No momento da redação deste texto, a bancada do PSOL na Câmara Federal tem exatos seis deputados. É um número minguado mesmo para uma casa com 27 partidos. Apenas duas jovens siglas (REDE e PEN) possuem representatividade menor. Com Randolfe Rodrigues na Rede Sustentabilidade desde 2015, nem cadeiras no Senado os psolistas têm mais.
Na melhor leitura possível, o Partido Socialismo e Liberdade (sic) configura apenas a 19ª força do parlamento brasileiro. No entanto, a imprensa brasileira não se cansa de consultá-la sobre basicamente qualquer assunto, dando-lhe voz rotineiramente. Por quê?
O Google Trends flagra o fenômeno conforme se observa no gráfico mais abaixo. Ao se confrontar as citações ao PSOL com três siglas que somam 25 vezes mais assentos na Câmara, nota-se a meia dúzia de psolistas duelando diretamente com os 32 deputados do PSB, e por vezes superando os 50 do PSDB, além dos 66 do PMDB. E olha que estes três últimos somam ainda 37 senadores, um presidente da República e um número muito mais significante de projetos estaduais e municipais.
Em 2015, quatro deputados do PSOL ficaram entre os dez mais votados no Prêmio Congresso em Foco, uma escolha nascida do julgamentos de 186 jornalistas que cobrem o Congresso Nacional. Ao todo, os cinco psolistas que foram lembrados acumularam 35% dos votos. Para efeito de comparação, o PT, que teve 18 parlamentares representados, não passou de um terço disso.
É destaque demais para um projeto tão inexpressivo. A meia dúzia de gabinetes dos deputados liderados por Ivan Valente é menor, por exemplo, do que as sete vagas que o palhaço Tiririca conseguiu sozinho das duas últimas campanhas.
O PSOL nasceu três meses após Roberto Jefferson revelar para as câmeras de todo o país que o governo Lula comprava votos do baixo clero. E abrigaria os petistas que sentiram um mínimo de vergonha do Mensalão. Desde então, se dizem uma oposição à esquerda do PT, algo que só faz sentido nos primeiros turnos das eleições. Porque, quando a coisa esquenta, a linha auxiliar entra em campo e faz todo o jogo que o petismo precisa.
E a imprensa brasileira adora reverberar tal jogo.
* Publicado originalmente em https://www.implicante.org/author/marlosapyus/
Um importante ambientalista se opôs à acomodação dos ciclistas, alegando que promover o transporte cicloviário nas cidades é incrivelmente custoso, prejudica negócios locais e a renda da cidade, aumenta a poluição e o tráfego, e deixa os ciclistas com antracose pulmonar.
De acordo com Lawrence Solomon, diretor executivo da Urban Renaissance Institute e um dos ambientalistas mais importantes do Canadá, o transporte cicloviário trazia grandes benefícios para as cidades. Em uma peça para o Financial Post, Solomon afirma que nos anos 1980 a bicicleta “abençoou as cidades com benefícios econômicos e ambientais”, pois reduziu o número de carros nas estradas, o que por sua vez aliviou o tráfego.
Solomon escreve ainda que a bicicleta “reduziu o desgaste das estradas, aliviando os orçamentos municipais, reduziu emissões de automóveis, aliviando a poluição aérea, reduziu a necessidade de estacionamentos, aumentando a eficiência do aproveitamento da terra, e ajudou as pessoas a se manterem em forma também.
Hoje, porém, o transporte cicloviário é mais prejudicial do que benéfico.
Sem contar o problema óbvio da Lycra, Solomon explica que ciclofaixas “agora consomem mais espaço das estradas do que liberam, agregam tanta poluição quanto o que reduzem, prejudicam áreas residenciais e comerciais e se tornaram um sumidouro de dinheiro público.
No Reino Unido, Londres é um ótimo exemplo de como o transporte cicloviário se tornou prejudicial para as cidades.
O ex-prefeito de Londres, Boris Johnson, criou uma “revolução ciclística” na forma de um sistema de aluguel de bicicletas públicas. O esquema fez com que bicicletas em estações de locação brotassem pela cidade. Embora o conceito tenha sido bem recebido, hoje está provado que ele é uma fonte de congestionamentos para os passageiros [de automóveis] devido às muitas ciclofaixas, as quais a autoridade de transporte público (Transport for London, TfL) chama de “superautoestradas cicloviárias”.
Essas ciclofaixas, que estão em sua maioria subutilizadas, forçaram o tráfego a se mover a passos de tartaruga já que os carros não podem utilizar toda a estrada para se deslocarem.
De acordo com um relatório da prefeitura de Londres citado por Solomon, “o impacto mais significativo sobre a malha viária da Cidade nos últimos 12 meses foi a construção e subsequente operação da superautoestrada cicloviária da TfL (…) áreas de congestionamento de tráfego podem ser vistos com frequência nessas vias.
O dano das ciclofaixas foi até mesmo trazido a um debate parlamentar quando o Lorde Nigel Lawson disse que elas prejudicaram Londres mais do que “quase qualquer outra coisa desde a Blitz [N.T.: bombardeios alemães na 2ª Guerra Mundial]”.
Devido à imensa quantidade de trafego provocada pelas ciclofaixas, os níveis de poluição da cidade se elevaram. As principais vítimas da poluição, ironicamente, são os ciclistas.
Solomon, citando um estudo da London School of Medicine, explica que ciclistas inalam 2,3 vezes mais fuligem do que pessoas que caminham. Isto porque ciclistas “respiram mais fundo e a uma taxa mais rápida do que os pedestres e estão mais próximos dos gases de exaustão dos carros (…) nossos dados sugerem fortemente que a exposição individual ao carbono negro deve ser levada em consideração ao planejar rotas ciclísticas”, sugere o relatório.
Não apenas as cidades estão desembolsando uma enorme quantidade de dinheiro em esquemas de ciclovias – Paris almeja se tornar a “capital ciclística do mundo” gastando 150 milhões de euros – ciclofaixas custam dinheiro aos negócios já que tipicamente elas substituem faixas que acomodavam estacionamentos de rua, o que pode impactar gravemente empresas que dependem de vagas de automóveis para operar.
Oregon, nos EUA, que tem um grande número de ciclistas, tentou consertar o problema implementando um imposto sobre as vendas de novas bicicletas. O senador estadual que redigiu a lei explicou que os legisladores “sentiram que as bicicletas deveriam contribuir para o sistema”.
“No Reino Unido, ciclistas são xingados de “mamils” [N.T.: acrônimo de middle aged men in Lycra, ou homens de meia idade em lycra]. Nas cidades do interior dos EUA as ciclofaixas são vistas como o território de “homens brancos com empregos de escritório aprofundando a gentrificação”, escreve Solomon. “Em quase todo lugar eles são vistos como rudes e como ameaças à segurança dos pedestres.”
Certamente, zombar de ciclistas é algo que todo motorista tem feito desde o primeiro Modelo T.
[*] Connor Chue-Sang. “Bike Lanes Are More Than Just Annoying, They’re Hurting Cities, People, and Businesses“. Danderous, 6 de Dezembro de 2017.
Tradução: dvgurjao
• Publicado originalmente por Tradutores de Direita
Diante do quadro de desgaste sofrido pela política ultimamente, observamos cada vez mais o surgimento e crescimento de grupos que estão se posicionando de forma diferente. A proposta de muitos deles é pensar uma espécie de pós-política, uma ideia que vai além de partidos e ideologias, uma iniciativa que visa pensar o Brasil.
Este fenômeno é natural nas democracias que vêm amadurecendo, situação que vivemos em nosso país. É uma iniciativa interessante e necessária, mas não deixa de guardar uma parcela de ingenuidade. Movimentos que tentam enxergar a política por este prisma, em pouco tempo, tendem a tornam-se reféns de seus mecanismos de poder.
Diante desta concepção inocente, diria que até certa medida puritana, estes grupos veem o governo atual de forma tão negativa como o governo passado. Não trata-se de disputas sobre grau de corrupção, mas a crença de que o sistema como um todo esteja apodrecido, abrindo a necessidade imediata de ruptura, por meio da renovação completa dos quadros.
A ingenuidade resulta em acreditar que este movimento resolve o problema posto. Sabemos que a representação é um retrato da sociedade. Não há como dissociar o comportamento dos políticos das cenas dantescas de barbárie ocorridas na semana passada nos arredores do Maracanã. Se nossa política encontra-se doente, estamos diante do fato de que vivemos em uma sociedade com problemas na mesma medida, que escolhe como seus representantes os seus semelhantes.
Assim, de pouco adianta acusar o governo de corrupto, se diante das câmeras vimos pessoas batendo carteiras, furtando celulares e achacando estrangeiros que se dirigiam para assistir a partida. Estas cenas de vandalismo, diante da violência cotidiana, em pouco tempo cairão no esquecimento, mas precisamos entender que estes votarão em pessoas com as quais guardam identidade.
A saída da crise sempre está na política. Ambos impedimentos presidenciais ocorridos no Brasil levaram em pouco tempo a uma situação de melhora no quadro econômico e político, trazendo estabilidade, previsibilidade e reformas de instituições arcaicas. Em ambos os casos foi encontrada uma solução constitucional, sem rupturas institucionais, respeitando-se a democracia e o Estado de Direito.
As iniciativas que visam pensar além da política são bem intencionadas. Destas podem surgir ideias que contribuam para uma efetiva melhora em nossa sociedade. Claro que não podemos aceitar a corrupção como fato, entretanto, de nada adianta demonizar a política ou os políticos. Estes são o retrato de nossas escolhas e a política o único meio pelo qual pode-se encontrar entendimento para a solução de problemas em uma democracia. Apesar do ímpeto de ruptura que ronda os brasileiros, é melhor manter os pés no chão ao invés de embarcar em aventuras que possam ferir nossa democracia.
*Publicado originalmente no Diário do Poder
Lula no Rio de Janeiro
A passagem de Lula pelo Rio de Janeiro me pôs um gosto amargo na boca. Espetáculo deprimente que me deixou entre a incredulidade e a náusea.
Como traduzir o desgosto que senti por testemunhar que tantos brasileiros nada aprenderam com a história recente? Uma desesperança anestesiante por ver parte de nosso povo compactuar, apoiar e incentivar o crime, a corrupção e o populismo mais barato.
A voz rouca de Lula despejava uma avalanche de informações manipuladas, abusava de baixezas, argumentos tortos, frases de efeito, provocações baratas. A reação de estudantes e professores? Delírio.
O ex-presidente insistia na velha estratégia de incentivar o ódio entre os brasileiros, transferia responsabilidades, apresentava-se como herói e salvador. E a turba respondia como se estivesse embriagada.
Lula ousou falar em honradez e caráter. E toda aquela gente o aplaudiu, numa espécie de histeria coletiva difícil de acreditar. Sua fala foi pontuada por gritos fanáticos, palavrões (de incentivo), gargalhadas e aplausos. Vi naqueles olhos vidrados uma espécie de febre moral, que torna as pessoas incapazes de raciocinar e que lhes compromete o senso crítico. Lula é uma doença. E é difícil de curar.
Mais uma vez o ex-presidente se comparou a uma jararaca. Qualquer ser humano minimamente coerente rejeitaria ser associado a uma cobra peçonhenta, que espalha veneno e morte. Não Lula e seus ouvintes intoxicados, que tudo aceitam. Foi, ainda uma vez, delirantemente louvado.
Lula fingiu que não está diretamente ligado aos crimes que espoliaram a Petrobras e agiu como se não houvesse sido parceiro dos que devastaram o Rio de Janeiro e a UERJ. Eximiu-se de toda responsabilidade pela degradação que tomou o País. E os que o ouviam? Balançavam as bovinas cabeças concordando.
Não se trata mais de política, mas de caráter — ou da falta dele.
Lula, no Rio de Janeiro, foi uma bofetada no rosto de quem ainda tem apreço pela palavra decência.
• Publicado originalmente em http://soniazaghetto.com/?p=6439
Li, no fim-de-semana, o livro do copiloto do voo RG254 que fez pouso sobre a floresta amazônica, em 1989, Voo sem Volta. Depois do episódio e demitido da Varig, o copiloto do miraculoso pouso noturno de um Boeing 737-200 na copa das árvores, preencheu formulário para reentrar na aviação na VASP, recém-privatizada. Gostaram de seu currículo, mas quando souberam que tinha sido copiloto do RG254, o elogiaram como profissional extraordinário, mas alegaram que “a mídia está muito em cima” e ele ficou desempregado. Naquele tempo, já se morria de medo do que nós, jornalistas, publicamos, como investigadores, julgadores e carrascos; hoje, além disso, põe-se o rabo no meio das pernas com medo dessa anônima, pseudônima, rede social. E mais, entre os próprios jornalistas, procura-se ficar dentro da voz corrente, da verdade corrente, da moda, com medo do julgamento dos pares.
Imagina se alguém ousa discordar da voz corrente? De que Jerusalém é, há mais de 3 mil anos, a capital dos hebreus e que Trump apenas transferiu a embaixada para a capital onde está o governo de Israel, e que isso nada muda a situação e acordos entre judeus e palestinos? Imagina se alguém disser que não houve apenas escravidão negra no Brasil, mas que o ministério público certamente enquadraria hoje como escravidão o que foi feito com imigrantes alemães, italianos, poloneses e japoneses no Brasil? Até defender a lei e a polícia virou motivo de censura por parte dos julgadores supremos da mídia e das redes sociais.
O país está sendo invertido, e as pessoas se encolhem passivamente por medo: o professor é o culpado porque o aluno não aprendeu; a sociedade é a culpada por existir bandido; o bandido é celebridade e a polícia(Civil, do Rio) tira selfies com o fora-da-lei; policiais são mortos pelos bandidos e as chamadas “forças vivas da Nação” não dão um pio, não lotam os cemitérios com homenagens; crianças são submetidas a arteiros a pretexto de arte; professora ensina aluno como vestir preservativo com a boca; o racismo está intrínseco em tudo que faz distinção da pessoa pela cor da pele; tentam nos convencer que anormalidades são normais e patrulham quem não concordar. Com isso, o país afunda em uma crise moral em que se consegue enfraquecer a lei, os princípios, a família, o mérito de cada um, graças ao medo imposto pela tirania do politicamente correto.
As pessoas têm medo de serem elas próprias; de contrariarem os modismos, a voz-corrente, o que está sacramentado porque foi publicado na mídia ou é policiado pelas redes sociais. O Big Brother(Irmão mais Velho) de Orwell saiu de 1984 e se mudou nos tempos de agora. O indivíduo está perdendo a identidade, passa a ser apenas um na manada. Não precisa ter o trabalho de apreender, de compreender, para decidir. Já decidiram por ele e basta seguir a manada para não ser pressionado, incomodado, policiado, julgado, sentenciado e executado pela voz corrente, essa força opressora que não tem sequer nome para impedir que seus oprimidos saibam contra quem teriam que se defender.
*Publicado originalmente em http://www.sonoticias.com.br/coluna/ditadura-do-medo
Os meus detratores não acreditam, mas li sem qualquer resultado prévio cada uma das sílabas do livro Paulo Freire: uma história de vida. Considerei as diferentes circunstâncias históricas vividas por Paulo Freire, respeitei muitas de suas cicatrizes emocionais e não ignoro a dificuldade em analisar esse tipo de obra biográfica, pois, como posso colocar em discussão uma experiência amorosa que não foi partilhada comigo intimamente? Mesmo que fique ostensivo, não tenho a presunção de questionar qualquer um dos afetos narrados. A minha (um tanto quanto singela) vontade é a de analisar a estrutura do texto, verificando de que forma a obra descreve o ambiente “freireano”, especificamente, a influência do trabalho do alfabetizador nas mais diversas áreas do saber.
A verdade assusta, caro leitor. Todavia, ainda que o prefácio escrito por Alípio Casali e Vera Barreto diga que “o leitor adentrará numa história envolvente, levado pelas mãos de quem percorreu muitos dos labirintos da vida profissional e pessoal de Freire”, anoto que não é este o maior mérito da obra – que, sim, tem momentos bem acertados, a começar por ser a mais completa biografia sobre a vida de Paulo Freire, escrita por uma testemunha ocular, sua viúva, Ana Maria Araújo Freire.
O fato de ser a mais completa não faz dela uma obra de respaldo técnico, mas, sim, a mais destacada entre as produções “apologéticas” de Freire. É estarrecedor raramente encontrar obras que não sejam cúmplices de Freire – ainda mais em um país como o nosso, em que todo mundo é doutor ou professor. Posso parecer implicante, mas é preciso chamar as coisas pelo nome verdadeiro. Assim, defino a publicação como um fiasco.
Contudo, ela retém outros aspectos meritórios, como as competentes descrições da pobreza vivida por Freire, um bom preâmbulo sobre a sua origem familiar, um conveniente desenvolvimento da conexão intelectual do pedagogo com outros nomes conceituados de nosso país e do mundo (com destaque às páginas 228 e 247), e explica satisfatoriamente como ocorreu a inclusão do petista no mundo escolar. Também merecem elogios o seu bom acervo documental (fotografias e cartas transcritas), a forma como a autora apresenta o cerne cronológico de seu relacionamento com o marido e a sugestão que fomenta – de maneira indireta – de que se faça uma investigação sobre o tratamento que a imprensa brasileira deu a Paulo Freire. Encerrando esse elenco de elogios, cabe uma referência aos pormenores destacados no livro – “Ora, esse é o nome da minha mulher. E é a primeira vez que eu escrevo. São esses pormenores, que são profundamente humanos, que não podem ser esquecidos por um revolucionário. Uma revolução que esquece que um homem ri nervosamente ao escrever o nome de sua mulher é uma revolução frustrada” – e também à sua explanação sobre o método “freireano”, em que esclarece alguns dos aspectos interpretados de maneira desonesta por seus adversários mais desqualificados – “Parece-me no mínimo estranho que livros sobre essa experiência de Angicos enfatizem as ‘40 horas’ no processo de alfabetização como foco do ‘método’, pois Paulo em momento algum fez tal afirmativa ou teve tal pretensão”.
Os apontamentos do parágrafo anterior são irrelevantes quando confrontamos o todo da obra. A começar por seu erro elementar, acólito de todos os capítulos, que é o de ter uma qualidade literária insuficiente, comprometida por um dedicado esforço de sobrepor à força as ideias neles discorridas. Mesmo com o honesto aviso inicial da autora – “Como autora desta biografia eu não desejo e nem quero a imparcialidade da falsa neutralidade” –, causou-me incômodo essa busca por uma cientificidade sem apuro técnico. Reconheço que a contextualização, quando se pensa na relação entre o texto e seu contexto, parece, à primeira vista, uma operação simples, de fácil empreendimento, contudo, princípios como intuição, bom senso e clareza passam apartados do relato. No que se refere à clareza, há um festival de falhas. A primeira é a desorientação temporal, dado que os episódios factuais ficam confusos, anárquicos. Citando casos análogos, a autora ora retoma um assunto que já tinha sido apresentado, alguns sem qualquer relação cíclica, ora comunica uma informação significativa que, no seu relato, já ambientava a descrição. Exemplo: depois de ter descrito a prisão e o exílio de Freire, ela reverbera ad nauseam as mesmas ocorrências, algumas vezes sem qualquer analogia. Outro exemplo vem da página 190, na qual ela expõe, sem uma adequada explicação prévia, a informação de que Paulo Freire tinha um contrato com a UNESCO – ela retomará o assunto posteriormente, porém, quando o fato é apresentado, não há qualquer preocupação cronológica, ele simplesmente aparece da seguinte forma: “Freire: Eu achei que aquele era o tempo do Chile, conversei com meus amigos e coincidiu também com a não renovação do meu contrato com a UNESCO”.
Além disso, há questões estéticas, como a escolha da autora em se apresentar na terceira pessoa em condições como esta: “Sua vida com Nita” – considerando que Nita é o apelido doméstico da autora. Não gosto dessa escolha estilística, em razão de que aduz um caráter artificial à obra. Digo o mesmo com relação às descrições de seus diálogos íntimos, dos quais, como já escrito, não tenho como dizer se são fabricados à obra, mas posso considerá-los apinhados de ênfases que os tornam enfadonhos:
Nita, casamos na terceira idade, quero viver o amor com você, quero viver e aproveitar momentos de tranquilidade com você, quero voltar a escrever, quero cumprir promessas de longa data de aceitar convites fora de São Paulo, mas não posso me furtar de aceitar este convite, se ele realmente vier. É um dever cívico e político que tenho diante de mim mesmo e para com o povo da cidade que me acolheu tão generosamente quando voltei do exílio. Será uma oportunidade importante de testar mais uma vez na prática, desta vez nesta imensa rede pública de ensino que é a cidade de São Paulo, a minha teoria. A minha compreensão de educação.
Nem a sua letra – que era, como a minha, um verdadeiro garrancho – escapou desse palavrório imposto: “Seus escritos são verdadeiros ‘desenhos’ feitos com uma caneta azul, com os destaques com tinta vermelha ou verde no papel branco. São a imagem criada na sua inteligência e sensibilidade, a linguagem criada no seu corpo consciente, no seu corpo inteiro”.
Há também ênfases narrativas em todas as suas ações, mínimas ou máximas, como se elas procedessem de uma fonte messiânica. No exemplo a seguir, veremos um realce verborrágico para algo que não passou de uma obrigação profissional e ética: “Paulo cumpriu cívica e eticamente o seu dever de cidadão: pediu demissão do seu cargo de professor da Unicamp para cumprir a lei”. Para situações como esta, aplico a frase de Albert Camus: “A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto”.
Também fiquei incomodado com o uso das exclamações. Até elas foram objetos para ressaltar generalidades: “Na verdade, o que determinou a recusa de Paulo de passar um semestre no Seminário Teológico foi, prioritariamente, por se sentir pouco competente para ensinar Teologia!”. Estilisticamente, o emprego dessa exclamação demonstra a perplexidade com o fato de que Paulo Freire se viu desprovido de capacidade para exercer a docência em outra área do conhecimento, algo normal, um tanto quanto elogiável, mas que para a autora foi inconcebível, visto que entendia o seu marido como o portador máximo da sabedoria infusa.
Convém dizer que ele foi um homem que não suportava certos tipos de sistemas e pessoas, mas, apesar disso, é apresentado como um arauto do amor, vetor de “uma imensa capacidade de amar”. Repetido excessivas vezes pela autora, esse chavão e os seus sinônimos regulam toda a obra. Destaquei dois exemplos: “Paulo desgastou-se no amor. Por tanto amar. De muito e intensamente amar. Por sua valentia de tanto amar” e “Esses são exemplos de como Paulo amou. Amou as pessoas independentes de sua raça, de seu gênero, de sua religião, de sua idade ou de sua opção ideológica. Amou a natureza”.
O discurso visguento da autora é incômodo. Em vez de palavreados, prefiro a máxima de Camus: “Em filosofia como em política, eu sou, portanto, a favor de qualquer teoria que recuse a inocência ao homem, e a favor de toda prática que o trate como culpado”. Compete dizer que estamos analisando uma obra cujo objeto não é um homem, sequer o falecido marido, mas, antes de tudo, trata-se, sob a ótica da autora, de um profeta: “Paulo, também nisso, foi adivinho, profético”. Ressalto que ao longo da obra encontramos, repetidamente, o uso do termo “profeta”, em virtude de Freire ser tido como um iluminado metafísico, o super-homem exposto pela pena do supracitado Camus: “Na verdade, à força de ser homem, com tanta plenitude e simplicidade, achava-me um pouco super-homem”.
Embasado no livro Paulo Freire: uma história de vida, concluí que o nosso patrono é o homem que a “peste” não adoentou, que indispôs o pecado original. Essa tentativa de salvar sua aparência externa é a desafinada cantiga de todo o alfarrábio.
O anacronismo é outro erro corriqueiro no livro. Afirmações que não se sustentam factualmente são frequentes ao longo do texto, em especial no capítulo cinco, em que a autora se propõe a analisar o contexto brasileiro de 1960: “Apresentarei um pequeno estudo por mim realizado sobre o conflito ideológico brasileiro dos anos 1960”. Porém, sem espantos, ela segue as mesmas repetições monossilábicas da esquerda maniqueísta, repetindo o discurso de que o outro lado hospeda, na totalidade, o mal: “Parte da Igreja Católica, a tradicional, conservadora, que não estava aliada aos interesses dos pobres e dos despossuídos, também se manifestava contra Paulo”.
Uma coisa é fazer a síntese de um período histórico, desse modo obviamente superficial. No entanto, o erro da autora foi definir teses coletivas sobre os agentes complexos de um período, ignorando aspectos prévios ao objeto pretensamente analisado, como por exemplo, ao omitir o caráter popular de 1964. Historiograficamente falando, os erros não param por aí. Afirmações sem qualquer validação dialética são jogadas ao vento: “Juscelino Kubitschek – a [experiência] mais democrática até então conhecida no Brasil”.
Se isso ocorre com os temas que não tangem diretamente a Paulo Freire, seguramente, encontramos a mesma ocorrência com os que constituem a essência de sua presença no nosso mundo das ideias: “Entretanto, não posso deixar de enfatizar que considero fato da maior relevância para a história da educação do Brasil o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), concebido por Paulo Freire quando secretário de educação no Município de São Paulo, em 1989, e para o qual dediquei algumas palavras no Capítulo 11”. A liberdade da autora de achar o que quiser não me afeta, mas, por ossos do ofício, preciso dizer que essa consideração é embasada, muito provavelmente, na sua esmaltada crença de que o Brasil nasceu em 1964. Ainda que Pedro Álvares Cabral estivesse aqui na deposição de João Goulart, essa afirmação estaria equivocada.
De minha parte, como acredito que o Brasil tem mais de cinco séculos, posso expressar, sem qualquer ênfase doutoral, mas com dois apontamentos, que a declaração da autora está equivocada: primeiro, pela falta de investigação histórica e, segundo, por ignorar os testemunhos intelectuais de homens como José de Anchieta, Machado de Assis, Carlos Gomes, Capistrano de Abreu – estes, pedagogos por excelência.
A obra explora vivências de Freire, partilha algumas de suas emoções decorrentes de seu trabalho, explica a sua compreensão de educação e faz uma laudatória defesa de sua visão socialmente opressiva, não só por adotar o caminho da omissão e, com isso, o de não discutir as frases mais violentas que seus livros têm, mas por ratificar passagens insensatas:
Eu hoje continuo pensando que a democracia não significa o desaparecimento absoluto do direito de violência de quem está proibido de sobreviver… Se você me perguntar: entre os dois, para onde você marcha? Eu marcho para a diminuição do gasto humano, das vidas, por exemplo, mas entendo que elas também possam ser gastas, na medida em que você pretende manter a vida. O próprio da preservação da vida leva à perda de algumas vidas, às vezes, o que é doloroso. Agora, o que eu não acredito é na conscientização dos poderosos. Eu acredito na conversão de alguns poderosos, mas não enquanto classe que comanda, não enquanto classe que domina.
A obra tem uma involuntária entonação kafkiana. É paradoxal o encontro – borrifado de naturalidade discursiva – de trechos tão antônimos como a citação anterior e esta: “Paulo Freire: Eu gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida”. Percebam, estamos no meio de um labirinto. De um lado, encontramos um homem que se apresentava como uma espécie de São Francisco do giz de cera, e, no outro extremo, um déspota.
Quem tem familiaridade com os textos de Freire sabe que as apologias dele aos seus massacres favoritos foram comuns, mesmo assim, cabe aqui expor o quanto é disforme esse discurso labiríntico, em que não há qualquer filtro moral em apresentar um homem sem o mínimo de clarividência humana como um sinônimo de amor. Não quero ser histérico, mas é que, simplesmente, não me habituei a ver uma pessoa ter a sua morte justificada por motivos tão pueris, e, naturalmente, refuto qualquer dor infligida a um inocente. Fundamentado na página 319, posso dizer que nem Paulo Freire, muito menos a autora consideraram “equívocos” os trechos perturbadores de obras como a A Pedagogia da Autonomia e A Pedagogia do Oprimido.
Paulo nunca teve, assim, medo de seus “resvalamentos”, enganos ou erros. Considerava-os parte da busca do saber, dos riscos inerentes à incompletude humana, da explicitação da Verdade que, sendo histórica, deve ir sendo atualizada constantemente. Igualmente, não desprezava serem possíveis os equívocos diante das contingências pessoais e sociais de quem, como ele, pensava e escrevia com ousadia. Reconhecer o erro não é um defeito, é uma virtude, para a qual ele esteve sempre atento e aberto, permanecer no erro sabendo de seu erro é que é uma atitude hipócrita, desonesta, antiética. Expõe vaidade, insegurança e prepotência de quem assim age. Por isso ele foi ousado, não teve medo de correr riscos ao criar e afirmar suas ideias.
Em harmonia com a passagem anterior, escrevo que não houve qualquer retratação do casal Freire. Compete dizer que, como muitos brasileiros das décadas de 1960 e 1970, Paulo Freire endossou o então novo sistema político cubano, instaurado no dia 1.º de janeiro de 1959. Enxergavam nele a realização de suas teorias. É possível conter a crítica por essa adesão nesse espaço de tempo; porém, o fato de Paulo Freire, diferentemente de parte considerável daqueles mesmos brasileiros, ter mantido suas convicções até o seu último suspiro – sendo um aluno bem aplicado de Fidel, ignorando as contrariedades da realidade – atesta seu desdém em relação às condições humanas, logo, uma contradição de sua essência pedagógica.
Justiça seja feita, o pedagogo nunca omitiu sua sede de sangue. Como todo tirano, Paulo Freire conhecia a realidade segundo seu vocabulário, e nunca segundo a História. Suas ações foram uma dedicada tomada de posição, legitimada pelas justificativas de que há diferentes tipos de homens e há um meio legítimo à realização humana na História. Parafraseando Camus, ele de novo: na realidade, um homem deve lutar pelas vítimas; mas, se deixa de gostar de todo o resto, de que serve lutar?
Como quis perturbar o jogo pedagógico brasileiro, discuti no meu livro Desconstruindo Paulo Freire que, por sua simbiose marxista, a teoria de Freire é impraticável sem a premissa de corrigir a lei de Deus ou da natureza (como vocês queiram). Nosso ainda patrono não foi o último homem a portar o “bacilo da peste”; contudo, analisando especificamente seu diagnóstico de intelectual traidor – na definição de Julien Benda –, posso dizer que ele foi mais um intelectual “tipicamente do século XX”, ou seja, um homem apaixonado por si, que acreditou que o seu fragmento da realidade era capaz de realinhar os princípios mais complexos da existência humana. Em seu parâmetro moral, os números de mortos dos regimes comunistas de todo o século XX pouco significaram.
Por fim, atesto que os propósitos da autora foram cumpridos: “Tenho certeza de que me empenharei em dizer tudo aquilo o [sic] que eu sei sobre Paulo, que o engrandece; tudo o que lhe faça justiça, tudo o que é verdadeiro sobre ele, e tudo sobre o que meu marido gostava e se orgulhava de ter feito e/ou pensado e dito”. Nesta biografia, fica claro que a obra de Paulo Freire transporta dois extremos: inquietação apocalíptica e esperança messiânica.
Resenha publicada na Revista Amálgama – https://www.revistaamalgama.com.br/11/2017/resenha-biografia-paulo-freire-historia-de-vida-ana-maria-araujo-freire/
• Reproduzido de http://historiaexpressa.com.br/paulo-freire-antonimo-de-amor/