assim fez acontecer com a ordem pública e com a lei o mesmo que acontece com o elástico da cueca. Esgarçou. Foi tanta cizânia, tanta história mal contada, tanto divisionismo para conquistar que o elástico não resistiu.

Não ouvimos da boca da presidente afastada, há bem poucos dias, que o ministério de Temer era formado por velhos, brancos e ricos? Expondo-me ao risco de extrair intuito de onde não costuma haver intuito algum, eu diria que Dilma rezou pela cartilha que manda fatiar a sociedade para conquistá-la; suscitar o conflito para debilitar e intimidar conflitantes; mobilizar sentimentos vis para que a vilania seja consentida. Brasileiros com menos de 30 anos talvez não lembrem do que aconteceu no Brasil nas festividades que deveriam ter marcado os 500 anos do Descobrimento. Você lembra, leitor? O PT, seus movimentos sociais e a esquerda bagunçaram tudo durante meses e acabaram com a festa! Odiar e destruir. Odiar e destruir. O resultado está aí em dimensão nacional. Onde foi diferente?

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Nossa esperança não está nem poderia estar no bom caráter da nova maioria parlamentar formada, em grande parte, pela velha maioria parlamentar. Não existe bom caráter em quantidade suficiente no Congresso Nacional. Aliás, antes mesmo dessa obviedade: o que seria "caráter" para quem sempre afirmou que gente de bem, como se diz por aqui, ou "homem bom", como dizia Aristóteles há 2300 anos, é papo de tolos conservadores? Toda tentativa de desqualificar o novo governo substituto com base no caráter de muitos de seus membros, migrados da base do governo petista, é esperteza de falso malandro. É surto de moralidade em casa de tolerância. Nossa melhor esperança, repito, só pode estar no povo que foi às ruas! (Por contrato com ZH, a totalidade deste artigo deve ser lido no site do jornal).

Especial para Zero Hora, 11 de junho de 2016.
 

Percival Puggina

09/06/2016

 

 Quem já passou pela experiência de encolher seu padrão de vida, apertar o cinto, mudar-se para imóvel menor, em bairro pior, vender o carro novo para comprar um usado, entenderá bem o que vou escrever. Nos últimos dias tenho conversado com muita gente vivendo concretamente essas experiências. Muitos deles eram jovens com bons postos de trabalho, colhidos pela tesoura determinada pela recessão. Profissionais bem sucedidos em diversas áreas, assumiram a direção de seus carros e se tornaram motoristas do Uber, por exemplo. Tenho ouvido suas histórias e seu esforço de adaptação a uma nova realidade. Tenho lhes conferido, principalmente pelas histórias de vida, a desejada nota cinco que os credencia a continuar no serviço. É nota dada ao cidadão, ao chefe de família, ao estudante bolsista no exterior, que precisou retornar porque o programa secou. Era um programa para crescer até a eleição e minguar depois, sabe como é. O mandato presidencial de Dilma tinha que ser "legitimamente conquistado".

 Pois eis que a tesoura, uma outra tesoura, acabou atingindo a própria presidente. Ela foi afastada segundo o rito constitucional e aguarda o julgamento do Senado. Enquanto isso, salário integral, curte as comodidades do Palácio da Alvorada, com um séquito de fazer inveja à qualquer família real europeia. No entanto, para a Dilma, ela está nas masmorras de uma espécie de Coliseu, onde aguarda algumas semanas pela decisão final. Naquele dia precisará que mais de 27 entre os 81 senadores ergam o polegar e a restituam à vida antiga, que tão mal levava o Brasil e tanto bem lhe fazia viver.

Tivesse fé, Dilma deveria subir de joelhos as escadarias da Penha. Deveria lavar o átrio da Igreja de Nosso Senhor do Bom Fim. Foi-lhe dado o privilégio de presidir a república e ela fez mau uso dessa ventura conduzindo o país a uma situação que se torna desnecessário descrever porque seria falar sobre a vida de cada um. No entanto, em vez de agradecer e penitenciar-se, Dilma reclama. Reclama de tudo, como se estivesse nas masmorras do Coliseu Romano.
Reclama de não ter jato da FAB à disposição para viajar quando e para onde bem entenda. Reclama da reduzida equipe. Reclama do cartão de alimentação. E no entanto, de uma ponta a outra, a lista de suas efetivas disponibilidades é feita de privilégios! São regalias negadas aos trabalhadores. E ainda mais recusadas aos milhões de brasileiros desempregados por sua incompetente condução da política econômica. A estes, desempregados pela corrupção, desempregados pelos gastos durante o estelionato eleitoral de 2014 e pelo dinheiro despejado no totalitarismo dos camaradas bolivarianos, ela não dedica uma única palavra.

O dedo acusador de Dilma volta-se contra tudo e todos. Só não encontra o rumo do próprio peito.

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* Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.