• Carlos I.S. Azambuja
  • 18 Julho 2014

Resumo: A Era dos Extremos revela um acerto de contas de Hobsbawn consigo mesmo, mas isso nada ensina acerca da realidade do comunismo no poder e de seu peso sobre o Século XX. 

“O trabalho do historiador, porém, não consiste em demonstrar seus estados de alma e suas ‘posições’ escrevendo textos nostálgicos, mas a tornar um passado inteligível a partir de uma base documentada” (Cortar o Mal pela Raiz! – pág. 98).


Por muito tempo os comunistas procuraram impor a sua própria historiografia do Século XX, em particular a historiografia do comunismo. Depois de terem, por décadas, desenvolvido um discurso alinhado com as teses soviéticas, esses historiadores foram surpreendidos pelo desmoronamento da União Soviética, desmantelamento do sistema comunista mundial e pela abertura dos arquivos. A grande maioria dos partidos comunistas perdeu a pretensão de elaborar “suas” histórias. Todavia, após um tempo de flutuação, os velhos reflexos ressurgiram encarnados em quatro livros emblemáticos: A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawn, The Road to Terror, de J. Arch Getty e Oleg Naumov, Le Siècle des Communismes, dirigido por um grupo de universitários franceses, e Les Furies, de Arno Mayer. Todos eles são representativos das reações de três gerações de filocomunistas: a dos velhos marxistas e comunistas ocidentais – Hobsbawn nasceu em 1917 -, a geração acadêmica dos anos 70, influenciada pelos revisionistas norte-americanos e, por fim, a geração oriunda de 1968, esquerdistas e comunistas.


Eric Hobsbawn, autor marxista conhecido por seus trabalhos sobre o Século XIX, acreditou no projeto de dar uma continuidade ao “Era das Revoluções” com o “Era dos Extremos”, publicado em 1994. Esse livro pareceu tão ancorado na mitologia comunista que seu habitual editor francês recusou-se a publicá-lo, mas o Le Monde Diplomatique – órgão quase que oficial do marxismo terceiro-mundista – realizou sua edição em 1999, a fim de utilizá-lo em seu combate ao “ultraliberalismo” e à “globalização” – vocábulos neo-comunistas que designam o capitalismo em geral e o imperialismo norte-americano em particular -, mas também contra os historiadores críticos do comunismo.


A “Era dos Extremos” apresenta uma ampla síntese do curto Século XX, que se inicia em 1 de agosto de 1914 (início da I Guerra Mundial) e se encerra em 19 de agosto de 1991 (data do confinamento de Gorbachev na Criméia, por três dias, por dirigentes do partido e da KGB contrários à perestroika).


No livro, Hobsbawn confunde a Revolução Bolchevique com a Revolução Democrática de fevereiro de 1917 e retoma o tema da “grande revolução proletária mundial”, mito criado por Lenin, que mantinha relações bastante longínquas com a realidade, já que o proletariado, além de pouco desenvolvido, não era necessariamente revolucionário.


O anti-fascismo é apresentado por Hobsbawn como um fenômeno central do período que, segundo seu entendimento, conheceu sua hora da verdade em 22 de junho de 1941 quando, com o ataque da Alemanha à URSS, o campo herdeiro do iluminismo do Século XVIII se viu unido contra o campo da reação e do obscurantismo. Com essa abordagem, o historiador retém uma visão sumária do campo político europeu: de um lado o comunismo, do outro o fascismo, no qual ele não chega a distinguir entre nazismo, fascismo e regimes autoritários, e a direita liberal sendo vista apenas como um aliado potencial do fascismo mas nunca como uma força democrática. Hobsbawn finge ignorar que Lenin já havia sido denunciado por Trotsky, desde 1903, como um novo Robespierre e que os bolcheviques, e depois os comunistas, combateram com ferocidade a democracia representativa, a começar pelo primeiro gesto, altamente simbólico, que foi a interdição da Assembléia Constituinte russa em 18 de janeiro de 1918 e a repressão violenta a seus partidários. Ou seja, Hobsbawn não quer admitir que a Revolução Bolchevique foi a primeira revolução anti-democrática da história moderna.


Ele não apenas desliza discretamente sobre os pactos germano-soviéticos de 1939, sobre a partilha da Polônia – nenhuma palavra sobre o Massacre de Katyn -, sobre a anexação dos países do Báltico e da Bessarábia por Stalin, como também não chega a evocar a guerra civil desencadeada pelos comunistas na Grécia em 1946, o “golpe de Praga” de 1948 ou o bloqueio econômico de Berlim em 1948-1949. E estima, evidentemente, que a Guerra Fria deveu-se à histeria anti-comunista surgida nos EUA.


Enfim, o socialismo realmente existente é, segundo Hobsbawn, um maravilhoso projeto de modernização acelerada da URSS que, mesmo tendo sido marcado por um custo sem dúvida excessivo, parece-lhe em parte justificado, não arrancando de sua parte qualquer palavra de compaixão pelas vítimas. Ele justifica assim a existência da URSS: a revolução bolchevique foi “a salvação do capitalismo liberal, pois permitiu ao Ocidente ganhar a 2ª Guerra Mundial, incitando também o capitalismo a se reformar e, paradoxalmente, em virtude da aparente imunidade da União Soviética à Grande Crise, a renunciar à ortodoxia do mercado”. Trata-se de – paradoxo supremo para um cidadão britânico – ignorar que, no verão de 1940, em plena lua-de-mel germano-soviética, apenas a Grã-Bretanha, com a ajuda norte-americana, resistia a Hitler. Aliás, o capitalismo não esperou por Lenin nem Stalin para se reformar, limitar seus efeitos nocivos no campo social, submetendo-se à pressão reguladora do Estado, chegando finalmente ao que Hobsbawn é obrigado a classificar como “era dourada” – os anos 1950-1973 -. Essa era dourada, contudo, concerne somente à parte não-comunista do mundo, pois nesse mesmo período as populações submetidas a regimes comunistas curvavam-se ante o terror de Stalin, de Mao, de Ceaucescu e logo Pol Pot, e viviam uma miséria que era resultado direto da ideologia comunista aplicada ao campo econômico. Hobsbawn apresenta o período posterior a 1973 como os anos de declínio e de uma nova catástrofe anunciada. Ora, ao contrário, os anos 1989-1991 foram marcados, no Leste-Europeu e na ex-URSS, por uma etapa na qual se seguia em direção à libertação dos povos e que se rumava, nessa sempre difícil jornada, para a democracia e para a prosperidade.


A seus críticos, Hobsbawn responde que “é um desafio para os historiadores serem obrigados a escrever a História como vencidos” (o seu caso). Curiosa maneira de posar de vítima, esquecendo que por várias décadas ele escreveu a História concebida “à luz do marxismo vitorioso” e do “futuro radiante” soviético.


Definitivamente, Eric Hobsbawn dá a resposta a respeito das intenções de seu livro: “(...) Minha obra se apresenta como um esforço para repensar as posições de toda uma vida”. O trabalho do historiador, porém, não consiste em demonstrar seus estados de alma e suas “posições” escrevendo textos nostálgicos, mas a tornar um passado inteligível a partir de uma base documentada. Certamente, não será indiferente ao leitor saber que a maior parte dos autores de O Livro Negro do Comunismo foi, com maior ou menor grau de intensidade, militante comunista e/ou revolucionário em sua juventude. Entretanto, eles não escreveram o livro para “repensar suas posições” do período militante de suas vidas, mas para estabelecer um painel histórico pouco conhecido, muitas vezes mal documentado e mantido como tabu por bastante tempo. Que esse trabalho histórico seja, para alguns autores, a chegada a uma reavaliação de seus itinerários pessoais, isso não interfere com o trabalho científico e interessa apenas aos autores, e muito secundariamente aos leitores. Que A Era dos Extremos revele um acerto de contas de Hobsbawn consigo mesmo, o que será bastante útil a título de testemunho, para os historiadores do futuro que procurem elucidar a militância no comunismo e a cegueira de grandes intelectuais ocidentais, mas isso nada nos ensina acerca da realidade do comunismo no poder e de seu peso sobre o Século XX.

Bibliografia:

Livro Cortar o Mal pela Raiz! História e Memória do Comunismo na Europa, diversos autores sob a direção de Stéphane Courtois, editora Bertrand do Brasil, 2006. 

http://heitordepaola.net.br/publicacoes_materia.asp?id_artigo=3996

 

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  • Bruno Braga
  • 17 Julho 2014

Quando padres passam a utilizar o altar para promover uma proposta de reforma política, o mínimo que se deve fazer é investigar para onde eles, com a ousada iniciativa, estão conduzindo o seu rebanho. Não, não é pecado. A investigação é um dever irrenunciável principalmente quando a proposta na qual estão engajados - a que é apresentada por uma "Coalizão pela Reforma Política Democrática" [1] - aparece subscrita, não só pela CNBB [2], mas por grupos e organizações como MST, CUT, UNE, CTB, UBM, CONTAG, entre outras [3] - que empunham bandeiras completamente contrárias aos princípios da Igreja Católica. Abortismo, ideologia de gênero, legalização das drogas, luta de classes, etc.

O objetivo aqui não é examinar a proposta de reforma política nos termos do financiamento público das campanhas eleitorais, do sistema de listas para a escolha dos candidatos ou nos da exigência de maior participação das mulheres nas eleições. São pontos sim relevantes, e absolutamente questionáveis. Porém, há um elemento especial na proposta abraçada pelos padres - não por todos - que esconde ardilosamente o que de fato está em jogo: um ambicioso projeto de concentração de poder que cada vez mais toma de assalto o país.

"Sociedade civil". Essa expressão aparece em pontos nucleares da proposta apresentada pela "Coalizão pela Reforma Política Democrática". Por exemplo, o artigo 8A estabelece o seguinte: "As campanhas dos plebiscitos e referendos terão a participação na sua criação, coordenação e execução de organizações da SOCIEDADE CIVIL, juntamente com partidos políticos e frentes parlamentares" - Parág. único: "Será assegurada a igualdade entre as organizações da SOCIEDADE CIVIL em relação aos partidos políticos e frentes parlamentares participantes na CRIAÇÃO, COORDENAÇÃO e EXECUÇÃO das campanhas referidas no caput" (p. 18).

Assim, a "sociedade civil" é inserida na elaboração e na condução de plebiscitos e referendos, instrumentos que serão utilizados para decidir "questões de grande relevância nacional" (Cf. art. 3A e 3B, p. 18). Acontece que ela - a "sociedade civil" - não é representada concretamente pelo cidadão comum, mas sim por líderes, organizações e "movimentos sociais" controlados ou associados, patrocinados por agentes e grupos políticos. Grupos ligados principalmente ao PT e aos que com ele trabalham em consórcio para promover o SOCIALISMO-COMUNISMO no Brasil - grupos que subscrevem a proposta de reforma política apresentada pela "Coalizão pela Reforma Política Democrática" [4].

O que parece fortalecer o poder discricionário da população em geral, na verdade, promove grupos que estão integrados a um projeto de poder totalitário. Eles decidirão o que é uma "questão de grande relevância nacional" e condicionarão subrepticiamente as escolhas e decisões das pessoas, pois participarão da elaboração, promoção e execução de plebiscitos e referendos. Pior. Esses mesmos grupos irão adquirir o mesmo status dos representantes escolhidos pelo voto, estes sim escolhidos pela população (Cf. art. 8A, parág. único).

Enfim, não é possível estabelecer o grau de inocência, de ignorância - ou de má-fé - dos padres que propagandeiam no altar a proposta de reforma política apresentada pela "Coalizão pela Reforma Política Democrática". Certo é que, com essa iniciativa, eles estão conduzindo o seu rebanho, induzindo os fiéis a consolidarem um projeto de poder que foi erguido às custas de um assalto à Igreja Católica, instrumentalizada sobretudo por um simulacro de teologia forjado para favorecê-lo - a Teologia da Libertação. Portanto, sacerdotes e fiéis que não desejam contribuir com isso, não apoiem - não assinem! - essa proposta de "reforma política".

NOTAS.

[1]. "Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas" [http://www.reformapoliticademocratica.org.br/].

[2]. Os católicos precisam aprender de uma vez por todas: a CNBB não pertence à hierarquia da Igreja Católica, e, por isso, não tem autoridade para falar em nome dela.

[3]. Idem - "Quem somos" [http://www.reformapoliticademocratica.org.br/?page_id=543] e Cartilha "Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas", p. 43 [http://www.reformapoliticademocratica.org.br/wp-content/uploads/2014/04/cartilha.pdf].

[4]. A propósito, o leitor interessado pode comparar a proposta de reforma política apresentada pela "Coalização para a Reforma Política Democrática" com a do PT - elas são praticamente idênticas.

http://b-braga.blogspot.com.br/2014/07/padres-pregam-proposta-de-reforma.html
 

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  • Olavo de Carvalho
  • 16 Julho 2014

Excetuada a hipótese da sabedoria infusa, é preciso algumas décadas de experiência para um sujeito entender que a esperança numa vida após a morte é mais realista, mais racional e mais científica do que a aposta em qualquer utopia social terrena. No fim a conclusão é sempre esta: ou o Paraíso ou o Nada. Como o Nada é impossível, resta aquela tentativa incansável e interminável de aproximar-se dele, a qual se chama, tradicionalmente, inferno.

Isso é a vida humana.

Dia a dia acumulam-se os indícios de que ela não cessa com a morte, inclusive esse filme espetacular, Heaven is for Real, em que um menino de quatro anos demonstra saber mais sobre o outro mundo do que em geral os guias iluminados dos povos sabem sobre este.

Em compensação, jamais se viu o menor sinal de que uma sociedade cientificamente planejada pudesse funcionar sem levar milhões de pessoas ao cárcere, ao cemitério ou, no mínimo, ao desespero. Quando Lincoln Steffens, um dos santos de devoção da babaquice jornalística, voltou da URSS informando "Eu vi o futuro e ele funciona", a coisa já estava mesmo funcionando: fome e miséria, cadáveres para todo lado e a tortura institucionalizada como prática corriqueira pela mais eficiente polícia política de todos os tempos.

Em cada estação de trem, as mães se apinhavam implorando que alguém levasse embora os seus bebês antes que a genial economia socialista os matasse de inanição.

Platão, na República, já demonstrava que mesmo o melhor dos regimes políticos, concebido para agradar o mais exigente dos filósofos, terminaria por se destruir a si mesmo por suas contradições internas, e cederia o lugar a alguma velha porcaria tida pelos otimistas como historicamente superada.

Uma das razões mais constantes para que as coisas sejam assim é que, precisamente, os homens se esquecem de que elas são assim. Jean Fourastié, no seu clássico Les Conditions de l’Esprit Scientifique (Gallimard, 1966), ensina que uma das forças históricas mais decisivas é o esquecimento. De geração em geração, os sábios se entusiasmam de tal modo com as suas novas descobertas que acabam não percebendo que quase sempre a dose de conhecimento perdido é quase igual à do conhecimento conquistado. Deslumbrados com os antibióticos, os circuitos integrados, os clones e as fibras óticas, até hoje não sabemos explicar como os homens de outros tempos, aqueles bárbaros, conseguiram construir as pirâmides do Egito ou manter de pé os vitrais das catedrais góticas.

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Existe uma diferença enorme entre um ideal político substantivo e a camada de adornos verbais de que se reveste. Verbalmente, o socialismo é igualdade, liberdade, etc. e tal. Substantivamente, é a unificação de poder político e econômico, portanto a criação de uma casta governante mais poderosa e mais dominadora do que a anterior. O socialismo não é ruim porque se desviou do seu ideal, mas porque o realizou.

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O discernimento estético é parte integrante da cultura espiritual. A música, as artes plásticas, o cinema e o teatro são armas letais usadas na desumanização das massas, e isto menos pelo conteúdo propagandístico explícito (uma exceção) do que pelo simples fato de dissolverem o senso estético das multidões pela exposição repetida ao feio e disforme apresentado como normal.

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O tempo da pornografia já passou. A moda agora é deformidade corporal, vômito, sangue pisado, pus e cadáveres em decomposição.

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Pessoas que escrevem mal percebem mal, retêm mal, e com a maior facilidade se enganam a si mesmas quanto às suas intenções simplesmente trocando os nomes dos sentimentos que as movem. A literatura e o conhecimento da alma humana sempre andaram juntos. Ninguém pode apreender nuances e sutilezas da vida emocional com uma linguagem tosca, mesmo que gramaticalmente correta.

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O cristianismo jamais teve como objetivo a eliminação da pobreza. Jesus deixou isso muito claro ao dizer: "Sempre haverá pobres entre vós" – e, pior ainda, Ele disse isso num contexto que enfatizava a prioridade dos deveres espirituais sobre quaisquer demandas, mesmo justas e necessárias, da vida material.

Os comunistas não roubaram nenhuma ideia do cristianismo. Ao contrário, emprestaram-lhe a sua própria ideia, para dar a ela o prestígio de um ideal sagrado. A única ideia que os comunistas roubaram do cristianismo não tem nada a ver com eliminação da pobreza. Foi a ideia do Juízo Final, que eles reduziram à escala histórico-social para justificar o seu projeto de matar gente a granel sob um pretexto edificante.

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Seres humanos normais praticam a igualdade nas suas relações pessoais na medida do razoável e aceitam a desigualdade social como uma coisa natural e invencível. Malucos pretendem eliminar a desigualdade social e por isso levam ao extremo a desigualdade pessoal, imaginando-se infinitamente superiores aos demais seres humanos. Mao Dzedong acreditava-se igual aos setenta milhões de chineses que ele mandou para o beleléu?

Comunistas acreditam em "amar a humanidade impessoalmente", como se abstraída a dimensão pessoal ainda restasse algo de humano. O que amam é uma hipotética humanidade futura construída à imagem deles mesmos, em nome da qual tentam eliminar a humanidade presente.

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Sugestão: Para cada livro de filosofia, leia pelo menos cinco de História. O confronto com os fatos amortece bastante o vício de jogar com conceitos e argumentos. O filósofo que o é pelo puro "gosto dos conceitos abstratos" (fórmula de Sir Michael Dummett tão apreciada por estas bandas) não passará jamais de um menino brincando de Lego.


Olavo de Carvalho é jornalista, ensaísta e prof. de Filosofia

www.dcomercio.com.br/2014/07/14/notinhas-execraveis
 

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  • Paulo Briguet
  • 15 Julho 2014

PAULO BRIGUET

 

1. Sou patriota – mas não dessa pátria que você estão imaginando. Meu país nem nome tem. É formado por praças onde flores amarelas repousam na grama úmida, com copos plásticos brancos consumidos na festa de ontem. Tenho cidadania de uma república de estudantes demolida há muitos anos. Ufano-me das telas de Chagall e dos temas de Bach que carrego por onde vou. A fronteira do meu país chama-se Córrego Água Fresca; fica ali no fundo de vale.

2. Se você quiser encontrar meu país, não procure nos mapas, nem use bússola, nem leia os jornais. Ele só pode ser achado nas páginas de um livro de crônicas antigas, mais velho que qualquer um de nós, e marcado por uma flor que secou décadas atrás, colhida não se sabe por quem, escondida não se sabe por quê.

3. A seleção do meu país só disputou uma Copa: a de 5 de julho de 1982, no Estádio Sarriá. Ali jogou, ali perdeu, ali chorou. O Sarriá, como a velha república, foi demolido: virou um conjunto residencial. Alguém dorme hoje no exato lugar em que Falcão fez aquele gol de fora da área – tão belo e tão inútil.

4. Alguns viram meu país andando sem rumo pelo calçadão do campus. Outros tiveram notícia dele sozinho no palco do Zaqueu de Melo, recitando Fernando Pessoa: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

5. Meu país anda de ônibus e táxi. Conhece várias gerações de taxistas e cobradores; com os motoristas de ônibus, ele só fala o essencial: “Deus existe”.

6. Meu país é um pensamento de Deus. Só existe porque Ele teve a compaixão de pensá-lo. Para onde vai meu país, só Deus sabe. Mas ele não pode querer ser nada. É e continuará sendo, mesmo depois de levar sete gols, quebrar a Petrobras, permitir a volta da inflação e acreditar no ministro Gilberto Carvalho.

7. Cada vez mais o meu país se parece com uma aldeia russa pintada por Chagall. Henry Miller dizia ser patriota do Brooklyn; eu sou patriota do colchão em que li Henry Miller, na república que não existe mais. O importante não é saber se meu país acredita em Deus, mas se Deus ainda acredita no meu país.

www.jornaldelondrina.com.br/blogs/comoperdaodapalavra/

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  • Dr. Tercio Genzini
  • 14 Julho 2014

Há poucos minutos, entre uma consulta e outra, ouvi batedores da Polícia Militar fechando a Avenida 23 de Maio em São Paulo. Nada mais que cinco pistas fechadas. Como nunca vi antes, nem de madrugada, nos 15 anos que atendo neste consultório, a Avenida 23 de Maio, a mais movimentada de São Paulo estava vazia.

Fiquei perplexo, e o paciente seguinte que me perdoe, mas fiquei aguardando na janela, desconfiado e certo que teria uma decepção...e tive! Não preciso descrever que o ônibus da seleção brasileira passou, com toda a pista livre pra eles, escoltado por mais de dez batedores da PM além do helicóptero Águia.
Pois é, um ônibus com cerca de 30 milionários a bordo, quase todos morando no exterior, cuja função é jogar futebol, tratados como verdadeiros heróis, de uma forma completamente diferente do que qualquer outra profissão possa almejar !

Nós médicos somos descartáveis, tratados como qualquer um pelo nosso governo federal, substituídos por quem nem comprovação que é médico precisa ter! Enfermeiros, paramédicos, bombeiros, policiais e todos que dão a vida pra salvar outras, nem se fale ... são arrochados e massacrados trabalhando sem condições e ganhando uma miséria. Professores - ah, coitados dos professores! - nem faço comentários a respeito pois precisaria de um lençol para conter as lágrimas. Cientistas, engenheiros e outros que fazem crescer nosso país e trazem tecnologias para melhorar nossas vidas, têm, como única esperança, serem contratados por uma multinacional e tratados como estrangeiros.

E lá vão eles, triunfantes ..quem? Os jogadores de futebol! Ah sim, em todos os jornais, revistas, TVs, estarão estampados os heróis de nossa Nação! Mas o que eles fazem mesmo? Salvam vidas? Educam? Trazem segurança ou saúde? Criam Leis, lutam por melhores salários ou desenvolvem tecnologias para melhorar a vida do povo? Não, jogam bola!

E para explicar para uma criança que é mais importante estudar que jogar bola? Realmente, não sei mais! Porque eu... aprendi tudo errado!


Diretor do Grupo HEPATO - Cirurgia Hepatobiliopancreática e Transplantes de Órgãos na empresa Hospital das Clínicas de Rio Branco, Cirurgia Hepatobiliopancreática e Transplantes de Órgãos Abdominais na empresa Hospital Alemao Oswaldo Cruz e Diretor do Serviço de Hepatologia, Cirurgia Hepatobiliopancreática e Transplantes de Órgãos Abdominais no Hospital Bandeirante
 

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  • Leo Iolovitch
  • 13 Julho 2014

O Mingau não sorria, mas tinha um defeito de prótese, que dava a impressão que sempre estava sorrindo. Era atarracado, tratava todo mundo por “meu nego”, era simpático, ninguém sabia se era casado ou não, nem onde morava. Dele só duas coisas eram certas: Era funcionário da CRT – Companhia Riograndense de Telecomunicações, que chamava de “a Companhia” e cada noite aparecia com uma mulher diferente. Sua aparência era entre o “graças a Deus” e o “mais ou menos”, o sorriso artificial era duro de aturar, por isso mesmo era difícil entender como sempre tinha uma mulher diferente a seu lado, embora elas também não fossem grande coisa... Sobre isso comentava: “as menos bonitas são mais carinhosas”.

Dizia que seu segredo era simples: “Meu nego, não tem mulher que não queira ter um telefone. Quando elas dizem que não têm, eu faço cara de espanto, e digo: “Mas como? Deixa comigo, eu trabalho na Companhia”. E a partir daí, meu nego, o jogo tá ganho...” E dava uma gargalhada, mostrando mais ainda a dentadura parelha.

De uma hora para outra ele desapareceu. Parece que foi porque o dono do bar quis cobrar uma conta, que vinha sendo rolada e enrolada, com a eterna promessa de instalação de um telefone comercial. Nunca se soube que ele realmente tenha conseguido instalar algum.

Recentemente me contaram que ele teria morrido.

Hoje, com um “crachá da Companhia”, não iria mais conseguir conquistar ninguém e sua lábia teria de ser outra.

Além das noivinhas do Mingau, quantas e quantas pessoas deixaram de ter seus telefones instalados por conta de uma estatal ineficiente. Nos lençóis do Mingau muito suspiro e gemido foi trocado por um alô hipotético... Se estivesse vivo provavelmente estaria participando de algum “Forum em Defesa da Empresa Pública” ou coisa no gênero, para defender “A Companhia” e, provavelmente, comer alguma ativista de cabelo crespo e calcanhar encardido. 

Sempre que há eleições e vem a propaganda eleitoral, nem parece que o Mingau morreu, surge uma saudade surda da estatal ineficiente, que deixou todos nós sem telefone, que, de tão raro, era até incluído na declaração de renda. Dá até vontade que toquem todos os atuais celulares e telefones ao mesmo tempo, para despertar os que dormem esse sono da estupidez.Ao ouvir essas manifestações contra as privatizações, fica a impressão que, assim como o Elvis e a Elis o Mingau também não morreu. Ele voltará com aquela conversinha, para seduzir quem queira ser comido em troca da ilusão de uma promessa de funcionário de estatal.

Então o Mingauzinho vai reaparecer, com um crachá da Companhia, os olhos umedecidos pela má fé e o conhaque vagabundo, dirigindo-se para alguma mulher de graça perdida, porém com o discurso oportunista já devidamente atualizado, dizendo apenas:
“E aí, beleza ?”

www.olivronanuvem.com.br
 

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