(Publicado originalmente no Estadão)
Quando a realidade política e social se degrada e atinge o insuportável, o discurso apodrece, evidencia sinais de morte. As formas administrativas do Brasil agonizam. Contra o que dizem muitos colegas da universidade, seguidos por inúmeros jornalistas, discordo da tese segundo a qual as nossas instituições “funcionam normalmente”. A menos, claro, que o critério da normalidade seja o hábito de formar quadrilhas para o roubo das riquezas físicas ou espirituais de um povo.
Mesmo em situações de crise a instituição e os indivíduos que a manejam devem manter o decoro. Esse é um cálculo difícil. Um gramático inglês do século 16 exemplifica: se a duquesa vai à corte, ela não pode usar roupas mais brilhantes do que a rainha. Mas se a mesma pessoa usa vestimentas inferiores às de suas iguais, é indecorosa. No cálculo do aceitável em sociedade, consideram-se o corpo próprio e os demais. E cada um merece tratamento relativo à sua dignidade.
O decoro surgiu na Grécia e recebeu um nome: Aidós. Trata-se da vergonha imposta a quem não se comporta em público. Penas severas eram aplicadas aos que, por educação falha ou vício de caráter, desrespeitavam os cidadãos de Atenas. Sem a vergonha os valores democráticos empalidecem porque o corpo e a língua indecorosos mostram que a lei foi corroída pela selvageria.
Na Idade Média o decoro foi retomado pelos monges. A roupa e os gestos não poderiam depor contra um religioso que, supostamente, tinha optado pela pobreza. Frades vestidos como barões eram a prova de que os votos sagrados haviam sido desobedecidos. Daí o uniforme das ordens, sem enfeites de prata, ouro, pedras preciosas. A “dama pobreza”, segundo Francisco de Assis, exige que seus pretendentes vivam como ela, vestida apenas pela graça divina. A língua deveria seguir a mesma regra.
Da Renascença em diante, o decoro passou a nortear as palavras, as roupas, os gestos dos reis, dos nobres, dos burgueses. Ele é um exercício de respeito aos outros e meio de garantir o respeito a si mesmo. Quem não tem prerrogativas, mas quer exercê-las, é indecoroso. Um hóspede que toma o papel da dona da casa, indicando aos demais o lugar onde devem tomar assento, é indecoroso. E se a anfitriã deixa o indiscreto fazer o gesto inconveniente, ela é indecorosa. Sua prerrogativa não deve ser negada sequer pelo marido, pelos filhos, pais, etc. Se um bispo comum, numa visita papal, ousa dar a bênção Urbi et Orbi... ele não apenas enlouqueceu, mas seu ato é indecoroso.
Uma regra que ajuda a decidir as inclinações à moda chinesa, quando pessoas estão diante da porta: não é a mais jovem, mais bonita, mais velha a ceder a passagem. Dá o lugar quem o possui. Se o mais jovem é presidente da República, ele cede a passagem, primeiro aos velhos, depois às mulheres, depois aos demais. Não é falta de respeito um inferior na escala governamental passar primeiro. É indecoro do que detém o mais alto cargo não ceder a passagem, mostra que ele ignora a etiqueta e as verdadeiras prerrogativas do seu posto.
Assim, na escrita, diz o citado gramático inglês do século 16: se um autor não usa imagens no texto, é indecoroso por desprezar a fantasia e o gosto do leitor. Se as usa aos borbotões, é indecoroso, pois despreza inteligências e culturas. O poeta decoroso jamais dirá algo como “a face rosada e fina do general”. É indecente um general ter faces que só cabem às crianças e às raparigas em flor.
Se uma autoridade quer ser respeitada, deve respeitar o povo (que fica chocado com palavrões e outras marcas de indecoro). Certas falas devem ser evitadas. Não por causa do hipócrita “politicamente correto”. Trata-se de algo sério. Os reitores são “magníficos”, mesmo se não ostentam magnificência. A comunidade acadêmica é a proprietária do título, usado em seu nome. Deputados, senadores, edis são “excelentíssimos” não porque sejam dotados de excelência.
O título pertence ao soberano, o que possui a maiestas, termo latino para designar o ente mais elevado no coletivo. Na monarquia, a maiestas é apanágio do rei, que usa o título em nome do povo. Na democracia é o próprio povo que a empresta, a cada eleição, aos representantes. É assim que o decorum exige tratar o povo com respeito. Não por “boa educação”, mas por subordinação da “autoridade” diante de quem a “autoriza”. E a regra funciona para todos os Poderes, incluindo o Judiciário e o militar. Sem tal respeito, temos larápios da soberania, não representantes.
A expressão “soberania popular” e o termo “majestade” incomodam ouvidos indecentes. Mas eles permitem reconhecer a força das normas democráticas. Somos herdeiros do mundo grego e latino em práticas e valores. O Direito e a política não fogem à regra. No Estado moderno as ideias de soberania e majestade, contra o exercício ditatorial ou aristocrático do mando, aplicam-se à totalidade dos cidadãos (Thomas, Y., L’Institution de la Majesté, em Revue de Synthèse, julho/dezembro de 1991).
Faltar com o decoro diante da maiestas é destruir a fé pública. Um político não tem o direito de ser leviano. Seu ofício exige ponderação, a gravitas. Para os romanos, a gravitas comanda uma atitude “que não se curva em proveito do sucesso político passageiro" (Yavetz, Z., La Plèbe et le Prince).
O representante não pode tratar os cidadãos como crianças. Ele deve ser o portador de uma gravitas dicendi. “Suruba”, “canalha” e quejandos são termos levianos. A boca suja pode ser aceita entre malandros, na sua vida íntima. Mas na língua de quem decide sobre os bens públicos, com repercussões vitais sobre o País, semelhantes vocábulos indicam apenas... levitas indigna de qualquer democracia.
Se as mãos de muitos políticos brasileiros estão sujas, que eles pelo menos limpem a língua. De preferência com muito sabão.
(Publicado originalmente na Folha de Londrina)
Dias atrás almocei com meu amigo Caio Cesaro, secretário de Cultura de Londrina. Conheço-o há mais de 25 anos, desde os meus tempos de militante esquerdista na UEL (ele não militou, sempre foi sensato). Um dos principais tópicos de nossa agradável conversa foi o Promic. Àquela altura, porém, não poderíamos imaginar que o programa viria a ser cancelado.
Fiquei muito satisfeito quando Caio me disse que estava no governo para ser secretário da Cultura, e não secretário do Promic. Afinal, cultura é algo muito mais amplo, importante e essencial do que projetos culturais. Existe mais cultura em um parágrafo de Erico Verissimo ou Olavo de Carvalho do que em boa parte das produções culturais financiadas com dinheiro público.
Ainda bem que o Promic foi cancelado. Assim não passaremos a vergonha de ter, por exemplo, um Carnaval financiado com verbas públicas nestes tempos de crise social e ruína econômica. No momento, a Prefeitura tem prioridades além dos blocos carnavalescos.
Sei que alguns artistas — ou melhor, "produtores culturais" — vão reclamar. Talvez até organizem um protesto. Existe aquela regra de ouro da Ann Coulter: "Jamais se coloque entre um esquerdista e sua verba". Vimos um exemplo bastante típico no caso recente do escritor Raduan Nassar, que bradou sem temor contra Temer mas embolsou a verba do Prêmio Camões, concedida pelo mesmo governo que ele diz odiar. Ah, como eram românticos aqueles tempos em que o poeta português Herberto Helder, mesmo vivendo em total pobreza, recusou o Prêmio Pessoa — uma bolada equivalente ao Camões — porque aceitar prêmios e láureas ia contra seus princípios pessoais. Li Herberto Helder e li Raduan Nassar; posso entender por que o autor de "Elegia Múltipla" é incomparavelmente melhor do que o autor de "Um Copo de Simancol" — desculpe, "Um Copo de Cólera".
Em nosso encontro, expliquei ao Caio por que sou contra a existência da Secretária de Cultura. Acredito que a cultura é algo tão importante que criar uma pasta específica para o segmento torna-se tão absurdo quanto seria haver uma Secretaria do Oxigênio ou uma Secretaria do Amor Materno ou uma Secretaria do Almoço. As coisas mais importantes da vida não são administráveis. Um bom gestor cultural, como sei que o Caio é, limitar-se-ia (uso aqui a mesóclise em homenagem ao Presidente Temeroso) a organizar uma boa agenda e garantir a conservação de patrimônios da cidade como a nossa querida Biblioteca Pública.
O Brasil, o Paraná e Londrina necessitam de uma grande mudança cultural — e, para isso, é fundamental a existência de escritores, músicos, cineastas, pintores, escultores, teatrólogos capazes de produzir sem depender umbilicalmente do Estado. Deem-nos artistas que amem a cultura, não os editais. Deem-nos intelectuais que amem o Verbo, não a verba.
Se eles não conseguem sobreviver sem o dinheiro da Prefeitura, desculpem, mas está na hora de tomar um copo de Simancol e procurar outro emprego.
Fale com o colunista: avenidaparana @ folhadelondrina.com.br
Enquanto em São Paulo o prefeito João Doria anuncia o “maior projeto de privatização” do Brasil e ninguém faz drama, no Rio de Janeiro a venda da Cedae ameaça virar (mais) um fiasco
O que impressiona, no debate carioca, é o tom. A exaltação. O evidente conflito de interesses envolvido na discussão. Tudo isso, alguém poderia dizer, é previsível em um debate envolvendo a privatização de uma empresa pública. Não acho. Uma boa democracia precisa saber separar a lógica dos grupos de pressão do interesse difuso dos cidadãos. A conversa fiada ideológica da argumentação racional.
Leio um artigo do deputado Marcelo Freixo dizendo que a Cedae “vale entre R$ 10 bilhões e R$ 14 bilhões” e que os membros do governo estadual dizem valer R$ 4 bilhões. Na contabilidade do deputado, a companhia, com seu bilionário passivo trabalhista, situa-se entre as 40 ou 50 empresas mais valiosas do país. O dado mais curioso, porém, é uma empresa possuir um valor “teórico” distinto do que alguém esteja efetivamente disposto a pagar por ela numa concorrência pública. Alguém poderia explicar ao deputado Freixo que preços se definem no mercado. É por isso que se fazem leilões para vender uma empresa estatal, e o melhor a fazer é exigir o máximo de transparência nesses processos.
O argumento mais esquisito que li veio inspirado pelo papa Francisco. O sujeito citava a encíclica Laudato si e chegava à surpreendente tese segundo a qual, sendo o acesso à agua um “direito humano essencial, fundamental e universal”, a Cedae não pode ser privatizada. Inútil lembrar que, por esse argumento, também o acesso à comida não poderia ser “submetido às leis do mercado”. Mais esquisita ainda é a ideia ainda presente em nosso debate público, segundo a qual o que é “essencial” deve ser “público”, e o que é público deve ser “estatal”.
Para além da retórica ideológica, há boas razões para ter cuidado com o tema da privatização de serviços de água e saneamento. Os críticos do modelo partem do fato de que sistemas de água e saneamento são monopólios naturais e, nessa condição, exigem muito investimento, não permitem concorrência e carregam um amplo leque de obrigações sociais e ambientais. Logo, deveriam ser administrados pelo governo. Empresas privadas tenderão a encontrar brechas na legislação para investir menos em áreas mais pobres, desconsiderar efeitos negativos de sua atividade sobre o meio ambiente e, pior, tenderão a usar seu poder econômico para “capturar” seus reguladores, estejam eles no governo ou em agências independentes.
Tudo isso é possível. Não passa de retórica vazia imaginar que a simples troca de gestão do governo para o setor privado vai melhorar um serviço de natureza monopolística. Os resultados vão variar imensamente segundo as regras do jogo, a qualidade dos contratos e do controle público. É sobre esses pontos que deveria estar concentrado o debate sobre a privatização da Cedae, no Rio de Janeiro.
A experiência global no tema diz o seguinte: serviços privados de água e saneamento podem funcionar bem e atender os mais pobres. Há mais de 2 mil empresas privadas nesse setor, operando nos Estados Unidos, atendendo mais de 70 milhões de pessoas. O Chile tem sido um bom modelo de gestão privada de abastecimento, mantido pelos governos socialistas. A cidade de Indianápolis recentemente privatizou seu serviço de águas para uma organização privada sem fins lucrativos. Há exemplos distintos. Cidades como Atlanta e Buenos Aires voltaram atrás e retomaram a gestão estatal de seus sistemas de abastecimento.
Um estudo interessante, e com certeza útil para o debate brasileiro, foi realizado pelo economista argentino Sebastian Galiani, hoje professor na Universidade de Maryland. Galiani mediu o impacto da privatização dos serviços de água sobre a mortalidade infantil na Argentina. Crianças são mais vulneráveis a doenças transmitidas por água contaminada e falta de condições básicas de saneamento. Pois bem: na Argentina dos anos 1990, 30% dos municípios privatizaram seus sistemas de água. Um ótimo contexto para comparar os modelos. Os números mostraram o seguinte: na primeira metade da década, não houve diferença nos resultados entre a gestão estatal e privada. Na segunda metade, no entanto, a partir da consolidação do novo modelo, a redução da taxa de mortalidade nos municípios que fizeram a privatização foi 8% maior do que as que mantiveram o modelo estatal. Nas comunidades mais pobres, a diferença foi a 26%. O grande diferencial foi a expansão do investimento. Áreas mais pobres, antes sem cobertura, foram integradas às redes de abastecimento.
Questões comuns, nesse debate, parecem ser as seguintes: taxas tendem a subir logo após processos de privatização? A resposta é sim, em geral devido a longos períodos de ausência de investimento e “gestão política” de preços. Manter tarifas artificialmente baixas para todos significa apenas que os contribuintes como um todo estão subsidiando o consumo de quem eventualmente pode pagar. Estimulando, por vezes, o consumo irresponsável. Outra questão: o governo, em um sistema privatizado, pode subsidiar a oferta de água para os mais pobres? Sim, com a vantagem de saber exatamente quem está sendo subsidiado e a que custo. E sem comprometer a eficiência da gestão.
A comparação internacional, nesse tema, é útil para evitar erros e fazer as perguntas certas, mas não responde à questão central: é melhor um sistema estatal ou privado? Por certo, sociedades com tradição de meritocracia, transparência e profissionalismo no setor público e governos com capacidade de investimento tendem a tornar mais plausível a alternativa estatal. Pergunta rápida: é esse o caso brasileiro? É esse particularmente o caso do estado do Rio de Janeiro?
O ex-governador de Nova York Mário Cuomo costumava dizer que “garantir a prestação de um serviço não implica sua execução pelo governo”. A frase é simples. Ela convida a pararmos, de uma vez por todas, de confundir o “público” com o “estatal” no debate brasileiro. Nos convida a um certo realismo. Precisamente o que parece estar faltando no debate hoje em curso no Rio de Janeiro.
* O autor é cientista política, doutor em Filosofia, professor do Insper e curador do ciclo de debates Fronteiras do Pensamento.
A denúncia contra Lula pelo sítio em Atibaia será uma das mais arrasadoras da Lava Jato. Quem avisa é a revista Época. A denúncia está demorando porque trará informações que constam das delações premiadas da Odebrecht e do ex presidente da OAS, Oldemario Pinheiro Neto, o Léo Pinheiro, que junto com a Odebrecht, teria sido quem pagou pela mega remodelação que transformou o sítio de lazer em uma sucursal da Ilha da Fantasia.
Entrementes, Tarso Genro foi ouvido como testemunha de defesa de Lula no caso do outro imóvel, o triplex do Guarujá.
Confesso que ao ouvir a notícia de que Tarso seria ouvido, pensei: que raios Tarso poderá dizer em defesa de Lula? Tarso declarou que não conhece a vida financeira privada do Lula. Mas afirmou solenemente que “tenho conhecimento suficiente dele, da sua postura como político, como presidente da República, que ele jamais aceitaria qualquer beneficio indevido, decorrente de intercâmbio a partir das suas funções presidenciais”. Ah, tá!
Tarso não perde o jeito.
Quando ele era vice prefeito de Olivio Dutra em Porto Alegre, um brigadiano foi degolado com um golpe de foice na garganta, desferido por um membro do MST, durante uma manifestação no centro da capital gaúcha. O assassino fugiu e foi homiziar-se na prefeitura. A imprensa correu até lá e Tarso os recebeu. Saiu em defesa do agressor, que assim como os demais companheiros que o acompanharam na fuga portavam foices com longos cabos de madeira. Ao ouvir que o assassino e seus colegas do Movimento dos Sem Terra estavam “armados”, Tarso rebateu: As foices não eram armas. Eram “instrumentos de trabalho”. Esse é Tarso.
Ele também contou que logo após assumir o Ministério da Justiça, o chefe da Polícia Federal, delegado Paulo Lacerda, lhe avisou que ocorreria uma diligência, a pedido pelo Ministério Público, na casa de Vavá, irmão de Lula. Vavá estava sendo investigado por possível tráfico de influência. Tarso foi avisado e teria perguntado ao subordinado: “Está tudo regular? Tem ordem escrita? Tem orientação? Então que se proceda.’”
Em seguida, “cumprindo minhas obrigações como ministro, avisei o presidente Lula”:
– Presidente, queria lhe informar que amanhã cedo vai ocorrer uma diligência na casa do seu irmão.
Lula perguntou: “Está tudo legal, tudo regular?”
– Sim, está tudo correto. – respondeu o ministro. Lula então teria respondido:
– Que se proceda essa diligência, agradeço por me informar.’”
Tá bem. Será que Lula não avisou o irmão? Será que o irmão ficou aguardando calmamente, sem nenhuma ação ou providência, como se nada tivesse acontecido?
Acredito.
Bem, o fato é que enquanto a batata continua assando, volta e meia surgem novas pesquisas apontando Lula como muito bem posicionado para a corrida presidencial de 2018.
Ora, mesmo que ele esteja solto em outubro de 2018 e cometa a bobagem de concorrer, Lula não tem chance alguma. Os índices que apresenta são os fanáticos que ainda o acompanham e meia dúzia de alienados que votariam nele mesmo que fizesse campanha vestido como a bruxa malvada. Seus índices de rejeição são incontornáveis. Não há como Lula ganhar. Isso com o que se sabe até hoje. Fora o que ainda falta ser revelado e o será em breve.
Já imaginaram Lula em um debate? Os vídeos dele andando na rua e sendo destratado pela população? Como ele colocaria os pés na rua?
A possibilidade de Lula concorrer é remota. Se concorrer, tomará uma lavada.
Vinte e sete enunciados sobre a oportunidade de desmontar o mecanismo de exploração da sociedade brasileiral.
1) Na base do sistema político brasileiro, opera um mecanismo de exploração da sociedade por quadrilhas formadas por fornecedores do Estado e grandes partidos políticos. (Em meu último artigo, intitulado Desobediência Civil, descrevi como este mecanismo exploratório opera. Adiante, me refiro a ele apenas como "o mecanismo".)
2) O mecanismo opera em todas as esferas do setor público: no Legislativo, no Executivo, no governo federal, nos estados e nos municípios.
3) No Executivo, ele opera via superfaturamento de obras e de serviços prestados ao estado e às empresas estatais.
4) No Legislativo, ele opera via a formulação de legislações que dão vantagens indevidas a grupos empresariais dispostos a pagar por elas.
5) O mecanismo existe à revelia da ideologia.
6) O mecanismo viabilizou a eleição de todos os governos brasileiros desde a retomada das eleições diretas, sejam eles de esquerda ou de direita.
7) Foi o mecanismo quem elegeu o PMDB, o DEM, o PSDB e o PT. Foi o mecanismo quem elegeu José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer.
8) No sistema político brasileiro, a ideologia está limitada pelo mecanismo: ela pode balizar políticas públicas, mas somente quando estas políticas não interferem com o funcionamento do mecanismo.
9) O mecanismo opera uma seleção: políticos que não aderem a ele têm poucos recursos para fazer campanhas eleitorais e raramente são eleitos.
10) A seleção operada pelo mecanismo é ética e moral: políticos que têm valores incompatíveis com a corrupção tendem a ser eliminados do sistema político brasileiro pelo mecanismo.
11) O mecanismo impõe uma barreira para a entrada de pessoas inteligentes e honestas na política nacional, posto que as pessoas inteligentes entendem como ele funciona e as pessoas honestas não o aceitam.
12) A maioria dos políticos brasileiros tem baixos padrões morais e éticos. (Não se sabe se isto decorre do mecanismo, ou se o mecanismo decorre disto. Sabe-se, todavia, que na vigência do mecanismo este sempre será o caso.)
13) A administração pública brasileira se constitui a partir de acordos relativos a repartição dos recursos desviados pelo mecanismo.
14) Um político que chega ao poder pode fazer mudanças administrativas no país, mas somente quando estas mudanças não colocam em xeque o funcionamento do mecanismo.
15) Um político honesto que porventura chegue ao poder e tente fazer mudanças administrativas e legais que vão contra o mecanismo terá contra ele a maioria dos membros da sua classe.
16) A eficiência e a transparência estão em contradição com o mecanismo.
17) Resulta daí que na vigência do mecanismo o Estado brasileiro jamais poderá ser eficiente no controle dos gastos públicos.
18) As políticas econômicas e as práticas administrativas que levam ao crescimento econômico sustentável são, portanto, incompatíveis com o mecanismo, que tende a gerar um estado cronicamente deficitário.
19) Embora o mecanismo não possa conviver com um Estado eficiente, ele também não pode deixar o Estado falir. Se o Estado falir o mecanismo morre.
20) A combinação destes dois fatores faz com que a economia brasileira tenha períodos de crescimento baixos, seguidos de crise fiscal, seguidos de ajustes que visam conter os gastos públicos, seguidos de novos períodos de crescimento baixo, seguidos de nova crise fiscal...
21) Como as leis são feitas por congressistas corruptos, e os magistrados das cortes superiores são indicados por políticos eleitos pelo mecanismo, é natural que tanto a lei quanto os magistrados das instâncias superiores tendam a ser lenientes com a corrupção. (Pense no foro privilegiado. Pense no fato de que apesar de mais de 500 parlamentares terem sido investigados pelo STF desde 1998, a primeira condenação só tenha ocorrido em 2010.)
22) A operação Lava-Jato só foi possível por causa de uma conjunção improvável de fatores: um governo extremamente incompetente e fragilizado diante da derrocada econômica que causou, uma bobeada do parlamento que não percebeu que a legislação que operacionalizou a delação premiada era incompatível com o mecanismo, e o fato de que uma investigação potencialmente explosiva caiu nas mãos de uma equipe de investigadores, procuradores e de juízes, rígida, competente e com bastante sorte.
23) Não é certo que a Lava-Jato vai promover o desmonte do mecanismo. As forças politicas e jurídicas contrárias são significativas.
24) O Brasil atual está sendo administrado por um grupo de políticos especializados em operar o mecanismo, e que quer mantê-lo funcionando.
25) O desmonte definitivo do mecanismo é mais importante para o Brasil do que a estabilidade econômica de curto prazo.
26) Sem forte mobilização popular, é improvável que a Lava-Jato promova o desmonte do mecanismo.
27) Se o desmonte do mecanismo não decorrer da Lava-Jato, os políticos vão alterar a lei, e o Brasil terá que conviver com o mecanismo por um longo tempo."
* José Padilha é jornalista.
NOTA DO EDITOR
O que o jornalista brilhantemente denomina neste artigo publicado em O Globo como o "mecanismo", pode ser desarticulado pela Lava Jato. Mas retornará ali adiante se não houver uma substanciam reforma de nosso modelo institucional. A apropriação do Estado e da Administração pelo Governo e seus partidos é a usina onde opera o "mecanismo" opera.
Percival Puggina
Primeiro dia de aula, o professor entrou na sala e a primeira coisa que fez foi perguntar o nome a um aluno que estava sentado na primeira fila:
- Qual é o seu nome?
- Chamo-me Nelson, senhor.
- Saia de minha aula e não volte nunca mais! - gritou o desagradável professor.
Nelson ficou desconcertado. Quando voltou a si, levantou-se rapidamente, recolheu suas coisas e saiu da sala.Todos estavam assustados e indignados, porém, ninguém falou nada.
- Agora sim, vamos começar! Para que servem as leis? - Perguntou o professor.
Os alunos ainda estavam assustados, porém, pouco a pouco, começaram a responder sua pergunta:
- Para que haja uma ordem em nossa sociedade.
- Não! - respondia o professor.
- Para cumpri-las.
- Não!
- Para que as pessoas erradas paguem por seus atos.
- Não! Será que ninguém sabe responder esta pergunta?
- Para que haja justiça - falou timidamente uma garota.
- Até que enfim! É isso, para que haja justiça. E agora, para que serve a justiça?
Todos começaram a ficar incomodados pela atitude tão grosseira. Porém, seguiam respondendo:
- Para salvaguardar os direitos humanos...
- Bem, que mais? - perguntava o professor.
- Para diferenciar o certo do errado, para premiar a quem faz o bem...
- Ok, não está errado. Porém, respondam esta outra pergunta: Agi corretamente ao expulsar o Nelson da sala de aula?
Todos ficaram calados, ninguém respondia.
- Quero uma resposta decidida e unânime!
- Não! - responderam todos a uma só voz.
- Poderia dizer-se, então, que cometi uma injustiça?
- Sim!
- E por que ninguém fez nada a respeito? Para que queremos leis e regras se não dispomos da vontade necessária para praticá-las? Cada um de vocês tem a obrigação de reclamar quando presenciar uma injustiça. Todos. Não voltem a ficar calados, nunca mais!
E continuou:
- Eu vou buscar o Nelson. Afinal, ele é o professor, eu sou aluno de outro período!