Percival Puggina

09/02/2013
Depois de mim, o dilúvio! - deve ter predito Sarney, antevendo catástrofes, quando soube quem era o escolhido do governo para substituí-lo. Na sexta-feira, dia 1º de fevereiro, foi a vez de a Nação tomar conhecimento. O dilúvio se chamava Renan Calheiros, buscado de nebulosas trevas para sentar-se na poltrona mais alta do Senado. A votação foi tão sigilosa na urna quanto escandalosa e buliçosa nos aplausos. A pergunta - como pode acontecer uma coisa dessas? - me veio de toda parte. Como reelegem alguém que, quando ocupou o cargo, teve que renunciar para não ser cassado? Nas ruas e nos e-mails essa foi a indagação da semana. Ora, senhores, a resposta é simples. Os estrategistas do Palácio do Planalto devem ter escrutinado cuidadosamente a lista dos membros da nossa Câmara Alta. E concluíram que não havia entre eles ninguém pior do que Renan. Quanto pior, melhor. A Lei da Atração aglutina os semelhantes de modo implacável. Qualquer outra razão é conversa fiada. Pelo voto amplamente majoritário de 56 membros, o Senado decidiu conservar-se um poder nanico, levado na guia pelo governo, como um serelepe cãozinho de estimação, coleira de prata e chuquinha na cabeça. A única diferença é que o totó, às vezes, late. Na segunda-feira, os olhos do país se voltaram para o outro lado do edifício - aquele da concha com a borda para cima. Ali seria eleito o segundo homem da República na sucessão presidencial. Assisti pelo canal de tevê da Câmara dos Deputados a todos os discursos da sessão. Foi uma experiência e tanto, ao vivo, para os arregalados olhos da Pátria. Contado não se crê. Havia quatro candidatos. O do governo, o da oposição, e outros dois muito antes pelo contrário. No entanto, os quatro discursaram como se oposição fossem. Disseram que a Casa se omite em temas gravíssimos como pacto federativo. Que permite o uso inescrupuloso das medidas provisórias e o esbulho federal sobre Estados e municípios. Que a reforma institucional não anda. Que as emendas parlamentares, assim como são tratadas, aviltam o Congresso. Que ao se omitir na votação de vetos presidenciais (mais de três mil pendentes de deliberação), o legislativo transfere ao governo a última palavra na elaboração das leis. Que isso equivale a renúncia de prerrogativa. Que a instituição é o coração da democracia e a representação mais legítima do povo em sua pluralidade e totalidade. Que apesar disso - e isso não é pouca coisa! - o poder se põe em cócoras. Que, à medida em que permitiu que o apequenassem, foi perdendo o apreço e, depois, o respeito da sociedade. Os aplausos, pasmem, rugiam em puro êxtase! Ouvindo tudo, o presidente Marco Maia fazia ares de quem nada tinha a ver com aquelas pautas unanimemente coletivas. Mas cada discurso, se bem ouvido, era um libelo contra si. Clamava-se por tudo que ele não fez. Os quatro candidatos se comprometiam, solenes, com passar uma borracha nas linhas omissas e submissas de sua gestão. O próprio candidato de dona Dilma, vitorioso, dissecou, uma a uma, as culpas do legislativo perante seus próprios males. Em português claro: posicionou-se contra, eloquentemente contra, tudo que ele mesmo e o grupo ao qual pertence e que o apoiava vêm fazendo no parlamento, com o parlamento e do parlamento. Para mim, depois do dilúvio, tamanho cinismo foi a gota dágua. Zero Hora, 10/02/2013

Percival Puggina

09/02/2013
O show a que me refiro é esse, diariamente apresentado ao público pela trupe política que, há mais de uma década, atua no grande palco, coxias e camarins de Brasília. A estas alturas o povo já descobriu que o PT oposicionista, vestido de lírios, com cheiro de madressilvas, era encenação. Apresentava-se como um partido formado por almas imaculadas, concebidas sem pecado, incapazes da mais tênue má intenção. Fiquemos, neste texto, com o PT do governo, o que subiu a rampa do Palácio do Planalto em 1º de janeiro de 2003. Seus roteiristas e atores sabiam que o período precedente serviu apenas para marketing da companhia. O povo só descobriu isso depois. Nunca fui fã de FHC. Sempre me pareceu que ele, entre outros defeitos, se preocupava demais com o que o PT dizia. Sempre achei que ele deveria fazer como Lula, que não leva o PT a sério. No entanto, a despeito das duríssimas campanhas movidas pela encenação lulopetista, os governos Itamar e Fernando Henrique implantaram e deram continuidade a importantes políticas. A saber: a) o Plano Real, que a trupe chamava de estelionato eleitoral; b) a Lei de Responsabilidade Fiscal, que chamava de arrocho imposto pelo FMI; c) a abertura da economia brasileira, que chamava de globalização neoliberal; d) o fim do protecionismo à indústria nacional, que chamava de sucateamento do nosso parque produtivo; e) as privatizações, que chamava de venda do nosso patrimônio; f) o cumprimento das obrigações com os credores internacionais, que chamava de pagar a dívida com sangue do povo; g) a geração de superávit fiscal, que chamava de guardar dinheiro para dar ao FMI; h) o Proer, que chamava de dar dinheiro do povo para banqueiro. Aquelas medidas, entre outras, forneceram a estabilidade, a credibilidade e o lastro fiscal para que o petismo, assumindo o poder em tempo de bonança internacional, apresentasse como obra sua o espetáculo do crescimento e distribuísse à plateia, entre outros, os dois grandes pacotes de bondades que garantiram a eleição de Dilma: bolsa família para os pobres e bolsa Louis Vuitton para os ricos. Esses são os fatos, esse o script produzido com a caligrafia da História. No show, na versão apresentada ao público, Lula e sua trupe fizeram a economia brasileira colher aplausos internacionais, decolando como o 14 bis para o voo ao redor da Torre Eiffel. Ah, a mágica dos palcos! Ah, o lufa-lufa das coxias! Poucos se lembraram de perguntar como a economia passou a crescer sem que se alterasse, em nada, a política econômica que o PT condenava em seus antecessores. Sem mudar uma vírgula, sem ter que pensar nem que usar a caneta? E agora? Agora, o cenário internacional piorou. A poupança foi dilapidada e as luzes vermelhas estão acessas nos paineis de todos os economistas. A sirene de alarme soa no teatro. Além do desastre continuado em Saúde, Educação, Segurança Pública e Infraestrutura, o Brasil já apresenta problemas seriíssimos em dez áreas fundamentais para o bom funcionamento das atividades produtivas. Há um problema cambial (com o dólar baixo é mais barato importar do que produzir, mas se o dólar subir a inflação aumentará); as exportações diminuem e a indústria passou a decrescer (-2,7% em 2012). Há um problema fiscal (o governo necessitou de escabrosos artifícios contábeis para encenar um pequeno superávit nas contas de 2012). Há um problema na taxa de investimento da economia (um pouco abaixo dos 18%), muito inferior aos 24% sem os quais o 14-bis levanta voo aqui mas tem que pousar logo ali. Há o problema do PIB, que também precisou passar no camarim e receber maquilagem para chegar a ínfimo 1%. Há o problema da dívida pública, que se aproxima dos dois trilhões de reais. Há o problema da inflação, cuja expansão em 2012 foi confessada à plateia como sendo de 5,84% (um número assustador, principalmente se considerarmos que o índice do primeiro mês deste ano chegou a 0,88%. Há o problema da balança comercial, que apresentou, no ano passado, o pior desempenho em 10 anos. Há o problema da infraestrutura insuficiente. E há, sobretudo, o despreparo dos recursos humanos para atuar nos setores dinâmicos da economia, que os empresários têm considerado como o mais alarmante problema que o país enfrentará nos próximos anos. Foi muito fácil aos governos petistas colher aplausos enquanto gastavam o patrimônio acumulado. Mantiveram-se na ribalta como salvadores da pátria. Fizeram passar por gênios, canastrões como Palocci e Mantega. A exemplo de todos os brasileiros, torço para que o petismo encontre algum farelo de competência em si mesmo e tire o país do fosso para onde o conduz há uma década. Em outras palavras, que pare de fazer teatro e assuma um papel respeitável na história. Este país, senhores, tem 200 milhões de habitantes que não podem ser tomados como plateia de embromadores.

Percival Puggina

01/02/2013
O Senado Federal decidiu. Quer ser aquilo que vem sendo - um poder nanico, reles, de meia pataca. Não creio que exista na história universal algo semelhante ao que passa a constar da biografia de Renan Calheiros: um senador que tendo renunciado à presidência do poder de modo vexatório, por pressão dos colegas, denunciado por conduta indigna, retorna ao posto, cinco anos mais tarde, arrebatando voto e aplauso de setenta por cento de seus pares. Alguém poderá dizer que não existem mais senadores biônicos, que todos estão lá pelo sufrágio de seus concidadãos. É verdade. O pior é que é verdade. A maioria dos eleitores alagoanos, de fato, não leva muito em consideração as virtudes morais e cívicas de seus escolhidos. Lá, o que mais conta numa campanha eleitoral é a conta a mais que se tenha no banco. Um povo pobre, com o pior índice de desenvolvimento humano, a maior taxa de analfabetismo e o terceiro menor PIB per capita do país tem exigências que não vêm do espírito mas do aparelho digestório. Critique-se, então, as elites alagoanas e não o povo por suas péssimas contribuições ao Congresso Nacional. No entanto, bem diferente é o que acontece quando o Senado, ou melhor, a ampla maioria dos senadores referenda a escolha dos desvalidos e pouco exigentes alagoenses e reconduz Renan Calheiros à presidência do Congresso. O homem da boiada mais valiosa do Brasil tornou-se o terceiro na sucessão presidencial. E veja bem o leitor: os senadores que o consagraram com seus votos secretos e que destapadamente o aplaudiram têm IDH altíssimo, invejável PIB per capita, são alfabetizados e ocupam a tribuna com frases que parecem provir de espíritos elevados. Há cinco anos, narizes torcidos, se retiravam do plenário quando Renan aparecia para presidir a sessão. Negavam-lhe cumprimento, mudavam de calçada. O homem não entrava em casa de respeito. Agora o aplaudem. Eu me lembro, eu me lembro. Eu me lembro do PMDB que mobilizou o país nos anos 80 com homens da mais elevada estatura moral. Eu me lembro do PT crescendo sem poder nem obras, como partido político de massas, eleição após eleição, tendo como ferramenta de maior serventia o lança-chamas das suspeitas com que - justa e injustamente - fazia arder a honra de seus adversários. Quanto fingimento! E agora, senhores? Tendes os pés enfiados na lama dos maus negócios, depreciais a democracia que outrora desprezáveis, andais com os piores dentre os piores. Aviltais a política, tendes o parlamento a soldo. Para escândalo da pátria, numa expiação às avessas, jogais no precipício as virtudes que ela civicamente reclama. Renan presidente do Senado serve ao projeto de poder? As ordens do governo serão obedecidas? Então, Renan neles! Quanto pior, quanto menor, quanto mais nanico, quanto mais comercial for o parlamento, melhor para o Palácio do Planalto. Sabem por quê? Porque aquele poder, em tudo que realmente interessa, é igualmente nanico, reles, de meia pataca. Seria incompatível com um legislativo que se desse o respeito. ______________ * Percival Puggina (68) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a Tragédia da Utopia e Pombas e Gaviões.

Percival Puggina

30/01/2013
Do alto de seus vinte anos, os jovens contemplam a vida como quem, do alto de uma montanha, observa, extasiado, o mundo ao seu redor. Horizontes amplos, infinitas trilhas e 360 graus de possibilidades. Nessa idade, eu me lembro muito bem, a vida é eterna e a esperança infinita. Só os avós morrem quando se tem vinte anos. O velório de um jovem é inconcebível ruptura com a ordem natural. Contudo, a morte espreita a juventude com olhos cobiçosos. Enquanto os idosos morrem porque chegou a hora, porque dar adeus à vida terrena é próprio da velhice, os jovens morrem de infinitas maneiras, revelando inesperada vulnerabilidade. Idosos morrem porque não podem alterar o curso da vitalidade que se extingue. Jovens, porém, morrem desnecessária e superfluamente, por motivos que poderiam ser evitados. Essa é a tragédia das tragédias cotidianas. Ir-se assim, sem que nem porquê? Jovens morrem nas ruas, nas estradas, nas brigas entre gangues, na lenta e dolorosa morte das drogas, nas madrugadas onde a violência espreita, nas infames brigas por motivos fúteis. Morrem nas aventuras e travessuras, na terra, na água e no ar. Por isso pais e mães carregam no peito uma incompreendida e permanente aflição. A respiração para quando o telefone toca e para quando o telefone não toca. Paranóicos, nós? Não, não. Simplesmente pais cuidadosos de filhos incautos, que creem haver bebido a imortalidade no cálice da juventude. As grandes catástrofes carregam em seu script uma pedagogia brutal. Há nelas uma lição sobre o que não fazer. Sua dissonante partitura se faz com notas que pedem atenção e reflexão. Desafortunadamente, numa espécie de autodefesa, cerramos os olhos e os ouvidos. E pouco aprendemos com as lições que nos vêm dos sinistros e dos escombros. Por isso escrevo com a esperança de que a crudelíssima pedagogia dos fatos do dia 27 mostrem aos nossos jovens que nós, os pais, não somos coroas paranóicos a vislumbrar perigo ali onde tudo indica morar a felicidade e a alegria. Por isso escrevo confiando em que os jovens não pressuponham que as autoridades fazem sempre, em toda a parte, tudo que lhes compete para garantir a sua segurança. Não! Muitas vezes é o contrário. Por isso escrevo desejando que os jovens, diante de tão sofrida experiência, valorizem o dom maravilhoso da vida como uma dádiva frágil a exigir prudência e atenção. As alegrias dos filhos serão maiores e as aflições dos pais serão menores se, doravante, filhos e pais forem severos fiscais da própria segurança onde quer que estejam. ZERO HORA, 29/01/2013

Percival Puggina

28/01/2013
TRANSPARÊNCIA, APESAR DO VOTO SECRETO Percival Puggina Sim, o voto para eleição da presidência e demais membros das mesas diretoras das duas Casas do Congresso Nacional é secreto. Mas não existe qualquer proibição para que os parlamentares informem a seus eleitores em quem votaram. Como cidadão, eu espero essa resposta dos senadores e deputados eleitos pelo Rio Grande do Sul. Vamos ver quem tem e quem não tem compromisso com a transparência de suas decisões.

Percival Puggina

26/01/2013
O rapaz que fez soar a campainha era magro como a fome. Aproximei-me para ver o que desejava. De perto, descamisado, pele sobre osso, parecia um raio-x. Enquanto exibia um papel com assinaturas e carimbos, disse-me que estava em deslocamento para uma fazenda de recuperação de dependentes químicos. Mas não tenho o dinheiro para a passagem, arrematou com olhar súplice. Pelo sim, pelo não, dei-lhe dez reais e lhe desejei uma boa internação, proveitosa à sua recuperação. Dias depois, reapareceu-me à porta com o mesmo ar de sofrida determinação em buscar a cura. Identifiquei-o pelas costelas. O rapaz curtia tanto suas pedras de crack que fumava até o dinheiro da comida. E, com isso, fumava e descarnava o próprio corpo. O caminho da recuperação só é percorrido quando o viciado percebe a extensão do mal que a droga já lhe causou. A desgraça terá superado, então, o prazer. À falta dessa consciência, o viciado permanece em trânsito, dizendo que vai, mas não vai. Anunciando a busca de uma cura que não deseja ou não tem forças para enfrentar. *** O Congresso Nacional está doente. A instituição, eivada de vícios, mal se apruma. Sua imagem perante a opinião pública é péssima. Lembra o rapaz com cara de raio-x. Membros do Poder, feitas as honrosas exceções, tornaram-se dependentes de algo que parece muito bom - as emendas parlamentares. E a elas sacrificaram sua autonomia. Fumaram, no cachimbo das emendas, muitas convicções, credos e valores. Em torno delas, como acontece com as famílias dos dependentes químicos, estabeleceu-se uma rede de sujeições que envolve prefeituras e comunidades inteiras. Isso está destruindo a política. Explico. Na votação do orçamento da União, é permitido aos congressistas, todo ano, mediante emendas ao projeto do governo, destinar recursos para fins específicos, de interesse das suas comunidades. Um total de R$ 15 milhões em números de 2012. Como se sabe, na prática administrativa brasileira, o orçamento é mera autorização ao governo para gastar. Assim, as emendas parlamentares ao orçamento se tornaram moeda de troca, liberadas ou não pelo governo segundo a relação que os proponentes mantenham com ele. É o governo que abre, se e quando quer, a porta do Tesouro. Pois mesmo sob tal garrote, imposto pelo Palácio do Planalto, esse instrumento de liberação de recursos se tornou tão importante que a expressão emenda parlamentar virou sinônimo de proposta de recursos para fins específicos indicados por congressista. São recursos muito bem-vindos a pequenas prefeituras, instituições comunitárias e serviços de atenção à saúde, principalmente. Viabilizam obras e serviços que, sem elas não seriam prestados. No entanto, a mistura dos dois elementos - a possibilidade de emendar para atender as comunidades e a possibilidade de não ser autorizada a liberação - é letal. O governo atua como traficante e a maioria dos parlamentares se comporta como dependente. Enquanto isso, uns poucos lutam, sem muita esperança, por mudanças de rumo. Bastaria, por exemplo, reduzir o montante das emendas (já que o governo libera, mesmo, apenas uma parte delas) e tornar compulsória a autorização dos recursos por elas destinados. Mas para o governo, centralizador e autoritário, o cabresto sobre o parlamento transformado em dependente é o melhor dos mundos. Nossa democracia já está com as costelas de fora. ZERO HORA, 27/01/2012

Percival Puggina

25/01/2013
CONTO UM CONTO E NÃO AUMENTO NENHUM PONTO Percival Puggina O fato abaixo descrito ocorreu em meados de 2010.Certa tarde, tocou meu telefone e alguém me perguntou se poderia atender o secretário de Segurança Pública, general Edson Goularte. Pouco havíamos falado até então, o secretário e eu. Dele só tinha a imagem de um homem sereno e firme. Surpreendeu-me com um convite: O senhor aceitaria comparecer, como meu convidado, a uma reunião que manterei amanhã com representantes do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana?. Sim, eu aceitaria, claro. Como não? No dia seguinte, de paletó e gravata, como convém, compareci ao gabinete do secretário. Dali, após rápido cafezinho, fomos para a sala onde transcorreria o encontro. Falando pelos visitantes, o presidente do dito Conselho (o mesmo desembargador que ainda hoje dirige o organismo) fez breve relato de suas observações sobre o ocorrido na desocupação de uma fazenda em São Gabriel e reconheceu que as investigações a propósito do assassinato de um invasor avançavam regularmente. Em seguida, apresentou um curioso conjunto de postulações que considerava necessárias para haver mais paz no campo. Muito o gratificaria, por exemplo, que o governo gaúcho criasse uma brigada agrária, uma polícia agrária, uma justiça agrária (ou coisa que o valha) e sei lá mais o que agrário. Propunham, enfim, a criação de um conjunto de órgãos específicos para atuar em conflitos no meio rural (entendendo-se por conflitos aquilo que acontece quando o MST decide invadir alguma coisa, claro). As propostas foram recusadas pelo secretário. O Estado não dispunha de recursos para criar essas novas estruturas e o governo não via razão para fracionar as existentes. Ponto. Vamos adiante. Foi então que se deu o episódio a seguir, que relato em virtude de sua exemplaridade. Um dos membros do grupo visitante, em tom de espanto e sensibilidade arrepiada, disse ter chegado ao seu conhecimento que o comando da operação policial postado diante da área invadida impedira a entrega de alimentos aos invasores. Quando ele se articulava para dar sequência às expressões de sua inconformidade, o secretário interrompeu: Por ordem minha!. Entreolharam-se, incrédulos, os membros do Conselho. E o general prosseguiu: Se a Justiça determinara que eles saíssem, como haveria o Estado de lhes entregar alimentos para que ficassem?. Diante de lógica tão irretorquível, o outro optou por dramatizar ainda mais: Mas havia crianças ali, secretário!. Só não fungou uma lágrima porque ela não lhe veio. E o general, no mesmo tom sereno: A porteira estava fechada quando entraram, mas sempre esteve aberta para saírem. Responsabilize os pais pela situação que descreve. Por que estou contando isso? Porque esse diálogo serve para mostrar que movimentos revolucionários tipo MST, e a mentalidade revolucionária dos que deles se valem, são capazes de apresentar mistificações como teses e sofismas como argumentos, cobrando das autoridades, para aquelas e para estes, atenção e acatamento.

Percival Puggina

25/01/2013
E olha que são os pontos altos das campanhas! Durante os processos eleitorais para os cargos de presidente da República, governador e prefeito, os eleitores mais interessados aguardam com expectativa a realização dos debates que, reunindo todos os candidatos, estabelecem o confronto direto entre eles. Fora dos debates, os candidatos falam sozinhos, com textos e imagens editados por especialistas em comunicação, notadamente cientistas políticos, publicitários e jornalistas. Já nos debates é cada um por si, com a cara e a coragem. O debate é o palco do improviso, do inesperado, da ação e da reação. O objetivo de todo processo eleitoral e da publicidade dos concorrentes a postos executivos é tornar conhecidos os personagens e suas propostas de gestão. Os debates operam na mesma trilha. Com pequenas variações, as cenas se repetem, eleição após eleição, mais ou menos como descreverei a seguir. Os candidatos, dispostos um ao lado do outro, respondem perguntas formuladas pelo mediador e debatem entre si, dois a dois, o que tenha sido dito. Em sucessivos rounds, o apresentador enfia a mão numa urna e saca a pergunta (como antigamente, em tempos saudosos da Educação de qualidade, se sorteavam pontos de dissertação nos exames orais dos colégios): O assunto, agora é ... Infraestrutura!, anuncia e de outra urna saca o nome de quem vai responder. E os temas se sucedem, sempre os mesmos, referindo problemas recorrentes para obter respostas sempre iguais. Todos os leitores já assistiram essa cena incontáveis vezes e certamente perceberam que os candidatos, de fato, dizem mais ou menos a mesma coisa, tendo como ponto de partida a afirmação de que aquele tópico terá prioridade absoluta em seu governo. E acrescenta que é preciso investir mais nisso, com capacidade de gestão, para que a comunidade seja bem atendida. A partir daí o confronto se trava no plano individual, em torno da capacidade do interlocutor para fazer o que diz ou de sua credibilidade para criticar o que critica. Essa é apenas a primeira metade da história. A segunda se desenrola após a eleição. O candidato vitorioso, que prometeu fazer e acontecer, faz e acontece tudo ao contrário do que disse. Suas primeiras, mais urgentes e principais providências, as prioridades absolutas, são criar novos cargos para os parceiros, aumentar os vencimentos dos postos de confiança, meter mais um garrote financeiro nos aposentados, ampliar o orçamento para publicidade, tentar elevar impostos, taxas e tarifas, e por aí vai. Tivesse o candidato anunciado uma só dessas medidas durante a campanha eleitoral, teria encontrado as urnas vazias de votos para si no dia do pleito. Estou cansado de ver isso. Portanto, sugiro aos grandes veículos de comunicação uma alteração nas regras para tornar mais proveitosos os debates do ano que vem. Em vez de perguntar aos candidatos o que eles pretendem fazer, pergunte-se a eles o que não farão em hipótese alguma. Aí sim, com absoluta segurança, saberemos o que eles vão, mesmo, fazer. Um processo eleitoral que convive inconsequentemente com a mentira atenta contra a própria democracia. ______________ * Percival Puggina (68) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a Tragédia da Utopia e Pombas e Gaviões.

Percival Puggina

19/01/2013
Atravessou os últimos sete anos sem esclarecimento cabal a incompatibilidade entre a consagração que o povo brasileiro dedica ao ex-presidente Lula e o que esse mesmo povo diz quando chamado a opinar sobre a moralidade da conduta de terceiros. Alguns analistas consideram, com bastante razão, que o brasileiro médio não consegue conectar o que pensa com o que faz. Simetricamente, as ações e omissões de Lula na vida real não influenciam o juízo que esse mesmo cidadão faz do ex-presidente. Já saiu de cartaz e vai para a amnésia seletiva a operação da Polícia Federal que revelou as relações promíscuas da personagem Rosemary com pessoas envolvidas em corrupção. Os fatos, que teriam tudo para abalar fortemente a imagem de Lula sequer lhe fizeram cócegas. No entanto, um breve resumo do que se tornou público mostra a gravidade das revelações. Vejamos: a) Lula tinha um affaire com Rosemary (até aí nada que mereça interesse, a não ser de alguma vizinha fofoqueira); b) para tornar mais fáceis essas relações, ele criou um cargo federal em São Paulo, designou Rosemary para esse posto e transferiu para nós, pagadores de impostos, o ônus de sua manutenção (aqui os problemas já entram para o campo político e penal, de onde não mais sairão, ainda que sobre eles se estejam empilhando as páginas do tempo); c) com o mesmo intuito de favorecer os encontros entre ambos, Lula inseriu a amiga nas comitivas que o acompanharam em dezenas de roteiros internacionais, com livre acesso aos seus aposentos privados, transformando em motel a aeronave presidencial; d) num arroubo tão sem propósito quanto o de Calígula ao incluir seu amado cavalo Incitatus na lista dos senadores de Roma, Lula fez com que fosse fornecido passaporte diplomático à sua teúda e nossa manteúda, dando-lhe status de servidora do país no cenário internacional; e) obviamente, a condição de servidora pública em missão diplomática, credenciou Rosemary às diárias pagas aos funcionários em tais situações; f) para ocultar todos esses fatos ao conhecimento da matriz, Lula, contrariando rigorosos dispositivos que regem as viagens aéreas, exigia que o nome da filial fosse suprimido das listas de passageiros embarcados na aeronave presidencial. Os leitores destas linhas sabem que tudo isto é fato. Aliás, fato que tão logo divulgado constrangeu a presidente Dilma a extinguir o cargo que a nossa manteúda ocupava no tal escritório de representação do governo federal em São Paulo. E o ex-presidente, a despeito de sua situação de homem público e de suas responsabilidades em relação aos próprios atos, manteve-se quieto como, digamos assim, um guri cujas fraldas precisam ser trocadas. Mesmo assim, o efeito dessas revelações sobre a imagem e o prestígio de Lula é igual a zero. Efeito nenhum. Ora, se forem verdadeiros os sempre altíssimos percentuais de apoio ao ex-presidente, é provável que muitos leitores destas linhas tenham o maior apreço pelo nosso Berlusconi matuto. Mas é inegável que o objeto desse apreço é um perfeito velhaco. ______________ * Percival Puggina (68) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.