Pe. Francisco Faus
O estado da quest?
Durante um bom n?o de dias, a m?a televisiva, falada e escrita tem dado especial destaque ao caso doloroso da menina de 9 anos, estuprada pelo padrasto em Alagoinha (Pernambuco), bem como ?xcomunh?em que teriam incorrido os respons?is pelo aborto dos g?os, concebidos pela menina em decorr?ia do estupro.
O notici?o e os coment?os da m?a, de modo geral, enfatizaram a severidade do Arcebispo do Recife, por “ter excomungado” a m?da menina e os m?cos que realizaram o aborto; e, ao mesmo tempo, criticaram a suposta benignidade que o arcebispo teria mostrado em rela? ao estupro.
Baste citar, como exemplo disso os dois textos seguintes:
- “O arcebispo Cardoso Sobrinho, que excomungou a m?da menina” (p?a foto do prelado publicada num jornal de grande difus?
- “D. Jos?efende n?excomungar o padrasto da menina de nove anos que a estuprou” (manchete de mais de meia p?na em importante jornal).
Pois bem. Nenhuma dessas duas afirma?s ?xata. Ambas cont?um erro, objetivamente s?uma inverdade. N?se pretende aqui julgar a inten? nem a boa f?os jornalistas que fizeram essas afirma?s: como qualquer ser humano, podem precipitar-se e errar por ignor?ia. Mas parece necess?o –a bem da verdade – facilitar algum esclarecimento especializado a respeito.
O Arcebispo de Recife excomungou algu?
A resposta ?n? D. Jos?ardoso Sobrinho n?puniu ningu?com excomunh? Limitou-se a declarar que a m?e os m?cos diretamente respons?is pelo aborto tinham incorrido numa pena autom?ca prevista pela lei da Igreja. Com efeito, o c?n 1398 do C?o de Direito Can?o vigente diz assim: «Quem provoca o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunh?latae sententiae» (o que significa, na linguagem jur?co-can?a, “por senten?dada pela pr?a lei”, ou seja, ?ma pena tipificada no C?o em que se incorre automaticamente ao cometer o delito).
Significado das penas eclesi?icas
Antes de explicar em que consiste a excomunh? parece-me necess?o lembrar que as penas eclesi?icas (penas can?as), t?– ?iferen?das penas da legisla? comum – uma significa? pastoral. Concretamente, visam, como tudo no direito da Igreja, o bem das almas, a salva? das almas (a salus animarum), que ? fim da Igreja, um fim espiritual. Essas penas t? portanto, como finalidade proteger, salvaguardar, evitar que seja lesada a integridade espiritual e moral da comunidade dos fi? cat?os, e procurar o bem espiritual do pr?o culpado, movendo-o ao arrependimento e ?xpia?.
Tenha-se em conta, al?disso, que as penas can?as:
a) S?aplicadas pela autoridade ou pela lei da Igreja exclusivamente aos fi? cat?os, uma vez que s?os ?os sujeitos sobre os quais a Igreja tem jurisdi? (Neste sentido, nem a lei nem a autoridade da Igreja podem interferir para nada nas atua?s delituosas de membros de outras religi? ou de pessoas sem nenhuma religi?;
b) No direito, em geral, todas as “penas” consistem numa “priva?” de bens (o C?o Penal brasileiro prev?p.e., como todos os C?os penais, penas de priva? de liberdade, de bens materiais, etc.). No caso da Igreja, ela s?de aplicar penas que privem de alguns “bens” pr?os da Igreja, n?da sociedade civil (p.e. privar dos Sacramentos, de fun?s de ministros sagrados, de cargos eclesi?icos, etc.).
Em que consiste a excomunh?
Em primeiro lugar, a excomunh??ma das tr??as penas que podem ser aplicadas automaticamente (latae sententiae) pela pr?a lei. Chamam-se, desde tempo imemorial, “penas medicinais” ou “censuras” (ver C?o de Direito Can?o, c?nes 1131 a 1135).
T?o nome de “medicinais” precisamente porque visam despertar a consci?ia do fiel que delinq?para a gravidade de sua atua?, e mov?o assim ao arrependimento. E ao mesmo tempo, como dizia acima, visam defender a integridade da f? da moral da comunidade cat?a.
Como se v?as “censuras” t?uma finalidade eminentemente espiritual. Mais ainda, se a excomunh?n?foi declarada pela autoridade, pode at?icar restrita ao ?ito da consci?ia do fiel que nela incorreu (e que dela dever?ratar com seu confessor ou superior eclesi?ico). Naturalmente, no momento em que o excomungado se arrepende pode obter com toda a facilidade, sem necessidade de nenhum processo judicial, a absolvi? da censura e do pecado, seguindo as normas do direito (Ver c?nes 1356 a 1358) .
Esta pena, prevista para pouqu?imos casos especialmente graves, consiste, segundo o c?n 1131, na proibi? de:
1) exercer qualquer participa? ministerial em cerim?s de culto (p.e., no caso dos leigos – que ? que agora se contempla –, ficam proibidos, enquanto n?for absolvida a censura, de ser ac?os, ser ministros da Comunh? ou leitores na Missa, etc.);
2) receber os sacramentos (Crisma, Penit?ia, Eucaristia, Un?, etc.);
3) exercer of?os ou encargos eclesi?icos (p.e., ser juiz eclesi?ico, administrador da C?, dirigente de uma pastoral paroquial ou diocesana, etc.).
Nota 1: Dado que o direito can?o indica que toda lei penal deve ser interpretada em sentido estrito, restritivo, a excomunh?n?pro? assistir ?issa (sem comungar, por?, nem participar junto com outros fi? de ora?s e devo?s que n?constituam “cerim?s de culto”: por isso, subsiste a liberdade de participar, p.e., da pr?ca coletiva de devo?s n?lit?cas, como o ter? de novenas, vig?as, etc.; tamb?se pode continuar a ser membro de sociedades religiosas (mas sem ocupar cargos nelas).
Nota 2: Na mente da Igreja, a pena de excomunh?n?pressup?m absoluto que o excomungado esteja exclu? da salva? eterna. No direito penal, a Igreja julga atos externos e imp?enalidades externas (por isso, ?outrina comum que a pessoa excomungada que, depois de incorrer na pena, se arrepende sinceramente do pecado com prop?o de se confessar, fica na hora em estado de gra?diante de Deus). Este ? sentido do velho princ?o que diz que, em mat?a de direito, de internis non iudicat Ecclesia (A Igreja, no seu direito – que ?m ?ito diferente do Sacramento da Penit?ia –, n?julga o interior da alma).
Duas manifesta?s do esp?to pastoral da lei eclesi?ica
A) Condi?s para poder incorrer em pena eclesi?ica :
a) ter a idade penal can?a: 16 anos completos;
b) exist?ia de uma lei que puna o ato delituoso. N?pode haver arbitrariedade. O princ?o geral – que s? casos grav?imos, ins?os e urgentes, admitiria exce? (ver C?n 1399) –, ? seguinte : nulla poena sine lege poenali (nenhuma pena pode ser aplicada se n?est?ontemplada em lei penal pr?a);
c) que esse ato delituoso seja “pecado grave”: ou seja, um pecado em mat?a grave, cometido com plena advert?ia e consentimento deliberado. Se, de acordo com a moral cat?a, avaliando-se o grau de responsabilidade de uma conduta ou pecado, este ato n?pode ser considerado moralmente grave, n?se incorre na pena.
B) O direito da Igreja, no caso das tr?censuras previstas no c?n 1331 (excomunh? interdito – semelhante ?xcomunh? mas com menos conseq?ias – e suspens?de ordens e fun?s, no caso de bispos, padres ou di?nos), estabelece situa?s em que os que cometem o ato delituoso n?incorrem na pena (limitamo-nos agora aos leigos, pois h?iversas penas previstas para cl?gos; p.e. um padre que viola o segredo da Confiss? fica excomungado latae sententiae):
a) n?incorrem na pena os menores de 16 anos, como j??os;
b) n?incorre quem, sem culpa, ignorava estar violando uma lei, ou ignorava que havia uma pena anexa ?ei. Se o ignorava em boa f?n?incorreu mesmo na pena (coisa que o direito comum, na sociedade civil, n?admite);
c) n?incorre quem agiu impelido por medo grave, ainda que seja “relativo” (ou seja, medo que talvez n?afetaria outros, mas afeta o interessado por circunst?ias pessoais), ou sob forte ?eto emocional (de paix?, mesmo que isso n?tenha impedido totalmente a delibera? da mente e o consentimento da vontade.
Sobre essas isen?s, t?amplas e benignas, ver os c?nes 1323 e 1324 do C?o de Direito Can?o.
Por que n?foi excomungado o estuprador?
Depois do que j?oi considerado, a resposta parece bastante ?a.
Como ?atural, a Igreja n?multiplica as excomunh?para todos e cada um dos crimes poss?is. Seria absurdo que previsse uma excomunh?para todos os delitos que o C?o penal brasileiro contempla, alguns deles t?graves ou mais do que o crime de aborto (p.e. assassinar uma m?e o beb?ue carrega no colo, crime recentemente acontecido).
Al?disso, um bispo n?disp?por assim dizer, de um estoque ilimitado de excomunh?para ir impondo-as arbitrariamente em qualquer caso grave. Tamb?os bispos est?submetidos ?ei eclesi?ica e devem obedec?a: princ?o da “legalidade” penal.
Por que, ent? o aborto sim, e o assassinato, ou o estupro, ou o roubo ??armada, ou o inc?io doloso, etc., n?s?punidos na lei geral da Igreja com excomunh? Porque todos os fi? cat?os sabem, perfeitamente e sem a menor d?a, que se trata de pecados graves, de crimes inclusive horrendos, abomin?is. N?h?erigo, portanto, de que a consci?ia dos cat?os seja, neste ponto, confundida ou desorientada. Ou seja, n?h?m perigo de engano ou de dano para a f?u a moral da comunidade cat?a.
Um exemplo claro disso. Quando se deu, em S?Paulo, o lament?l caso da Escola Base, em que uma precipita? desinformada de uma parte da m?a televisiva e escrita divulgou uma cal? que resultou na destrui? moral, ps?ica e financeira de toda uma fam?a inocente, a Igreja n?fulminou nenhuma excomunh?contra os jornalistas respons?is pela divulga? da cal?: o povo crist?n?precisava disso, pois ficou evidente – ao se conhecer a verdade dos fatos – que aquela atua? de ?os e elementos da m?a fora uma falta grav?ima.
Pelo contr?o, hoje em dia um pecado grav?imo como o aborto – que, moralmente, n?admite exce?s –, pelo fato de ser defendido como l?to por juristas, professores, m?cos, legisladores, e at?esmo aprovado pelas leis comuns, pode induzir os fi? cat?os ao equ?co de que “o que ?egal ??to, ?oral”. Por isso, a penaliza? eclesi?ica do aborto ?ma atitude de zelo pastoral da Igreja, destinada a alertar, a manter incontaminada a consci?ia crist?m um tema de grande import?ia em que facilmente os fi? poderiam ser levados a engano.
Pe. Francisco Faus
S?Paulo, mar?de 2009