(Publicado originalmente em http://www.gazetadopovo.com.br/)
Quando Mark Twain soube de um obituário seu precoce, ironizou: “Parece-me que as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas”. Será que o mesmo pode ser dito acerca da Europa cristã hoje?
Que o continente, berço da civilização ocidental, está sob ataque, definhando numa crise de valores morais, mergulhado no caos do “welfare state” e do multiculturalismo politicamente correto, qualquer pessoa atenta pode perceber. O estrago do pós-modernismo materialista, niilista e hedonista salta aos olhos.
Mas será que, por conta disso, deve-se adotar uma postura pessimista e fatalista de que não há mais jeito, de que a islamização europeia é uma tendência inexorável, de que não haverá chance de reação? Será que a “profecia” do escritor francês Houellebecq em Submissão se realizará?
Talvez. Mas para dar um tom mais otimista, resgato um longo trecho do livro O homem eterno, de G.K. Chesterton, em que ele argumenta a favor da incrível força da boa-nova do cristianismo, cuja morte já foi prevista inúmeras vezes antes (assim como a do capitalismo desde Marx):
Mas o primeiro fato extraordinário que marca essa história é o seguinte: a Europa foi virada de cabeça para baixo muitas e muitas vezes, e no fim de cada uma dessas revoluções a mesma religião estava outra vez no topo.
[…] Todos os estágios comuns haviam sido vividos: o credo se tornara algo respeitável, tornara-se um ritual, depois havia sido modificado e racionalizado, e os racionalistas estavam dispostos a dissipar o que sobrara dele exatamente como fazem hoje em dia. Quando o cristianismo de repente ressurgiu e os surpreendeu, foi algo tão inesperado como Cristo ressuscitando dentre os mortos.
[…] Por que houve aquele intenso alarme entre algumas das autoridades acerca da versão racionalista de Aristóteles feita pelos árabes? As autoridades raramente se alarmam a não ser quando já é tarde demais. A resposta é que centenas de pessoas provavelmente acreditavam no fundo do coração que o islamismo conquistaria a cristandade; que Averroes era mais racional que Anselmo; que os sarracenos eram no fundo, como na superfície, uma cultura superior.
[…] O que de fato aconteceu foi um rugido feito um trovão de milhares e milhares de jovens jogando toda a sua juventude num exultante contra-ataque: as cruzadas. Eram os filhos de são Francisco, os malabaristas de Deus, que percorreram cantando todas as estradas do mundo; era o estilo gótico subindo como uma revoada de flechas; era o despertar do mundo.
[…] Resumindo: na medida em que é verdade que os séculos mais recentes têm testemunhado uma atenuação da doutrina cristã, eles apenas testemunharam o que testemunharam os séculos mais remotos. E até mesmo o exemplo moderno terminou exatamente como terminaram os exemplos medievais e premedievais.
[…] Se nossas relações e registros sociais mantiverem sua continuidade, se os homens realmente aprenderem a usar a razão para acumular os fatos de uma história tão esmagadora, a impressão é de que mais cedo ou mais tarde até seus inimigos aprenderão com suas incessantes e intermináveis decepções a não ir atrás de algo tão simples como a morte do cristianismo. Eles podem continuar a combatê-lo, mas será como um combate contra a natureza: um combate contra uma paisagem, um combate contra o horizonte. “Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão.”
Quem me acompanha há tempos sabe que não sou exatamente um crente, e já fui até um ateu militante (fase da qual me envergonho um pouco). Mas isso não me impede de analisar a situação friamente, e concluir que o cristianismo, historicamente falando, tem profunda ligação com o relativo sucesso da civilização ocidental. Seu legado é positivo, apesar das falhas (e toda instituição humana será sempre imperfeita, algo que os utópicos não entendem).
Eis um trecho do livro Os caminhos para a modernidade, da historiadora Gertrude Himmelfarb, sobre o lado britânico do Iluminismo (ou melhor, dos Iluminismos), que é comumente ignorado pelos professores fãs da Revolução Francesa sangrenta:
Essa foi a Inglaterra que Montesquieu encontrou no início do século XVIII. O povo inglês, disse ele, “sabe melhor do que qualquer outro povo sobre a Terra como valorizar, ao mesmo tempo, estas três grandes vantagens – religião, comércio e liberdade”. E foi essa a Inglaterra que Tocqueville redescobriu mais de um século depois: “Eu desfrutei, na Inglaterra, do que há muito tempo eu estive privado – uma união entre os mundos religioso e político, entre a virtude pública e privada, entre o cristianismo e a liberdade”.
Acho que qualquer estudo sério e imparcial mostrará que não é tão fácil dissociar o legado da civilização ocidental daquele do cristianismo. Os grandes pensadores atribuíram importância enorme aos valores cristãos nesse avanço da liberdade e do conhecimento. Não é por acaso que existe um abismo quase intransponível entre países dominados pelo Islã e aqueles com origem cristã em termos de tolerância, liberdade individual etc.
Algumas pessoas acham que esse “liberalismo” degenerado de hoje não é capaz de enfrentar a ameaça islâmica. Que falta estamina, coragem, motivação, uma causa maior para lutar, resistir. Sem o patriotismo, por exemplo, quem vai arriscar a vida em nome de uma abstração universal, dos burocratas sem-rosto de Bruxelas? Sem a fé, a esperança no futuro, quem vai desafiar os invasores que demandam total submissão?
Há, até onde sei, um bom debate entre cristãos ocorrendo nos dias atuais. Uns acham que é preciso se reagrupar e lutar de forma mais aberta, mesmo numa sociedade “pós-cristã”, que rejeita seu legado; e outros pensam que a melhor forma de resistir é como na era medieval, encastelando-se em espécies de monastérios onde esse legado fique resguardado, protegido, até o dia em que a civilização resolva beber novamente desta rica fonte.
Como alguém de fora, não vou dar pitaco, não sei qual a melhor estratégia. Só sei que torço para um despertar, se não cristão, então ao menos ocidental, ou seja, o desejo de lutar para preservar tudo isso que herdamos de nossos antepassados, e que não foi pouca coisa (quem discorda que vá passar uma temporada no Irã ou na Arábia Saudita).
Após mais um atentado em Londres, parece que a ficha está caindo, que o povo está cansando. O discurso está endurecendo, finalmente. E sabemos que se alguma esperança há, ela vem da Inglaterra, não da França. Não é implicância; é que a França gosta de produzir ideias erradas mesmo.
Só sei que sem a determinação de manter os valores básicos que definem o Ocidente, nossa civilização sucumbirá, e seu futuro será irreconhecível para nós. É isso que queremos deixar para nossos filhos e netos? Burke falava de um contrato social entre gerações, daqueles que vivem com aqueles que já viveram e aqueles que ainda viverão. Está na hora de lembrar disso. Devemos aos nossos pais e avós, e também aos nossos filhos e netos.
Uma civilização não se sustenta num vácuo de valores. Alguns liberais acharam que tais valores não dependiam da religião. Há controvérsias. O presente mostrou que talvez não seja tão simples assim. E se Chesterton estiver certo, poderemos muito bem presenciar um novo despertar cristão, para combater o niilismo e a desesperança daqueles que aceitam passivamente a submissão e a morte, tudo em nome da “tolerância”, claro. Está na hora de dar um basta aos intolerantes!