• Olavo de Carvalho
  • 17 Julho 2015

 

Mesmo aqueles que desejariam ardentemente diminuir os poderes do Estado não vêem outra maneira de fazê-lo senão por meio do próprio Estado, e suas belas intenções acabam sendo trituradas pela máquina da racionalidade estatal.

Toda idéia que se condensa num chavão torna-se imediatamente estúpida, se é que já não o era desde o início e por isso mesmo se acomoda tão confortávelmente nesse formato. Há anos ouço falar de “enxugar o Estado”. À primeira vista parece a resposta lógica natural à constatação de que de que os problemas do Brasil provêm de a sociedade civil ser muito débil e o Estado muito forte – tão forte que consegue subjugar as organizações da sociedade civil. O PT jamais teria conseguido concentrar tanto poder sem a ajuda da OAB, da CNBB e de milhares de ONGs que, nascidas da iniciativa social espontânea, acabaram se transformando numa espécie de funcionalismo público informal. O sujeito vê isso acontecendo e exclama: “Enxugar o Estado!”

Parece sensato, mas há um problema: Quem enxugará o Estado? O próprio Estado. Enxuga-se privatizando. E, na medida em que privatiza, cria uma rede de cumplicidades privadas que estenderão o poder do Estado – agora anônimo, informal e quase invisível – até os últimos confins da vida social. Tudo converge no sentido da constante histórica descrita por Bertrand de Jouvenel no seu clássico Du Pouvoir: Histoire Naturelle de Sa Croissance: Haja o que houver, façam os seus inimigos o que fizerem, o poder do Estado sempre cresce. Cresce quando centraliza, cresce quando se divide e se dispersa, cresce quando faz e quando desfaz, cresce agindo e cresce dormindo.

As análises liberais correntes que repetem ad nauseam o grito de alerta de José Ortega y Gasset, “El mayor peligro, el Estado!” estão certíssimas, no essencial, mas pecam por imaginar que o poder crescente do Estado se baseia sobretudo em mecanismos materiais de controle, como o monopólio da força física ou da economia.

A grande força do Estado moderno não está nisso, mas em algo que Hegel percebeu melhor do que ninguém: o Estado é a mais vasta e complexa criação da inteligência humana, a encarnação suprema da Razão. Comparado à organização estatal, mesmo o conjunto das ciências existentes não passa de uma mixórdia de teorias contrapostas, grupelhos em disputa e preferências irracionais. Cada ciência pode ser muito racional no seu próprio terreno, mas não existe nem pode existir uma articulação teórica integral, uma organização interna e científica do conjunto das ciências. O único princípio unificador desse conjunto é de ordem administrativa e burocrática. É o Estado. Tanto que uma teoria científica, por mais cientistas que a endossem, só adquire a autoridade pública de uma verdade universalmente reconhecida quando vem a ser absorvida pelo Estado e incorporada na legislação. Acima da comunidade científica, acima da “opinião pública” mais letrada que se possa imaginar, o Estado é o juiz supremo e final de todos os conhecimentos humanos.

Contra uma entidade assim constituída, em vão esperneará o economista argumentando que a economia liberal é mais eficiente do que uma economia estatizada. Pois a economia não passa de uma ciência entre outras, e nenhuma ciência poderá jamais se sobrepor ao conjunto de todas elas, no topo do qual brilha a Razão encarnada no Estado.

O Estado torna-se assim o juiz último de todas as questões humanas, e não somente daquelas assinaladas no definição jurídico-formal da sua “área de competência”.

A conseqüência prática é que mesmo aqueles que desejariam ardentemente diminuir os poderes do Estado não vêem outra maneira de fazê-lo senão por meio do próprio Estado, e suas belas intenções acabam sendo trituradas pela máquina da racionalidade estatal.

Agora mesmo, no Brasil, quando tantos se queixam do Estado comunopetista invasivo e onipotente, não enxergam outra maneira de livrar-se dele senão pela disputa parlamentar e judicial, pela reforma das leis e instituições e, em suma, pela ação dentro do Estado.

Com isso, a sociedade civil torna-se ainda mais fraca, mais incapaz de organizar-se e agir. Esse círculo vicioso não não será quebrado enquanto o monopólio estatal da razão não for desmascarado. Como fazer isso, é tema que ficará para um artigo vindouro.

Publicado no Diário do Comércio.

http://www.olavodecarvalho.org/ 

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  • Carlos I.S. Azambuja
  • 16 Julho 2015

 

 


Cerca de 90 anos depois do Manifesto Comunista, em Coyoacán, México, onde se exilara, Trotsky escreveu uma “Introdução ao Manifesto Comunista”, que foi publicada pela ediciones Pluna, de Buenos Aires, em 1974.
Essa publicação, da qual extraímos alguns excertos, resume pontos fundamentais tidos pela ideologia trotskysta, em todo o mundo, como verdades verdadeiras:

“- o governo do Estado moderno não é nada mais que uma junta que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa. Esta fórmula sucinta que os dirigentes da social-democracia consideraram como um paradoxo, de fato contém a única teoria científica do Estado;

- o proletariado não pode conquistar o Poder dentro do marco legal estabelecido pela burguesia.Os comunistas declaram abertamente que seus fins só podem ser alcançados destruindo, pela força, as condições sociais existentes;

- para a transformação socialista da sociedade, a classe operária deve concentrar em suas mãos um poder tal que lhe permita esmagar todos e cada um dos obstáculos políticos que fechem o caminho ao novo sistema: o proletariado organizado como classe dominante, isto é, a ditadura;

- o desenvolvimento internacional do capitalismo é que determina o caráter internacional da revolução proletária. A ação comum do proletariado é uma das principais condições para a sua emancipação. O desenvolvimento ulterior do capitalismo uniu tão estreitamente todos os setores do nosso planeta no sentido de que a revolução socialista assumiu total e decisivamente um caráter mundial. A degeneração bonapartista do Estado soviético é uma demonstração da falsidade da teoria do socialismo em um só país;

- uma vez que no curso do desenvolvimento hajam desaparecido as diferenças de classe e se haja concentrado toda a produção em mãos de uma imensa associação dos indivíduos de toda a Nação, o poder público perderá seu caráter político. Em outras palavras, o Estado se desvanece. A sociedade permanece, liberada de sua camisa de força. Isso não é outra coisa que o socialismo. O teorema inverso: o monstruoso crescimento da coerção estatal na URSS é o testemunho eloqüente de que a sociedade se está afastando do socialismo;

- Marx ensinou que nenhum sistema social desaparece da arena da história antes de esgotar suas potencialidades criativas. O Manifesto, por isso, censura violentamente o capitalismo por retardar o desenvolvimento das forças produtivas;

- a Comuna de Paris demonstrou que o proletariado não pode tomar o Poder à burguesia se não dispuser de um partido revolucionário para conduzi-lo;

- o desenvolvimento da tecnologia e a racionalização da indústria em grande escala, engendra desemprego crônico e obstaculiza a proletarização da pequena burguesia. Por outro lado, o desenvolvimento do Capitalismo tem acelerado o surgimento de uma legião de técnicos e administradores, que são a chamada nova classe média;

- mesmo sob as condições mais avançadas, nenhuma das classes burguesas é capaz de levar a revolução até o fim. A grande e média burguesias têm vínculos demasiadamente estreitos com os possuidores de terras e o temor às massas as imobiliza. A pequena burguesia apresenta-se demasiadamente dividida e em suas camadas dirigentes mostra-se dependente da grande burguesia;

- é bastante evidente que embora a questão do ”nacionalismo” se tenha convertido no mais daninho dos freios históricos nos países capitalistas adiantados, ainda permanece como um fator relativamente progressivo nos países atrasados que se vêem obrigados a lutar por uma existência independente;

- o Manifesto Comunista deve ser ampliado com os documentos mais importantes dos quatro primeiros Congressos da Internacional Comunista, a literatura bolchevique essencial e as decisões das Conferências da Quarta Internacional;

- já assinalamos que, segundo Marx, nenhuma ordem social desaparece de cena antes de esgotar suas potencialidades latentes. Entretanto, uma ordem social, ainda que antiquada, não cede seu lugar a uma nova ordem sem opor resistência. Uma mudança de regime social pressupõe a luta de classes em sua forma mais crua. Isto é, uma revolução;

- na atualidade – 1938 – a III Internacional leva a cabo em todos os países a tarefa de enganar os trabalhadores, muito mais rapidamente que a II Internacional. Ao massacrar a vanguarda do proletariado espanhol, os mercenários de Moscou não apenas abrem caminho ao fascismo, como também executam, ademais, uma boa parte de suas tarefas. A crise prolongada da revolução internacional.que se está convertendo cada vez mais em uma crise da cultura humana, reduz-se essencialmente à crise de sua direção revolucionária;

Como herdeira da grande tradição da qual o Manifesto Comunista constitui o escalão mais avançado, a IV Internacional está educando quadros novos para a solução de velhas tarefas. A teoria é a realidade generalizada. A urgência apaixonada por reconstruir a realidade social expressa-se em uma atitude honesta para com a teoria revolucionária.

O futuro nos pertence. Quando se festejar o centenário do Manifesto Comunista a IV Internacional se terá convertido na força revolucionária decisiva de nosso planeta.”
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O centenário do Manifesto foi comemorado em 1948 e hoje, 67 anos depois, ao contrário das previsões de Trotsky, a IV Internacional permanece fragmentada em diversas seitas, cada uma delas reivindicando ser a força revolucionária decisiva de nosso planeta.
 

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  • Gilnei Lima
  • 15 Julho 2015


A internet trouxe vários efeitos benignos, que todos conhecemos. Mas também trouxe alguns vírus: a malignidade da rede aberta. Mesmo assim, qualquer ideia de regular, censurar ou monitorar a rede é uma aberração contra a qual temos que lutar até as vias de fato.

O escritor Umberto Eco chama de "máquina de lama" a miríade de sites destinados a propagar informações falsas - na qual muitos incautos caem -, inverdades e fraudes que versam o outro lado da verdade. Porém, lembro a vocês que não existem dois lados para a verdade: o outro lado da verdade é a mentira. O que tem faces diversas são as opiniões, a visão dos fatos. Mas fato é fato. Não tem meio-fato. O que não é fato, mas divulgado como tal, é factoide, ou seja, mentira. Cuidado com elas.

Eco diz que os sites que espargem verdades inventadas, são a versão atualizada e repaginada, com novo layout editorial, dos veículos sensacionalistas de um passado nem tão distante. Diante desse ambiente, a função da imprensa profissional é apurar fatos, checá-los e, a partir deles, fazer suas análises. Permitindo inclusive, a publicação da opinião do divulgador do fato jornalístico, mesmo diante de uma visão que pode ser controversa. Mas a verdade ignora o lado de quem a divulga. Faz pouco caso da elegância ou da estética. A verdade não participa de concursos de beleza, tampouco de concurso de simpatias. Não tem cores, não tem bandeiras, ideologias ou partidos. Não torce por ninguém, pois que se basta em si mesma, simplesmente por ser a verdade. Isso faz da verdade algo ímpar, sem cópias,subtítulos ou linhas de apoio. A verdade é pontual, e ponto!

A verdade é a ferramenta do verdadeiro jornalismo, e serve de espada e escudo ao leitor interessado. "Os jovens leem os jornais para saber se o que veem na internet é verdadeiro ou falso", disse o escritor há algumas semanas ao jornal espanhol El País, em entrevista.

A análise aparentemente em nível de superfície, feita por Umberto Eco, na verdade tem raízes extremamente profundas e consolidadas, e vale muito para o Brasil do momento. O Brasil atual, o qual nenhum de nós queria ver e ter que conviver. Seguramente gostaríamos que fosse apenas um sonho ruim, daqueles pesadelos que temos depois de um porre de vinho de má qualidade. Muita dor de cabeça e indisposição, mas que passa até a hora do almoço, depois que acordamos. Pena que seja mais que um porre. É uma brutal infecção, gestada há décadas, que agora eclode em septicemia social e moral, com efeitos colaterais de total ausência de ética, decência e moral. Nos tornamos a nação dos desmoralizados.

Nunca antes na história desse país a Justiça, todas as polícias e o Ministérios Público, trabalharam com tanta liberdade...até que a pata suja do Estado começasse a se mostrar, tal como agora, com determinação de que investiguem o Promotor Federal que indiciou Lula; da proibição do Juiz Federal Sergio Moro de emitir decisão sobre indiciamento de Eduardo Cunha, por ordem do ordenança do reino, Ricardo Lewandowski.

Até aqui, antes do retrocesso com sintomas fétidos, empresários e políticos poderosos foram investigados e muita sujeira saiu debaixo do tapete, borbulharam os bueiros entupidos com os dejetos da corrupção. Outros tantos, por decisão abalizada da Justiça, foram encarcerados. Isto foi um sinal de saúde democrática, em meio a história repleta de imoralidade e privação de liberdade e autonomia dos poderes. Um sinal de democracia madura, mas que começa a dar seus sinais de falência, caso a inércia dos cidadãos permita a reconstrução da pizzaria.

Jornalismo não é militância, e nem pode ser. Cabe à imprensa profissional manter a sobriedade. Mais: a serenidade e a independência absoluta. Fazer jornalismo para o leitor é a regra fundamental. Nunca, penas à soldo.

O exemplo mais profundo do jornalismo verdade que se tem buscado - e encontrado em alguns veículos, e em muitos trabalhos independentes, porém muito profissionais - foi a afirmação de Emílio Odebrecht, que disse em entrevista à uma revista, diante da iminência da prisão de seu filho Marcelo: "Ao prenderem o Marcelo, terão que arrumar mais três celas. Uma para mim, uma para o Lula e outra para Dilma".

"A existência da imprensa é uma garantia de democracia, de liberdade", disse Umberto Eco naquela entrevista aos espanhóis. Que as sábias palavras de Umberto façam Eco em nossos ouvidos e que não deixemos passar o bonde superlotado da história, da qual somos partícipes, autores e atores.

Estamos cansados de ser os mal pagos coadjuvantes de um história suja, onde os que nos roubam o circo sempre ficam com a parte do leão.

*Jornalista
 

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  • Maj. L. Caudill
  • 14 Julho 2015


Os seres humanos têm apenas duas maneiras de lidar uns com os outros: por meio da razão e por meio da força.
Se você quer que eu faça algo por você, há duas opções: ou você me convence por meio de um argumento racional ou você recorre à ameaça de violência.

Toda e qualquer interação humana necessariamente recai em uma dessas duas categorias. Sem exceção. Razão ou força. E só.

Em uma sociedade genuinamente moral e civilizada, as pessoas interagem exclusivamente por meio da persuasão. A força não é um método válido de interação social.

Sendo assim, e por mais paradoxal que isso possa parecer para alguns, a única ferramenta que pode remover a força dessa lista de opções é uma arma de fogo pessoal.

E o motivo é simples: quando estou portando uma arma de fogo, você não pode lidar comigo por meio da força. Você terá de utilizar apenas a sua razão e a sua inteligência para tentar me persuadir. Portando uma arma de fogo, eu tenho uma maneira de neutralizar a sua ameaça ou o seu uso da força.

A arma de fogo é o único objeto de uso pessoal capaz de fazer com que uma mulher de 50 kg esteja em pé de igualdade com um agressor de 100 kg; com que um aposentado de 75 anos esteja em pé de igualdade com um marginal de 19 anos; e com que um cidadão sozinho esteja em pé de igualdade com 5 homens carregando porretes.
A arma de fogo é o único objeto físico que pode anular a disparidade de força, de tamanho e de quantidade entre um potencial agressor e sua potencial vítima.

Há muitas pessoas que consideram a arma de fogo como sendo o lado ruim da equação, a fonte de todas as coisas repreensíveis que acontecem em uma sociedade. Tais pessoas acreditam que seríamos mais civilizados caso todas as armas fossem proibidas: segundo elas, uma arma de fogo facilita o "trabalho" de um agressor.

Mas esse raciocínio só é válido, obviamente, se as potenciais vítimas desse agressor estiverem desarmadas, seja por opção ou por decreto estatal. Tal raciocínio, porém, perde sua validade quando as potenciais vítimas também estão armadas.

Essas pessoas que defendem a proibição das armas estão, na prática, clamando para que os mais fortes, os mais agressivos e os mais fisicamente capacitados se tornem os seres dominantes em uma sociedade — e isso é exatamente o oposto de como funciona uma sociedade civilizada. Um bandido, mesmo um bandido armado, só terá uma vida bem-sucedida caso viva em uma sociedade na qual o estado, ao desarmar os cidadãos pacíficos, concedeu a ele o monopólio da força.

E há também o argumento de que uma arma faz com que aquelas brigas mais corriqueiras, as quais em outras circunstâncias resultariam apenas em pessoas superficialmente machucadas, se tornem letais. Mas esse argumento é multiplamente falacioso.

Em primeiro lugar, se não houver armas envolvidas, todos os confrontos serão sempre vencidos pelo lado fisicamente superior, o qual irá infligir lesões e ferimentos avassaladores ao mais fraco. Sempre.
No que mais, pessoas que acreditam que punhos cerrados, porretes, pedras, garrafas e cacos de vidro não constituem força letal provavelmente são do tipo que acreditam naquelas cenas fantasiosas que vêem nos filmes, em que pessoas tomam variados socos, pauladas e garrafadas na cabeça e ainda continuam brigando impavidamente, no máximo com um pouco de sangue nos lábios.

O fato de que uma arma de fogo facilita o uso de força letal é algo que funciona unicamente em prol da vítima mais fraca, e não em prol do agressor mais forte. O agressor mais forte não precisa de uma arma de fogo para aniquilar sua vítima mais fraca. Já a vítima mais fraca precisa de uma arma de fogo para sobrepujar seu agressor mais forte. Se ambos estiverem armados, então estão em pé de igualdade.

A arma de fogo é o único objeto que é tão letal nas mãos de um octogenário em uma cadeira de rodas quanto nas mãos de um halterofilista. Se ela não fosse nem letal e nem de fácil manipulação, então ela simplesmente não funcionaria como instrumento equalizador de forças, que é a sua principal função.

Quando estou portando uma arma, eu não o faço porque estou procurando confusão, mas sim porque quero ser deixado em paz. A arma em minha cintura significa que não posso ser coagido e nem violentado; posso apenas ser persuadido por meio de argumentos racionais. Eu não porto uma arma porque tenho medo, mas sim porque ela me permite não ter medo. A arma não limita em nada as ações daqueles que querem interagir comigo por meio de argumentos; ela limita apenas as ações daqueles que querem interagir comigo por meio da força.
A arma remove a força da equação. E é por isso que portar uma arma é um ato civilizado.

Uma grande civilização é aquela em que todos os cidadãos estão igualmente armados e só podem ser persuadidos, jamais coagidos.


* Pertenceu ao corpo de fuzileiros navais dos EUA. Está hoje aposentado.

 

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  • Fernando Gabeira
  • 14 Julho 2015

(Publicado originalmente em O Globo de 5 de julho)

A presidente foi traída pela delação. Passei a semana navegando pela costa do Maranhão, caprichosamente desenhada pelo mar. São as Reentrâncias Maranhenses, e as percorri já dentro dos limites da Amazônia Oriental. Meu objetivo era o arquipélago de Maiau. Ao chegar mais próximo dele, o nome das cidades já tem um traço indígena: Cururupu, Apicum Açu. Deixei para trás uma grande crise política. Na Ilha dos Lençóis, consegui ver com os nativos alguns noticiários de tevê. Impressionou-me o impacto da Bolsa Família nessas ilhas maranhenses: a maioria dos habitantes ganha salário do governo.

Quando as notícias eram sobre corrupção na Petrobras eles associavam seu lamento à situação da saúde pública: tanta gente precisando, os hospitais caindo aos pedaços. A tese de Dilma de que não respeita os delatores, comparando-os aos que trocaram de lado no período da ditadura, entrou por um ouvido e saiu pelo outro.

O que penso sobre isso ficou claro num artigo que escrevi, criticando a má-fé dos que comparam os delatores premiados a Judas e Joaquim Silvério dos Reis.

Na Ilha dos Lençóis não existe polícia, nem uma cultura antipolicial. Os problemas são resolvidos pela comunidade. Um criminoso jamais pode fugir porque da ilha só se sai de barco e, passando a voz, os barqueiros se recusam a tirá-lo de lá.
Considero uma farsa comparar um empresário que enriquece com a Petrobras com os militantes que deserdaram na luta armada. Naquela época havia tortura. A denúncia, por mais condenável, visava à preservação física. E havia também um compromisso coletivo de tudo fazer para preservar a vida e a liberdade dos companheiros soltos. Será que Dilma considera o grupo de empresários que manobrava as licitações na Petrobras companheiros que devam resistir a tudo para salvar os outros e o projeto do socialismo? Será que considera que o grupo mafioso formado por políticos e milionários tinha nosso mesmo objetivo pretérito: o socialismo, a ditadura do proletariado? Não acredito que ela coloque os interesses nacionais de uma investigação no mesmo nível das torturas e prisões do período militar.

Ela não é tão pouco inteligente assim. Como comparar um sonho, ainda que equivocado, de transformação social, com o propósito puro e simples de roubar a maior empresa estatal? Será que ela considera todo o núcleo desbaratado e preso pela Polícia Federal uma célula transformadora, com outros objetivos além de enriquecer e se perpetuar no poder? Não acredito que ela confunda a VAR- Palmares com o Clube dos Empreiteiros. Nem que ela considere o Ricardo Pessoa aquele Bom Burguês, um homem rico que ajudava o MR8.

O lugar onde estou é muito louco. Dunas intermináveis, o vento forte, a crença de que o Rei Dom Sebastião, morto em 1578, em Alcacer Quibir, está enterrado aqui com seu cavalo branco e todas as joias que conseguiu trazer. No entanto, pareceume uma loucura maior uma presidente do Brasil dizer, nos EUA, com todas as letras, que não respeita delator, assim de forma abstrata, como se colaborar com a polícia fosse uma das maiores baixezas humanas. Se a mensagem que Dilma e o PT querem transmitir de que o roubo na Petrobras se equivale à resistência armada e de que a corrupção é apenas uma continuidade no combate ao capitalismo, tenho razões para protestar.

Escrevi muita coisa criticando a luta armada. Estou cansado de tocar no assunto. Infelizmente, tenho de voltar a ele por uma questão de justiça: a resistência era feita por idealistas. Mesmo quando se assaltava um banco, arriscava-se a vida. O dinheiro, ao que me consta, não era tocado por indivíduos mas destinado à organização. Os assaltos eram feitos com declarações políticas inequívocas. Ninguém enriqueceu. Pelo contrário: os que não aderiram ao PT têm grandes dificuldades, como todos os brasileiros.

Dilma atua, nesse caso, talvez inspirada pelos marqueteiros, como uma cafetina da luta armada. Tenta justificar um assalto aos cofres públicos desqualificando os assaltantes que se arrependeram e querem devolver o dinheiro ao país. No seu discurso, acusados pelo rombo na Petrobras, ela, Lula e os tesoureiros que ainda estão soltos substituem os idealistas da resistência.

Ninguém deve ter acreditado no argumento de Dilma. Vejo que seu índice de rejeição está nas alturas. Não pretendia voltar ao tema, mas ele introduz uma novo atalho para a impunidade. Sabe com quem está falando? No passado, descobertas no crime, autoridades se escudavam no poder. Na versão atual, mistificadores escondem-se atrás do próprio passado.

Alguns presos do mensalão entraram de punho erguido na cadeia. Eles queriam dizer que a prisão era apenas a continuidade de sua luta. Dilma achou a maneira simbólica de erguer o punho, ao ser revelado o elo do petrolão com sua campanha. Foi traída pela delação. Mesmo quando arruínam o país, querem passar por incompreendidos salvadores.
 

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  • Cristiano Rodrigues e Vinicius Gouveia
  • 13 Julho 2015

 

 Ao longo dos últimos dois meses temos apresentado uma série de artigos (Parte I, Parte II, Parte III), em que denominamos o sistema partidário brasileiro, controlado por PT-PMDB e PSDB, como o de Cartel Político (Partido Cartel é o termo acadêmico usado). Esses partidos comandam quase metade dos municípios brasileiros, 2/3 dos Estados, possuem as três maiores bancadas no Congresso e têm altos gastos de campanha. Além disso, as coligações legislativas giram em torno desses três players. Logo, detêm os mecanismos políticos e econômicos para se manterem vitoriosos nas eleições.

Esta definição de Cartel Político tem como inspiração teórica o paper seminal dos cientistas políticos Richard S. Katz e Peter Mair apresentado na década de 90 (tradução espanhola “El partido cartel – La transformación de los modelos de partidos y de la democracia de partidos”), em que analisam como os partidos se organizam ao longo da história democrática.

Pois bem, o núcleo central do artigo citado versa sobre como a organização dos partidos modernos estão constituídos nas sociedades atuais. Comumentemente temos em nosso imaginário os grandes partidos de massa, representantes e mobilizadores dos diversos matizes sociais - bandeiras/correntes de pensamento: conservador, liberal, social-democrata, socialista etc. Mas, esse modelo de partido "puro" / ortodoxo já não existe na Europa desde a década de 60/70. A bem da verdade, a metamorfose partidária das legendas "tradicionais" para Partidos Cartel levou quase um século na Europa, e abrangeu outras modalidades (Partidos de Elite, Partidos de Massa, Partidos Catch-all e Partidos Cartel) que não serão detalhados, pois fogem ao escopo deste apêndice.

No Brasil, o processo de mutação dos partidos sofreu um curso digamos parecido, mas de maneira não continuada, dada as rupturas democráticas nas décadas de 30 (Estado-Novo) e 60 (Regime Militar), além, é claro, da particularidade do desenvolvimento econômico-social do país. Se direcionarmos nossa análise a partir dos anos 80, momento em que a abertura do Regime Militar permitiu a constituição livre de partidos, notamos uma transição acelerada do processo de metamorfose dos partidos brasileiros entre 1980-2005. Em destaque: 1) PMDB foi até meados dos anos 80, o grande representante da resistência ao regime militar, mobilizador das classes médias urbanas emergentes; 2) o PSDB, nascido da espinha dorsal deste último, foi um tradicional representante dos ideais da socialdemocracia europeia (welfare state e parlamentarista) até chegar ao poder em 1995; 3) o PT de 1980 até chegar ao poder e principalmente até o mensalão (2005), foi um fiel mobilizador dos sindicatos, funcionários públicos, trabalhadores sindicalizados, classes populares urbanas e rurais. 4) Partidos derivados da Arena (PFL e o atual PP) foram minguando e diluindo a participação no cenário político gradativamente com a morte de seus principais cardeais (ACM e seu filho Luiz Eduardo), bem como pela obsolescência política de outros como família Bornhausen e o malufismo. Assim, com as devidas abstrações é possível afirmar: conforme o presidencialismo de coalizão foi entrando em decadência durante a gestão Lula/Dilma como produto da famigerada tentativa de hegemonia do PT e da ausência de reforma política, o Cartel Político, por sua vez, foi ganhando corpo, principalmente a partir do momento em que o PMDB passou a constituir a base aliada do governo petista pós-mensalão em 2005. Diante disso, hoje o que dá sustentação ao débil governo Dilma, não são os partidos da base aliada (presidencialismo de coalizão), mas, sim, o Cartel Político (PT-PMDB e o líder da "oposição formal", o rachado PSDB, que não construiu uma narrativa oposicionista ao longo dos últimos anos). Esses partidos, portanto, dominam a agenda política no Brasil, tanto a do governo (PT-PMDB), como a da oposição (capitaneada pelo PSDB). Mais: o debate sobre o impeachment da Presidente Dilma, bem como de uma eventual sucessão circunscrevem-se a essas três legendas (PT-PMDB-PSDB).

Quais, então, seriam as principais características de um modelo de Partido Cartel? As dez principais segundo os autores Katz e Mair são, a saber: 1) Política torna-se uma profissão (emprego) e não mais ideário para reformas sociais; 2) O Político vira um funcionário público dependente dos recursos do Estado, e não mais um servidor da população; 3) A competição eleitoral entre os partidos é restrita a poucos e relevantes partidos; 4) A entrada de novos participantes nas decisões são dificultadas (barreiras à entrada), pois para ser um partido com capilaridade há que se ter recursos cada vez mais elevados; 5) Altos gastos de campanha com financiamento público crescente; 6) Relação entre a cúpula e as bases do partido distantes, cabendo as oligarquias estaduais e nacionais controles sobre suas zonas de influência independente à cúpula; 7) A militância deixa de ter importância e passa a ser profissionalizada (paga); 8) Acesso privilegiado aos veículos de mídia; 9) O partido se infiltra dentro do Estado; distanciando-se de suas bases junto à sociedade civil; 10) Os representantes são agentes do Estado e não mais delegados efetivos da população que delega a representação para defesa de seus interesses. Os representantes, portanto, estão distantes da população.

Das dez principais características do modelo, podemos afirmar que o sistema político brasileiro atual enquadra-se muito bem no sistema de Cartel Político (Partido Cartel), sendo as 3 organizações PT-PMDB-PSDB detentoras dos desígnios do país. Não à toa, nos últimos 20 anos o Brasil teve a disputa centrada em PT X PSDB nas eleições presidenciais, sendo o PMDB da base aliada de ambos, em que pese na gestão FHC, o presidencialismo de coalizão ainda funcionar. Por isso, entendemos o Cartel como uma nova etapa de formação política a partir de 2005 (crise do mensalão). Para sermos mais precisos e irmos ao âmago da questão, são sob os interesses pessoais das cúpulas desses partidos, que estão os rumos políticos, econômicos e institucionais do Brasil. Hoje, 10 líderes partidários ou cardeais dominam a cena política brasileira, a saber: Lula, FHC, Temer, Calheiros, Serra, Alckmin, Aécio Neves, Sarney (perdeu força eleitoral) e os dois novos membros: Dilma, neófita; e Eduardo Cunha, chefe inconteste do baixo clero. Mais: a maior prova que são esses líderes que comandam a política brasileira, é que não há prévias nos partidos para a corrida presidencial e para muitos outros cargos. Os candidatos são escolhidos por votações simbólicas ou grandes conchavos (apadrinhamentos), que são características de povos patriarcais, como a dos latinos e ibéricos, diferentemente dos povos anglo-saxões (destaque EUA), onde as prévias são extremamente disputadas e aumentam a lisura do processo democrático.

Aqui é importante relatar outro fato: as bancadas em muitas oportunidades não estão alinhadas com a cúpula dos partidos, o que é uma característica intrínseca da definição de cartel. Por exemplo, é sabido que a bancada tucana na Câmara é pró-impeachment; já os cardeais tucanos não, com cada um deles e seu grupo defendendo seus próprios interesses. Alckmin sinaliza que não haja impeachment até 2018, pois assim entende que será favorito na eleição, já que o PT chegaria desgastado ao pleito; Serra dá a entender que não gostaria de ruptura política (mesmo que constitucional - via impeachment), pois flertaria com o parlamentarismo e com possível aceno do PMDB ao cargo de primeiro-ministro; Aécio gostaria de novas eleições, já que sabe que em 2018 a indicação deverá ser de Alckmin no PSDB. Já no PMDB, há alas que desejam o impeachment, pois temem que o partido sofra punição nas urnas por participar do governo Dilma e, principalmente, por não aderir à tese do impeachment. É mais do que sabido que os cardeais do PMDB não gostariam de um desenlace com o PT, pois imaginam que isso teria custos elevados - Dilma dificilmente cairia sozinha, além de o PMDB ter receio de assumir o passivo - esqueletos- das administrações petistas até 2018. Por isso titubeiam tanto, hora sinalizando conversas pró-impeachment, hora com falas moderadas. Ou seja: os cardeais desses partidos tomam as decisões tendo em vista, principalmente, a disputa de poder dentro do Cartel, e não necessariamente alinhado aos anseios de suas bancadas, militantes, eleitores ou de suas históricas bandeiras partidárias (liberalismo, socialdemocracia, socialismo, etc.). É daí que surge a explicação da falta de representatividade dos partidos. Logo, depreende-se que as legendas são meros instrumentos de poder nas mãos dos seus respectivos cardeais.

"Enquanto isso, o Brasil, em meio a incompetência política-administrativa de Dilma e a disputa de poder dentro do Cartel Político, caminha a passos largos para o buraco político-econômico-institucional. Diante desse cenário, a Nação precisa de um choque de gestão e de credibilidade. Precisa, portanto, de um novo governo. O impeachment não é uma bomba atômica, como disse FHC. É, sim, um instrumento constitucional de proteção da sociedade e das instituições, e que funcionou muito bem em 1992. Com certeza, agora levaria a uma reorganização das forças políticas no Congresso. E que nas eleições de 2018, o Brasil possa ter a necessária oxigenação na esfera política.

Nota: De forma alguma através desta análise, pretende-se mostrar que o PSDB seja igual ao PT ou ao PMDB. Não se trata disso, o que se almeja é desnudar a racionalidade dos atores, e como funciona o REAL jogo da política, que é ocultado pela cortina de fumaça produzido pelo marketing político. Reafirmamos: há divergências fundamentais, sim, entre PSDB e PT, as quais foram detalhadas ao longo das partes I, II e III. Porém, a arena política no qual esses partidos jogam é bem diferente da que o senso comum aponta. Sem dúvida, há fortes barreiras à entrada e à saída do Partido Cartel. A partir desse arcabouço teórico, fica mais fácil compreender o atual teatro político do impeachment da Presidente Dilma, bem como a crise política que vivenciamos, que em parte tem origem na disputa de poder dentro do Cartel e da falência do presidencialismo de coalizão nos termos que conhecemos. Isso não significa que não possa haver um rearranjo futuro das principais forças, mas entendemos que serão em novas bases.

 

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