• José Antônio Giusti Tavares
  • 30 Setembro 2014

Nas democracias constitucionais que funcionam com o sistema presidencial de governo, a representação política e o governo são constituídos por dois procedimentos senão diferentes pelo menos independentes entre si, ambos em eleições universais competitivas periódicas e regulares e com mandato por tempo determinado. Naquelas que funcionam com o sistema parlamentar de governo a representação política eleita pelo voto popular direto nomeia o governo que, diante dela responsável, exercita suas funções enquanto dela detém a confiança, contando, entretanto, com a faculdade contraposta de submetê-la a novas eleições. Nos dois casos são instituídos e funcionam efetivamente mecanismos de separação e de contenção recíproca entre os poderes constitucionais, bem como um Tribunal Constitucional, guardião supremo dos valores e dos preceitos constitucionais; e, em particular, no sistema parlamentar de governo institui-se a separação entre Chefia de Governo, responsável pela execução das políticas públicas, e a Chefia de Estado, responsável pelo equilíbrio da ordem constitucional. Enfim, na democracia constitucional toda autoridade pública é submetida, em princípio, a mecanismos de responsabilização pública; e os direitos individuais, incluído o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à associação, são assegurados pela lei constitucional e pelo poder judiciário.
Os mecanismos institucionais da democracia constitucional são eficazes, sem serem invasivos ou ofensivos, para assegurar o equilíbrio da ordem política e, nela, a liberdade e os direitos fundamentais do ser humano, sem o que não há sequer justiça social. São eficazes, mas são desarmados: são fios de seda, como os denominou Guglielmo Ferrero, o notável jurista, cientista político e historiador liberal italiano da primeira metade do século precedente. Mas fios de seda não permitem atar o dragão da maldade.
Assim, em uma democracia constitucional e representativa, sobretudo quando erodida e fragilizada pela decadência de suas elites, bem como pela corrupção e pela desinformação políticas generalizadas, não só os partidos constitucionais, que se movem nos limites da ordem pública constitucional, mas aquela própria ordem, devem enfrentar o paradoxo de que se encontram com freqüência em inferioridade de condições frente aos partidos revolucionários totalitários que, participando da política institucional, não só não observam aqueles limites mas manifestamente, por suas proposições e por suas atitudes, atentam permanentemente contra aquela ordem.
O paradoxo descrito decorre de quatro fenômenos evidentes.
Em primeiro lugar, a democracia constitucional é a mais complexa e delicada dentre as formas políticas e muito dificilmente pode competir pela preferência do homem comum com o totalitarismo, que recorre a uma simplificação brutal da realidade política, substituindo a informação e a análise racional pelo apelo direto ao inconsciente e à emocionalidade de indivíduos mergulhados em situação de massas.
Em segundo lugar, ao participarem da ordem política constitucional os partidos totalitários beneficiam-se das prerrogativas e dos recursos que ela confere, sem obrigar-se aos valores, às regras e aos limites que ela impõe e, sobretudo, sem abrir mão do comportamento revolucionário, conspiratório, insurrecional e golpista.
Fora do governo mas, sobretudo, ao ocupá-lo, adotam simplesmente a estratégia leninista-trotskista da dualidade de poder, que consiste em conspirar pelo alto, do interior das instituições, e mobilizar de baixo, mobilizando camadas sociais disponíveis e receptivas e, enfim, gerando pressões societárias, inclusive armadas. Este é o caso exemplar, no Brasil, do Partido dos Trabalhadores e de seu braço armado, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, como revela a Circular do Diretório Nacional na qual aquele partido justificava a sua recusa inicial de obrigar-se à Constituição de 1988, que consagrava as normas e as instituições da ordem constitucional estabelecida:
“O PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo. (...) rejeita a imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade que emana da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura destruir.”.

Ainda em 1988, o atual governador petista do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, sustentou, com a sua conhecida competência doutrinária, na revista partidária Teoria e Debate (n°4,pp. 38-41), a estratégia leninista-troskista da dualidade de poder:
“...o partido deve responder às exigências de uma longa disputa pela hegemonia (...) com a construção de uma cultura política e de uma ideologia socialista em bolsões altamente organizados daqueles setores revolucionários, em direção a uma ruptura com o Estado burguês... com respostas dentro e fora da ordem (...), sob pena de limitar-se aos enfrentamentos na esfera política das instituições da ordem, sendo inexoravelmente sugado por ela.”

A noção gramsciana, ultra-leninista, de hegemonia, muito difundida na América Latina, significa poder monopólico e é, portanto, absolutamente incompatível com o pluralismo político essencial à democracia constitucional.
Alguém muito complacente poderia objetar às citações acima que elas pertencem ao ano de 1988 e que, entrementes, o partido e o político que as enunciaram podem ter alterado suas atitudes políticas. A objeção seria pueril mas respondê-la introduz a oportunidade de pontuar um princípio elementar.
Partidos e homens públicos têm a responsabilidade de publicar não só as suas concepções e estratégias políticas, mas as revisões ou mudanças que, quanto àquelas, tenham feito. Em 1959, no Congresso de Bad Godesberg, o Partido Social-Democrata Alemão declarou, em um documento formal amplamente divulgado, que a partir daquele momento renunciava a qualquer tipo de confessionalismo político e, em particular, à noção de partido portador de uma teoria, exorcizando, assim, o fantasma do marxismo.
O fato de que o PT ou mesmo qualquer de seus próceres jamais tenha revisto formal e publicamente as concepções originárias do partido, tendo mesmo recusado a comprometer-se com o pacto constitucional de 1988, revela que lamentavelmente está ainda viva a estratégia revolucionária totalitária que fora enunciada naquele ano. Ademais, ao longo dos doze anos do governo petista, as tentativas sucessivamente frustradas de violar os princípios, as normas e as instituições da democracia constitucional e representativa – entre as quais o Programa Nacional de Direitos Humanos III, de 2009, e a Política Nacional de Participação Social, de 2014 – demonstram claramente que não há ambigüidade que consiga ocultar o empenho continuado e cada vez mais radical, por parte do neocomunismo petista, de destruir a democracia representativa e constitucional edificada com tanto esforço, substituindo-a por uma democracia plebiscitária e totalitária.
Em terceiro lugar, os cidadãos comuns, que participam dos partidos constitucionais ou com eles se identificam, partilham a sua dedicação, as suas energias e a sua lealdade entre múltiplas atividades e associações, entre as quais a política e os partidos possuem uma importância limitada, ocupando mesmo um espaço menor. Não há nessa atitude nada de errado. Ao contrário, como já Aristóteles observara, a participação política moderada constitui requisito fundamental da democracia constitucional, que o filósofo denominava simplesmente politéia. Contudo, pertence à natureza e à lógica dos partidos totalitários apelar para a participação e para a mobilização políticas permanentes, para o profissionalismo e para o ativismo revolucionários de tempo integral e, enfim, para a politização da totalidade das esferas da existência, incluídas aquelas mais íntimas.
Enfim, em quarto lugar, a compreensão adequada dos valores sobre os quais está fundada a democracia constitucional e das normas e das instituições com as quais opera, bem como dos processos econômicos por referência aos quais se definem as políticas públicas e o comportamento dos partidos nas sociedades democráticas contemporâneas, exige dos indivíduos, em virtude de sua complexidade e sutileza, um nível muito elevado de discernimento intelectual, que se encontra normalmente fora do alcance da informação e do entendimento do homem comum.
A rigor, a participação racional e responsável nas decisões democráticas exige do cidadão um nível relativamente elevado de informação factual, de saber contextual e de saber estrutural, que ele normalmente não possui. Sob tais condições, a democracia constitucional muito dificilmente pode competir pela preferência do homem comum com o totalitarismo, que recorre a uma simplificação brutal da realidade política e econômica, substituindo a informação e a análise racional pela ideologia, um “saber” de custo próximo de zero, que contém, por outro lado, um apelo direto à emocionalidade e ao inconsciente de indivíduos mergulhados em situação de massa.
Enfim, o exercício da liberdade e da responsabilidade públicas, inerente à democracia constitucional, implica em assumir custos e riscos, requerendo dos indivíduos um grau pouco comum de segurança psicológica que lhes permita conviver com a incerteza. O recurso normal para reduzir a incerteza e os riscos é provido pela informação factual e pelos saberes contextual e estrutural, o que envolve custos imediatos e a médio e longo prazo, que os indivíduos que pertencem aos segmentos mais baixos da sociedade não podem assumir.
Assim, para a maioria das pessoas, pouco capazes de conviver com a incerteza e suportar os riscos inerentes à liberdade pessoal e pública, a ideologia totalitária proporciona uma explicação omnicompreensiva da realidade e da história, que lhes restaura magicamente e a baixo custo a segurança; e o partido ou o movimento totalitário, que a interpreta nos diferentes casos, provê uma autoridade externa onipotente que retira daquelas pessoas o inquietante peso da liberdade de decidir.
Diante desse desigual e insólito desafio as democracias constitucionais mais avançadas e sólidas armam-se com recursos previstos na lei constitucional, o mais importante dos quais é a proscrição de partidos políticos que promovem, estimulam ou apóiam processos conspiratoriais ou qualquer outra forma de violência política: a cláusula de constitucionalidade dos partidos, contida no art. 21,(2) da Constituição da República Federal da Alemanha e eficazmente aplicada pelo seu Tribunal Constitucional, é o exemplo de maior proeminência:
“Os partidos que por suas finalidades ou pelas atitudes de seus partidários tentam desvirtuar ou eliminar o regime fundamental de democracia e de liberdade, ou pôr em perigo a existência da República Federal, são inconstitucionais”.

É verdade que a Constituição Brasileira contém uma cláusula semelhante: o artigo 17 estatui, em seu caput, como requisito para a existência dos partidos políticos, a fidelidade ao “regime democrático”, ao “pluripartidarismo” e aos “direitos fundamentais da pessoa humana”, estabelecendo, no inciso II, “a proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes”; e, enfim, no § 4º, veda “a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar”. Resta aplicá-lo.
Se, entretanto, um supremo esforço de esclarecimento não conseguir persuadir o eleitor comum que a democracia constitucional, conquistada a duras penas mas perversamente disputada, deve ser preservada, quaisquer que sejam as suas vicissitudes – então, a manipulação populista de justos descontentamentos e o ilusionismo messiânico pavimentarão o caminho auto-destrutivo que, exaurido em Cuba, está sendo trilhado no continente sul-americano pela Venezuela, pelo Equador, pela Bolívia, pela Argentina e pelo Brasil.
Não tenhamos ilusão. Eleições universais geram legitimidade democrática, mas não legitimidade constitucional. Como profetizou com acerto Alexis de Tocqueville, na ausência de sólidas e vigorosas instituições de representação política e de separação dos poderes constitucionais, incluindo a separação entre Chefia de Estado e a Chefia do Governo, bem como um Tribunal Constitucional, eleições plebiscitárias provêm a ante-sala do bonapartismo e da democracia totalitária.
Enfim, eleições e reeleições plebiscitárias consecutivas provêm um claro e importante contributo a governos populistas totalitários empenhados em programas de redistribuição direta e ostensiva da renda nacional em benefício das populações pobres ou na linha da miséria. Aparentemente empenhados na eliminação da pobreza, esses governos têm clara consciência de que sua perpetuação no poder é alimentada pela pobreza e dela necessitam, do que decorre que, na realidade, empenham-se não em eliminar a miséria, mas em mantê-la estável e dependente, aguardando-a nas urnas. Sob tais condições é altamente improvável que eleições fortaleçam a democracia constitucional; ao contrário, há alta probabilidade de que contribuam poderosamente para destruí-la.
A experiência histórica registra importantes casos em que o totalitarismo ocupou o Estado pela via eleitoral, entre os quais o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, nenhum dos dois foi debelado pela força da sociedade que aprisionara; ao contrário, ambos foram eliminados pela derrota militar infligida de fora, por nações invasoras.

* Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador Associado no Centre d’Études et de Recherches Internationales, Fondation Nationale des Sciences Politiques, Paris,em 1985 e 1986. Guest Scholar em 1998,e Visiting Fellow, em 2002, do Helen Kellogg Institute for International Studies, Notre Dame University, Indiana, US.
 

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  • Carlos I.S. Azambuja
  • 28 Setembro 2014

"A matriz leninista serviu a todos os `pequenos irmãos´. O modelo foi aplicado de forma diferente de acordo com as diferentes situações culturais. O vetor da repressão na Rússia foi a polícia política, a CHEKA-OGPU-GPU-NKVD-KGB, ao passo que na China foi o Exército de Libertação Popular e, no Camboja, os adolescentes, vindos dos campos a quem foram dados fuzis (...) O objetivo por toda a parte era reprimir os `inimigos do povo´" (Jean-Louis Margolin, O Livro Negro do Comunismo).

*Carlos I. S. Azambuja


O fato de que um político seja estúpido e seu governo incompetente não lhe tira a responsabilidade quanto ao seu caráter criminoso.

Além de A Era dos Extremos, outra obra característica das reações nostálgicas à queda do comunismo, foi a de J. Arch Getty e Oleg Naumov, The Road to Terror, 1999, que trata dos expurgos preparados dentro do Partido Bolchevique em 1932 e concluídos, por meio do Grande Terror, em 1939. A documentação utilizada constitui-se, em sua maior parte, em notas estenográficas das sessões ultra-secretas do Comitê Central do PCUS, nas quais foram acusados Ienukidzé, Rykov e Bukarin, para citar apenas as figuras principais. As sessões de 4 de dezembro de 1936 e de 23 de fevereiro de 1937, que concernem a Bukarin e a Rykov, são verdadeiras sessões de tortura psicológica e de linchamento político.

Molotov, 50 anos mais tarde, assim se referiu à ausência de provas contra Bukarin e Rykov: "De que provas suplementares da culpa deles vocês precisam, quando sabíamos que eram culpados, que eram inimigos?" E acrescenta: "É claro, as exigências (de repressão) vinham de Stalin. Claro, as coisas foram longe demais, mas penso que tudo era permitido em função de uma única coisa: manter o Poder de maneira sólida".
Anotem: tudo era permitido...em função de manter o Poder...

A carta secreta do Partido Bolchevique - que somente em 1952 passou a ser denominado Partido Comunista da União Soviética - de 29 de julho de 1936, que dá partida ao Grande Terror, assinala um ponto fundamental: `A marca indiscutível de cada bolchevique na situação atual deve ser sua capacidade de reconhecer e de identificar os inimigos do partido, qualquer que seja a maneira pela qual eles consigam esconder sua natureza´.

Em The Road to Terror um dos autores, Arch Getty (professor de História da Rússia moderna na Universidade de Califórnia, Riverside), fez a revisão do revisionismo, abandonando suas afirmações de 1985, segundo as quais o Grande Terror fizera apenas `alguns milhares de mortos´, e volta à realidade: 690 mil assassinatos em 14 meses, de 1937 a 1938, o que é muito diferente! Diferente porque o número de vítimas é um dos elementos importantes da apreciação histórica. Quando se escreve que o Grande Terror fez alguns milhares de mortos e não 690 mil fuzilados, a interpretação dos fatos é muito diferente.

Contrariamente ao que afirma Getty, o expurgo não foi um fenômeno misterioso pelo qual um grupo que se apoderou do Poder seria condenado a se suicidar. Os documentos mostram, contrariamente, que Stalin e seus acólitos quiseram com o terror - o Grande Terror, quando conhecido em toda a sua extensão - eliminar, em primeiro lugar, os concorrentes potenciais e também os membros do aparelho de Estado ligados em demasia às necessidades do governo e não o suficiente à ideologia e ao projeto utópico e, por fim, as pessoas `sensíveis demais´, que não se demonstraram cruéis e impiedosas o bastante e manifestaram, aqui e ali, alguns resquícios de sentimentos humanos.

O outro objetivo era assegurar a obediência absoluta da parte sobrevivente do partido e da sociedade. Para Stalin, toda e qualquer crítica era sinal de oposição, toda oposição implicava uma conspiração, e a conspiração era uma traição que merecia a morte. Essa foi a dinâmica do regime totalitário.

Getty insiste no fato de que muitos daqueles bolcheviques, ex-conspiradores, tinham um espírito formado no que os russos chamam de konspiratzia - o trabalho conspirador - baseado na fidelidade e na confiança, com seus corolários, a suspeita e a traição, o que nos faz remontar o fenômeno ao inventor e ao chefe dessa konspiratzia: Lenin. Essa prática conspirativa desenvolvia de forma inconteste uma paranóia levada a seu paroxismo com Stalin, mas também revelava um cálculo racional no líder de um partido-Estado ideocrático, cujos contornos ainda não foram de todo avaliados.

Mesmo não se considerando sua dimensão criminosa e contrariamente à vulgata trotskista que o apresenta como um apparatchik medíocre, Stalin foi o homem de poder mais eficaz do Século XX. Durante mais de 35 anos ele levou à frente a administração dos bolcheviques com mão de mestre. Ele foi o mais capaz de ajustar seus meios a seus fins políticos. Tudo agora passa a demonstrar que por trás da lenda `vermelha´ do `pequeno pai dos povos´ e da lenda `negra´ de burocrata festivo, bêbado e cinéfilo, escondia-se um homem de vontade inflexível, de argúcia política excepcional, cujo profissionalismo foi, e muito, superior ao do diletante Hitler.

Se Getty afirma acertadamente que o Grande Terror foi `uma das maiores tragédias humanas e pessoais dos tempos modernos´, ele se esquece de precisar que ela tocou as elites do poder apenas marginalmente, e nem uma palavra sequer foi dita acerca dos milhões de vítimas das camadas populares.
Assiste-se a uma curiosa defesa da memória dos privilegiados que asseguraram suas promoções fulgurantes com a crueldade da repressão praticada. Zinoviev, Bukharin, Iagoda, Iejov, Tukhatchevski e outros, que também caíram na máquina de moer stalinista eram, desde 1918, eminentes carrascos dos povos da URSS, assim como Kruschev que, 20 anos depois, tentaria se inocentar acusando o homem – Stalin - ao qual obedecera de maneira servil.

Getty fala longamente sobre a crítica e a autocrítica, apresentada como um ritual dos militantes do partido. Mas ele nada diz acerca da natureza desse ritual, que facilitava o condicionamento psíquico, a submissão e a fidelidade. A crítica implica seu autor no assassinato - político, simbólico ou psíquico -. A autocrítica é o sinal da aceitação, por seu autor, de seu próprio assassinato pelos demais membros do partido, pois no sistema leninista e stalinista as palavras e os rituais não são apenas simbólicos, mas induzem necessariamente os atos. Nesse sistema, as palavras são balas que matam. Em uma carta datada de dezembro de 1935, um certo Assev, quando acusado, preferiu suicidar-se: `Por que vocês me destruíram? (...) Não posso viver fora do partido. Para mim, o partido é tão indispensável quanto o ar´, escreveu ele. Ser excluído do partido significava ser atirado nas trevas; perder o trabalho, alojamento, alimentação, para si e para a família, antes de perder a liberdade e - eventualmente - a vida.
Annie Kriegel, no Grandes Processos nos Sistemas Comunistas (Paris, 1972) já havia interpretado o sistema de expurgos e do dispositivo crítica/autocrítica como uma `pedagogia infernal´. E em seu Catecismo do Revolucionário (que apareceu na Rússia em meados do Século XIX) Netchaiev escreveu: `O revolucionário é um homem perdido. Existe apenas a Causa; fora dela não há nada´.

O mais surpreendente é a observação de Getty em seu livro, explicando porque não deu resposta à pergunta: `Quais as causas do terror?´, sob o pretexto de que se recusa a trazer `respostas fáceis a uma pergunta extremamente complexa´. No entanto, ele se atreve a esboçar uma resposta tímida e convencional: o atraso do Estado russo e o medo dos comunistas em face da sociedade... De fato, os comunistas tinham apenas um medo: o medo de perder o poder. Na verdade, a cultura bolchevique inicial feita de paixão revolucionária e cientificismo - reforçada pela prática dos anos 1917-1922 -, o papel fundamental de Lenin - do qual Stalin era, na época, um dos principais auxiliares -, o projeto utópico inaugurado no comunismo de guerra e reposto como ordem do dia a partir de 1928. Foi esse conjunto do projeto bolchevique que, por oposição formal a toda idéia de autonomia das forças sociais, econômicas e intelectuais, implicou o terror como único meio de assegurar sua implementação.

Num artigo mais recente - em março de 2000 -, Getty se pronuncia, simultaneamente, acerca do Passado de uma Ilusão (livro de François Furet) e do Livro Negro do Comunismo, mantendo uma linguagem bem mais crua. Contradizendo a afirmação de Furet, segundo a qual o comunismo foi uma espécie de parêntesis no Século, não deixando qualquer herança nem nenhum aspecto positivo, ele levanta a tese do mal necessário: a existência do comunismo teria, em particular, `mudado o desenvolvimento social no Ocidente de maneira fundamental (...), pois tornou difícil a vida para o Poder estabelecido no Ocidente, e é duvidoso que as reformas tivessem acontecido do lado ocidental se a URSS não tivesse existido. Enfim, se a democracia e a economia de mercado triunfam, deve-se agradecer ao sistema comunista´. É a mesma argumentação utilizada por Eric Hobsbawn na Era dos Extremos...
Getty não pára por aí. Ele reivindica as aquisições do socialismo na URSS: a alfabetização generalizada e um dos melhores sistemas de educação tecnológica, o primeiro homem no espaço e, finalmente, a educação e a saúde gratuitas e a previdência para a velhice. Ora, pesquisas recentes mostram que a alfabetização já estava bastante avançada em 1917; que os progressos tecnológicos soviéticos - por exemplo, na área nuclear - deveram-se de fato ao saque das tecnologias ocidentais; e que o sistema foi incapaz de se adaptar à revolução da Informática. Enfim, a derrocada da URSS revelou a situação catastrófica dos serviços de saúde e do regime de aposentadorias num sistema corroído pela ineficácia e pela corrupção. Vê-se, portanto, a que ponto alguns meios acadêmicos permanecem submissos à propaganda comunista mais banal - de um Estado que não existe mais -, perpetuando uma cegueira que compromete a abordagem científica.

Mas, tem mais: referindo-se à fome ucraniana de 1932-1933, Getty escreveu que uma ampla maioria dos pesquisadores que trabalham com os novos arquivos soviéticos, pensa que essa terrível fome (...) foi o resultado da incompetência e da rigidez de Stalin, e não que se tratou de um plano genocida. Getty se omitiu em citar os nomes dessa ampla maioria de pesquisadores que consideraram incompetência e rigidez de Stalin a fome que matou seis milhões de pessoas. E foi mais longe, estimando que mais da metade dos 100 milhões de mortos pelo comunismo - número que ele não contesta em momento algum - foi o resultado da `estupidez e da incompetência´ dos regimes comunistas. Ora, o fato de que um político seja estúpido e seu governo incompetente não lhe tira a responsabilidade quanto ao seu caráter criminoso!

Getty conclui sua argumentação afirmando que uma enorme quantidade de vítimas atribuídas aos regimes comunistas refere-se à categoria chamada de `sobremortalidade´, óbitos prematuros que ultrapassam a taxa normal de mortalidade na população. E acrescenta: "Os que foram executados, exilados na Sibéria ou conduzidos à força aos campos do Gulag, nos quais a alimentação e as condições de vida eram medíocres, poderiam entrar nessa categoria". E, fazendo uma evidente alusão ao extermínio de judeus pelos nazistas, ele conclui que`a sobremortalidade não é idêntica à das mortes programadas´. Nesse raciocínio ele esqueceu e passou por cima das cotas de fuzilados, das populações inteiras deportadas, das requisições de alimentos que causaram mortes em massa. Nada disso é sobremortalidade, termo que remete a um eufemismo típico do negacionismo.

Concluindo, recorde-se que J. Arch Getty é um dos professores universitários norte-americanos mais em evidência em matéria de História da URSS, responsável pela publicação dos arquivos do comunismo na Universidade de Yale!
* Historiador
 

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  • Ives Gandra da Silva Martins
  • 26 Setembro 2014

"Os saqueadores", por Ives Gandra Martins
O Estado de São Paulo

Ayn Rand (1905-1982) foi uma filósofa, socióloga e romancista com aguda percepção das mudanças que ocorreram na comunidade internacional, principalmente à luz do choque entre o sucesso do empreendedorismo privado e o fracasso da estatização populista dos meios de produção, na maior parte dos países de ideologia marxista. Seu romance A Revolta de Atlas, escrito há mais de 50 anos, talvez seja o que melhor retrata a mediocridade da corrente de assunção do poder por despreparados cidadãos que têm um projeto para conquistá-lo e mantê-lo com slogans contra as elites em "defesa do povo", o que implica a destruição sistemática, por incompetência e inveja, dos que têm condições de promover o desenvolvimento.

No romance, os medíocres ameaçam o governo dos Estados Unidos e começam a controlar e assumir os empreendimentos que davam certo, sob a alegação de que os empreendedores queriam o lucro, e não o bem da sociedade. Tal política tem como resultado a gradual perda de competitividade dos americanos, o estouro das finanças, a eliminação das iniciativas bem-sucedidas e a fuga dos grandes investidores e empresários, que são perseguidos, grande parte deles desistindo de administrar suas empresas, com o que os governantes se tornam ditadores e o povo passa a ter os serviços públicos e privados deteriorados.

Não contarei mais do romance, pois o símbolo mitológico de Atlas, que sustenta o globo, é lembrado na revolta dos verdadeiros geradores do progresso da Nação.

O que de semelhante vejo na mediocridade reinante no governo federal do Brasil, loteado em 39 ministérios e 22 mil amigos do rei não concursados, vivendo regiamente à custa da Nação, sob o comando da presidente da República, é a destruição sistemática que, nos últimos anos, ocorreu com a indústria brasileira, abalada em seu poder de competitividade por um Estado mastodôntico, que sufoca a Nação com alta inflação, elevada carga tributária, saldo desprezível na balança comercial, superávit primário ridículo e maquiado, rebaixamento do nível de investimento exterior, desvio em aplicações de capitais que deixam de ser colocados no País para serem destinados a outras nações emergentes, perda de qualidade no ensino universitário e na assistência social.

Por outro lado, os programas populistas, que custam muito pouco, mas não incentivam a luta por crescimento individual, como o Bolsa Família (em torno de 3% do Orçamento federal), mascaram o fracasso da política econômica.
O próprio desemprego, alardeado como grande conquista - leia-se subemprego -, começa a ruir por força da queda ano após ano do produto interno bruto (PIB), que cresce pouco e cada vez menos, e muito menos que o de todos os países emergentes de expressão.

É que o projeto populista de governo, que o leva a manter um falido Mercosul com parceiros arruinados, como Venezuela e Argentina, sobre sustentar Cuba e Bolívia, enviando recursos que seriam mais bem aplicados no Brasil, fechou portas para o País celebrar acordos bilaterais com outras nações. Prisioneiro que é do Mercosul, são poucos os acordos que mantemos. Tal modelo se esgotou e, desorientados, os partidários de um novo mandato não sabem o que dizem e o que devem fazer.

Basta dizer que o "ex-ministro da Fazenda em exercício" declarou, neste mês de eleição, que em 2015 continuará com a mesma política econômica, que se revelou, no curso destes últimos anos, um dos mais fantástico fracassos da História brasileira. Parece que caminhamos para uma estrada semelhante à trilhada por Argentina e Venezuela.

No romance de Ayn Rand, quando os verdadeiros empreendedores, que tinham feito a nação crescer e a viam definhando, decidiram reagir, denominaram os detentores do poder, nos Estados Unidos imaginário da romancista, de "os saqueadores". Estes, anulando as conquistas e os avanços dos que fizeram a nação crescer para se enquistarem no poder, por força da corrupção endêmica, da incompetência, de preconceitos e do populismo, levaram o país à ruína.
À evidência, não estou alcunhando os 39 ministérios e os 22 mil não concursados de integrantes de um grupo de "saqueadores", como o fez Ayn Rand. Há, todavia, na máquina burocrática brasileira - com excesso de regulamentação inibidora de investimentos, assim como de desestímulo ao empreendedorismo, e escassez de vontade em simplificar as normas que permitem o empreendedorismo, apesar do esforço heroico e isolado de Guilherme Afif Domingos, uma gota no oceano -, algo de muito semelhante entre o descrito em seu romance há mais de 50 anos e o Brasil atual. Basta olhar o "mar de lama" da corrupção numa única empresa (Petrobrás).

O que mais impressiona, todavia, é que, detectada a ampla corrupção na empresa - são bilhões e bilhões de dólares -, o governo tudo faça para congelar a CPI e não desventrar para o público as entranhas dos mecanismos deletérios e corrosivos que permitiram tanto desvio de dinheiro público e privado. O simples fato de não querer apurar a fundo, de desviar a atenção desse terrível assalto à maior empresa pública privada, procurando dar-lhe diminuta atenção, como se o governo nada tivesse de responsabilidade, torna suspeita a gestão, pelo menos na denominada culpa in vigilando.

Precisamos apenas saber se o eleitor brasileiro está consciente de que, se não houver mudança de rumos, o Brasil de país do futuro, como escreveu Stefan Zweig, se tornará, cada vez mais, o país do passado, vendo o desfile das outras nações passando-lhe à frente, por se terem adaptado às mudanças de uma sociedade cada vez mais complexa e competitiva, em que apenas os países que se prepararem terão chances. 

* Advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra.

 

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  • Maria Lucia Victor Barbosa
  • 26 Setembro 2014

 

No meu primeiro livro, O Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto – A Ética da Malandragem, editado por Jorge Zahar, escrevi:

“É necessário que o candidato em seus discursos aborde problemas cotidianos e use uma retórica exaltada, eivada de ideologia cabocla de justiça social, pois é necessário ressaltar a diferença entre ricos e pobres e clamar por vingança contra os que no momento ou no passado não conseguiram satisfazer as aspirações populares”.

Focando na figura de Lula da Silva compreende-se que foi graças a tais artimanhas que ele, na quarta tentativa, chegou lá. De um lado agradou a maioria composta pela pobreza. De outro, convenceu aos que depois chamou de “zelite”, que não ia mexer no mercado ou desagradar banqueiros, empreiteiros, grandes empresários. Aquela linguagem revolucionária de esquerda era só de brincadeirinha.

No poder Lula deu migalhas aos pobres e agiu como “coronel”, daqueles do “voto de cabresto”. Aos ricos proporcionou lucros inimagináveis e eles, agradecidos, sustentaram suas campanhas e a de seus companheiros. A classe média, onde entre outras categorias se inserem artistas, intelectuais, universitários, profissionais liberais que costumam ostentar ser de esquerda, Lula provocou aquele embasbacar pueril que faz a alegria dos demagogos.

Lula fez da presidência da República seu palanque de politicagem no qual achincalhou a língua pátria e se deliciou ao utilizar pesada retórica onde não faltaram palavrões, impropriedades e estultices. Louvado pela obra de ficção descrita pelo marketing como o Brasil transformado em paraíso reinou absoluto sem nenhuma oposição, quer partidária, quer institucional.

O saldo do seu longo período é a herança maldita que se sente no caos econômico, na corrupção presente em escândalos que permearam seus oito anos de governo, mais os quase quatro de Rousseff em que ele foi o presidente de fato.

O último e mais estrepitoso escândalo está sendo escancarado pelo detento, Paulo Roberto da Costa, ex-diretor da Petrobrás, o companheiro Paulinho. Na tentativa de diminuir sua pena, Paulo Roberto está mostrando que se roubou não em milhões, mas em bilhões e dá nome aos poderosos que se locupletaram, sobretudo, aos companheiros do PT e aos amigões do PMDB e do PP. Lula e Rousseff durante anos não viram nada, não souberam de nada e se alguma coisa houve a culpa foi dos Estados Unidos, de Fernando Henrique e da crise internacional.

Mantém ainda Lula o mesmo poder? Seu primeiro poste, a criatura Rousseff, é um retumbante fracasso e tem conduzido o Brasil à bancarrota. Seu segundo poste, Fernando Haddad, eleito por Lula prefeito de São Paulo, tem uma das piores avaliações entre os prefeitos de todo o país. O terceiro poste, o ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, amarga o último lugar na campanha ao governo de São Paulo.

O teste das urnas, que inclui outros candidatos do PT Brasil afora mostrará se Lula continua poderoso ou não. Para alegria dos petistas pesquisas do momento estão dando esperança ao PT, que estava sentindo medo. O chamado escândalo do pretrolão que fez empalidecer o mensalão não sensibilizou o povo. Inflação acelerada junto com inadimplência, indústria afundando, piora no emprego, o Brasil entrando em recessão, nada disto é notado pelos eleitores que continuam otimistas.

Se os brasileiros não ligam mais para seu bolso, que como dizem é a parte mais sensível do corpo, seria difícil imaginar a maioria assistindo ou entendendo a recente entrevista concedida por Rousseff ao Bom Dia Brasil. Naquela ocasião a governanta esbanjou prepotência, cinismo e total ignorância de dados do seu próprio governo e do panorama internacional.

A última da governanta se deu na ONU, dia 23, antes de seu discurso de autoelogio feito na abertura do evento. Não se sabe se por inspiração de Lula da Silva, que sempre defendeu a pior escória mundial ou se por instrução do chanceler de fato, Marco Aurélio Garcia, Rousseff se posicionou contra os Estados Unidos e aliados, e a favor do Estado Islâmico. Uma aberração diplomática capaz de matar de vergonha os brasileiros que têm informações e senso das medidas.

De fato, com bem disse uma autoridade israelense, somos um anão diplomático. Afinal, apoiamos terroristas fanáticos cujas ações contra os que consideram infiéis são a degola, a crucificação, o enforcamento, o estrupo, a flagelação e o apedrejamento de mulheres. A governanta certamente ignora que pelas leis do IE é uma infiel e, que por isso, merece perder literalmente a cabeça ou no mínimo ser obrigada a usar burca.

Diante de tantos descalabros e ao ver o poste Rousseff subindo nas pesquisas, a pergunta a se fazer não é mais que país é esse, mas que povo é esse, que não se envergonha da incompetência e da corrupção internas e da repulsiva política externa. A resposta estará contida no teste de poder de Lula quando as urnas mostrarem os resultados.

* Socióloga.

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  • Dora Kramer
  • 26 Setembro 2014

Sejamos claros e francos: os dois principais oponentes da presidente que pleiteia a reeleição, Aécio Neves e Marina Silva, nos últimos quatro anos não se notabilizaram pelo exercício do antagonismo ao governo de maneira a que façam jus à representação do oposicionismo como atividade política constante.

Justiça se faça, nem eles nem ninguém em especial, porque a oposição nunca se organizou desde que o PT assumiu o poder. E por se organizar entenda-se ter planos táticos e estratégicos de atuação não apenas em épocas de eleição, mas principalmente entre um período eleitoral e outro.

Aécio e Marina se dispuseram a enfrentar um governo politicamente atuante, por nascido de oposição belicosa e operante, sem contar com nenhum treino. Tal carência lhes fará falta em caso de vitória, pois vão encarar um PT violento como oposição, mas pode servir de lição para ambos ou para quem dos dois for derrotado.
Quando chegou à Presidência da República, o PT já tinha mais de 20 anos de construção de uma identidade junto à população. Forte e arraigada o suficiente para poder contrariar diversos de seus compromissos - o da ética, notadamente - sem perder por completo seu patrimônio político.

O PSDB chegou ao poder depressa. Nasceu em 1988 e em 1994 já estava no Palácio do Planalto. Em 2002, perdeu a eleição e nunca mais se achou. Disputou todas as presidenciais, mas não encontrou o caminho para construir uma ponte que pudesse ligar o partido à sociedade entre uma eleição e outra.

Aconteceu com todos os candidatos, mas fiquemos com Aécio Neves, que é o atual. Passou oito anos como governador desenvolvendo um "bom relacionamento com o governo federal". Em 2008, na eleição para a prefeitura de Belo Horizonte, aliou-se ao atual candidato do PT ao governo de Minas Gerais, Fernando Pimentel, para eleger Marcio Lacerda, sob o argumento de que era preciso avançar para além da polarização entre PT e PSDB e criar um "novo ambiente" na política.

Hoje o mineiro está em sua maioria optando por Pimentel em prejuízo do tucano Pimenta da Veiga. Tem culpa? Não foi o eleitor quem criou a confusão. Caminhemos. Eleito senador, Aécio era visto como o líder da oposição, mas não foi assim que se colocou perante a sociedade. Optou por uma atuação discreta, dedicou-se às articulações de bastidores e foi até certo ponto bem sucedido.

Quando entrou em cena o imponderável, a morte de Eduardo Campos, não tinha consigo a fidelidade do público, pois não fora a ele que se dirigira nos últimos anos. Seu alvo, os políticos, com facilidade se transfere para onde os ventos ventam. No Rio, o movimento "Aezão" virou "Marinão" ao sabor das pesquisas que indicavam a conveniência de os correligionários do governador Luiz Fernando Pezão a embarcarem em outra canoa.

E assim chegamos a Marina Silva. Depois da recusa da candidata a presidente em 2010 de apoiar Dilma ou Serra no segundo turno, nunca mais se ouviu falar dela até 2013, quando da tentativa de criar seu partido, Rede Sustentabilidade.

Oriunda do PT, discípula reverente assumida de Lula, crítica de Dilma como se esta não fosse invenção daquele, Marina não fez política da última eleição para cá. Apareceu para concorrer. A última coisa que se pode dizer é que seja uma oposicionista praticante. No exercício do mandato de senadora ela jamais se referiu aos "assaltos" constatados no processo do mensalão nas estatais como agora faz no caso da Petrobrás.

A ex-senadora não é uma oposicionista de fato. Assim como Aécio. Se perderem, nada impede os dois de virem a sê-los de direito. A depender dos planos futuros.

*Jornalista
 

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  • Fernando Schuler
  • 24 Setembro 2014

Jonatan tem 20 anos recém completados, é negro e morador da Baixada Fluminense. Estuda economia, em uma instituição de ponta, no centro do Rio de Janeiro. No verão passado fez um intercâmbio em Oxford, para melhorar o inglês. Leciona matemática para uma turma de ensino médio, na Tijuca, e acaba de voltar de uma gira pelo Cone Sul. Jonatan quer conhecer o mundo, enquanto a agenda permite. Sabe que logo vai entrar de cabeça no mundo executivo, e a vida vai ficar corrida.

Quem lida com educação superior, no Brasil, se acostumou, nos últimos anos, a ouvir histórias como as de Jonatan. Histórias dos bolsistas do ProUni, um programa criado pelo Governo federal em 2004. O programa já distribuiu mais de dois milhões de bolsas em instituições privadas de ensino superior, Brasil afora. Não deixa de ser incrível, acontecer uma coisa dessas no Brasil. Um programa de parceria público-privada, custo baixo, burocracia zero, que dá um resultado tão espetacular em tão pouco tempo. E logo no Brasil, um pais que não costuma ser especialmente inovador em políticas públicas.

O programa é uma obra do bom senso: houve uma mutação na sociedade brasileira, nos últimos vinte anos. O País universalizou o acesso ao ensino fundamental, ainda nos anos 90. Na primeira década do século, 40 milhões de pessoas passaram a integrar o que Marcelo Neri, economista e atual presidente do IPEA, chamou de “nova classe média”. Havia necessidade de ampliar, e rápido, o acesso dos estudantes mais pobres ao ensino superior. Por que não permitir, então, que as universidades privadas convertessem parte de seu imposto ou quota de filantropia em bolsas aos estudantes de menor renda?

Um caso de bom senso liberal. O ProUni criou, no Brasil, o vale-educação. Uma antiga ideia formulada por Milton Friedman nos anos 50. Friedman, posteriormente, transformou o tema em uma cruzada pessoal. Nos anos 90, criou a sua Fundação para a livre escolha educacional. No Brasil, por óbvio, a tese de Friedman jamais frequentou o debate público. A ideia sempre foi uma excentricidade dos círculos liberais. O mantra nacional, repetido ad nauseam por políticos, sindicalistas e nossos “especialistas em educação”, sempre foi a “defesa da escola pública”, eufemismo que costumamos usar quando nos referimos à educação estatal.

O ponto é que, em seus 10 anos de vigência, o ProUni se tornou um sucesso. O custo médio por aluno, no sistema, é seis vezes menor do que o de um estudante da rede federal de universidades. Os alunos escolhem onde estudar, a integração entre bolsistas e não bolsistas é boa, o desempenho acadêmico está ok, tudo certinho. O Governo do PT, talvez sem querer, tornou o Brasil um dos maiores cases globais de comprovação da tese de Friedman.

A pergunta a ser feita agora, é: se o sistema da bolsa ou do vale-educação funcionou tão bem no ensino superior, porque ele não é também utilizado na educação básica? Em especial, porque ele não é utilizado no ensino médio? A pergunta ganha relevância quando observamos os últimos resultados disponíveis do ENEM, o exame nacional do ensino médio. Entre os 10% de escolas melhor pontuadas do País (1124 escolas), 93% pertencem à rede privada de ensino. Na outra ponta, entre os 10% de escolas pior colocadas, nada menos do que 97,7% são colégios pertencentes às redes estaduais de ensino, que respondem por 85% das matriculas de ensino médio brasileiro. Os dados nos permitem concluir que não há propriamente uma crise em nosso ensino médio, ou no ensino básico, como um todo. Há, isto sim, uma crise estrutural no setor público educacional, que se concentra, em particular, nas redes estaduais de educação.

Diante desses dados, os defensores do modelo de ensino estatal costumam mostrar certo incômodo. Sustentam que não há, na verdade, grande diferença de qualidade entre as escolas públicas e privadas. O desempenho diferenciado vai por conta do padrão de renda da clientela de cada rede. Alunos das escolas estatais tem um desempenho pior do que seus colegas, do setor privado, por que são pobres. Na sua visão, não é a má gestão escolar, a burocracia, a falta de laboratórios, o abstenseismo dos professores, que determina os resultados pífios alcançados. O problema se encontra nos próprios alunos. Sua herança familiar, a falta de boas condições para estudar em casa, somado ao pouco comprometimento dos pais.

Jonatan discorda deste argumento. Ele acha que, estudando em uma escola melhor, com rigor didático, horário pra começar e terminar a aula, ano letivo cumprido à risca, laboratórios atualizados e coisas do gênero, os alunos iriam bem, mesmo vindo de famílias mais pobres. Dizem que é só observar os resultados dos bolsistas do ProUni, em regra iguais ou superiores a de seus colegas não bolsistas, para saber disso.

Nossos defensores do modelo estatal reconhecem que isto até pode ser verdade, mas que não se deve perder, jamais, a esperança na escola pública. Pedem um pouco de paciência. Dizem que acabou de ser aprovado o novo plano nacional de educação (PNE), no Congresso Nacional, e que, no máximo em dez anos, as coisas vão melhorar. Lembram que vai ter o recurso do Pré-sal, que em 2020, o orçamento nacional para educação vai ser 100% maior do que este ano. Garantem que a piora dos resultados do último IDESP não vai se repetir.

Jonatan escuta o argumento, mas na sua cabeça só aparece a turma mais nova lá da Baixada. Lembra que tem muita gente entrando no colégio na virada do ano, e ele acha que o pessoal poderia escolher uma escola privada bacana, com nota boa no ENEM, se o Governo simplesmente estendesse os mesmos benefícios do ProUni para as escolas de ensino médio. O próprio estado poderia ir disponibilizando bolsas, do próprio orçamento. Acha que o pessoal iria gostar de escolher onde estudar. Seria legal comparar a qualidade de cada escola, optar por esta e não aquela, como fazem as famílias que tem mais dinheiro.

Nossos defensores da escola pública explicam que Jonatan está equivocado. Não é o direito de escolha que define a qualidade do ensino. Esse negócio de escolher é uma espécie de luxo, que pode, inclusive, favorecer uma escola com esta ou aquela orientação religiosa. Lembram que o estado é laico, que o importante é ter escola gratuita, igual pra todo mundo.
Jonatan observa aquelas pessoas falando, e tenta imaginar em que colégio eles matriculam os filhos. Insiste com a ideia de que, se eles podem escolher a escola, protestante ou católica, dessas com nome de santo - e não precisa nem ser o São Bento - ou dessas bem empresariais, com uma sigla no nome, a turma “de baixo” também deve ter esse direito. Pra ele é isso: uma questão de direito. Não vê como luxo, apenas igualdade.

Os especialistas, já sem muita paciência, explicam que, no mundo inteiro, foi a escola pública que garantiu a igualdade na educação, e que esse negócio de escolher, dar bolsa, esconde no fundo uma visão privatizante do ensino. Jonatan reconhece que sabe menos sobre o mundo, do que os especialistas. O máximo que pode dizer é que frequentou muita escola pública, como aluno, depois dando palestras, aula, e até dormindo por lá, quando não tinha jeito. No mundo que ele conhecia, a educação era uma espécie de África do Sul, antes do Mandela. Na escola pública, só os mais pobres, e praticamente todos os negros, como ele. Na escola privada, o inverso. Talvez fosse apenas o caso do Rio, pensou, e resolveu ficar quieto.

À noite, em casa, Jonatan teve um estalo. Pensou que uma teoria pode ser feita de boas palavras, e ainda assim produzir péssimos resultados. Ele não tinha uma teoria sobre educação, mas intuía que a educação significava algo mais do que receber informação e um certo treinamento. Significava participar de um determinado mundo social, e que qualquer política de igualdade, neste terreno, precisa incentivar que alunos mais ricos e mais pobres possam estudar nas mesmas escolas. E com isso conviver, criar laços, romper preconceitos e gerar ideias em conjunto. Imaginar que isto possa acontecer no âmbito da rede estatal de ensino, no Brasil, é uma ilusão típica de quem encara a educação à meia distância, como um “campo de investigação”, ou, ainda pior, de atuação política, e não como uma questão pessoal que define o fracasso ou o sucesso, aqui e agora.

É disso que trata o historiado de Harvard, Niall Ferguson, em seu último livro, A Grande Degeneração. Ele observa que os grandes sistemas estatais de ensino podem ter sido úteis para a alfabetização em massa, ao longo do século XX. Mas passaram a falhar quando migramos da era industrial para a economia do conhecimento. O foco agora é a qualidade, diversidade, gestão eficiente de recursos, velocidade na absorção de novas tecnologias, reconhecimento permanente do mérito. Tudo o que o grande estado empresário da educação tem sido incapaz de fazer, e por isso tem se tornado mais um obstáculo do que um caminho para a mobilidade social e a promoção da igualdade de oportunidades.
Não sei dizer se a tese de Ferguson funciona no mundo inteiro. Desconfio que ela não sirva, por exemplo, para os países nórdicos, relativamente homogêneos, nos quais a máquina pública apresenta, historicamente, bons desempenho. O certo é que, no caso brasileiro, a tese é perfeitamente válida. Nosso welfare state tropical é eficiente em muitos aspectos. Lidamos bem com programas de transferência de renda, por exemplo. Há, porém, um aspecto em que nosso estado social falhou redondamente: a prestação de serviços públicos. A Constituição de 1988 consagrou um modelo de gestão pública anacrônico. Sabe disso qualquer um que já tentou administrar uma repartição pública, com a Lei 8.666, estabilidade plena de emprego, centralização orçamentária, pressões partidárias e corporativas. Que o diga a ex-Secretária de educação do Rio de Janeiro, reconhecida especialista em gestão pública, Cláudia Costin, que tentou implantar reformas na rede escolar carioca. Recebeu, como resposta, 81 dias de greve dos professores.
De um modo geral, nossas escolas estatais produzem resultados muito fracos pelas mesmas razões que o fazem nossos hospitais, presídios e museus estatais. Sua crônica ineficiência é um subproduto da incapacidade gerencial do estado brasileiro. Nossos especialistas em educação também não gostam de ouvir estas coisas. Não gostam de lembrar, por exemplo, que todos os dias, mais de 12% dos professores da rede estadual de educação de São Paulo faltam à aula. E não fazem isto por que são malandros. Eles apenas utilizam, a seu favor, as regras do jogo (no caso, um generoso cardápio de “licenças” remuneradas). Faltam a 27 dos 200 dias letivos anuais. Nas grandes escolas privadas, em São Paulo, este percentual fica abaixo de 1%. Nossos especialistas em educação, diante desses números, darão de ombros. Dirão que o tema é complexo, que não dá pra analisar dessa maneira. E depois, tudo não irá melhorar com o próximo plano nacional de educação? Paciência. É disso, dizem, que precisamos.

De minha parte, penso que é preciso mudar este quadro. Uma mudança de modelo. Sistemas como o ProUni, e mesmo o FIES (nosso sistema de crédito estudantil subsidiado) oferecem uma senha para esta mudança. No plano global, há inovações importantes em curso. As Charters Schools, nos Estados Unidos, e as Academies, na Inglaterra, são modelos em que a comunidade, por meio de organização sem fins lucrativos, assume a gestão da escola, evidentemente sob um cuidadoso contrato de gestão e de metas com o governo. Algo que lembra o sistema das Organizações Sociais, das áreas de saúde e cultura, no Estado de São Paulo. O sistema de vale-educação já tem uma longa história. No Chile, ele foi implementado, parcialmente, e ajudou a fazer daquele País o primeiro colocado nos rankings de educação, na América Latina. Hoje o sistema é questionado pelos mesmos de sempre: os sindicatos de funcionários públicos e os apóstolos da ideologia do setor público.

Ao contrário do que muitos imaginam, um sistema de vale-educação, no ensino médio, é economicamente viável. Já em 2008, a pesquisadora Rina Nogueira, da FGV, apresentou um estudo mostrando que, com o mesmo valor aportado, em média, por aluno, no ensino estatal, seria possível comprar vagas em escolas privadas com resultados, no ENEM, significativamente superiores aos da média da rede estadual. O sistema teria, a par disso, uma enorme adesão por parte das famílias. Os especialistas em educação podem achar que as famílias estão erradas, que elas deveriam continuar acreditando nos colégios estatais, mas seria muito difícil convencê-las disso.
É evidente que a simples migração de alunos para o setor privado não iria resolver o problema. Há boas e más escolas, e ao governo caberia não apenas fixar os critérios de adesão, como os requisitos que as escolas devem atender para permanecer no programa. Um sistema desses termina por dar mais, e não menos poder para que o Estado de fato garanta a qualidade da educação. O estado costuma ser um bom agente regulador e garantidor de direitos, e do que de gestor direto de serviços.

Uma mudança estrutural como essa não supõe nenhum processo de privatização das escolas públicas. Seria mesmo ridículo imaginar um leilão de escolas públicas, como se faz com estradas e aeroportos. Um sistema de bolsas torna, isto sim, público um direito que hoje é “privado”, ou exclusivo, das famílias de maior renda: o direito de escolher onde estudar. E com base neste poder, pressionar as escolas a oferecer qualidade. Tudo que acontece, desde que o mundo é mundo, quando vigora a competição e a liberdade de contratar e descontratar, por parte dos usuários.
Perguntei, em algumas ocasiões, para secretários de educação, porque um sistema como o ProUni não é implantado no ensino médio. A resposta vem rápida. “Nem pensar, os sindicatos não permitiriam”. De fato, os sindicatos são os grandes opositores de inovações que oferecem poder de escolha aos pais e geram concorrência entre as escolas. Não parece difícil imaginar por que isto acontece. Quando ouço uma resposta dessas, me vem à lembrança a imagem do Governador Mário Covas, já combalido pela doença que o levaria, atravessando, em junho de 2000, sob pedras, laranjas e pontapés, a Praça da Republica, no centro de São Paulo. A praça era ocupada por um piquete de professores grevistas, e Covas insistia em entrar no edifício da secretaria de educação pela porta da frente. Seu gesto continha um elemento simbólico. Nenhuma corporação tem o direito de controlar o espaço público. Quem sabe estejamos precisando, hoje no Brasil, de líderes dispostos a fazer valer os direitos de todos, nem que par

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