Percival Puggina

02/12/2012
Sempre me pareceu que o provimento de vagas no STF por indicação presidencial não era um modelo de todo mau. Mesmo que tal discricionariedade tornasse inevitável a designação de juristas alinhados com as posições ideológicas do governante, o pêndulo dos processos sucessórios, indo ora para cá, ora para lá, ajudaria a estabelecer certo pluralismo dentro da Corte. Era o que eu pensava. Todavia, a reeleição introduzida por FHC e o petismo no poder travaram o pêndulo na posição esquerda. E o pluralismo acabou. Por isso, não consigo entender as manifestações da elite e da militância petista no sentido de que o julgamento do mensalão está politizado. Quem conhece o partido sabe que ele pode ser descuidado em muitas coisas, jamais, porém, quando se trata de prover cargos importantes. Como regra quase geral, as indicações ao Supremo, feitas por Lula e Dilma, seguiram um alinhamento nem sempre partidário, mas política e filosoficamente compatível com as posições do partido. Por isso, o STF, nos últimos anos, definiu diversos temas polêmicos em conformidade com os gostos do petismo. Listo alguns: as posições relativas ao caso de Cesare Battisti, transferindo a decisão a Lula e, depois, determinando que o terrorista fosse posto em liberdade; o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo; a orientação sobre a aplicação de algemas em presos; o beneplácito ao uso de células-tronco embrionárias para pesquisas; a aceitação da constitucionalidade das cotas raciais no ensino superior; a determinação relativa à reserva Raposa Serra do Sol; a liberação da marcha dos maconheiros; o reconhecimento da constitucionalidade da lei do piso do magistério. Nesses casos, e certamente noutros, os juízos emitidos agradaram politicamente o PT e contrariaram valores relevantes para uma parcela da sociedade que pensa diversamente. Tais entendimentos do STF decorrem dos critérios de escolha adotados pelos governos petistas. Lula e Dilma, ao apontarem nomes para as cadeiras vacantes, olham à sua volta. Ou olham para o lado esquerdo. Numa democracia - a menos que seja esquizofrênica - o partido do governo fala como o governo fala. Pois eis que, recentemente, o PT reagiu às condenações proferidas na Ação Penal 470 através de um manifesto, no que foi seguido por dura entrevista em que o presidente do partido declarou politizados os votos dados pelos ministros. Ora, de todas as decisões polêmicas do STF cujos votos acompanhei, essa é a única que não está politizada! O que o partido e o governo não entenderam é algo muito simples: uma coisa é os ministros indicados votarem como o PT gostaria matérias do tipo a que me referi antes. Afinal, os politizados ministros nomeados e o politizado partido nomeante sopram a mesma partitura em flautas diferentes. Outra é pretender que numa ação criminal os ministros decidam contra a razão, a lei e as evidências dos autos para satisfazerem as conveniências do partido. Seria gravíssimo! Tão grave que tal suspeita recai sobre apenas dois. Mas um deles ao menos conhece Direito. O outro nem isso. Jamais deveria estar naquela Corte e, em hipótese alguma, poderia participar do julgamento da Ação Penal 470. Só ele, no país, não sabe o quanto está impedido de julgar pessoas de cuja intimidade privou e para as quais trabalhou. Graças à toga que Lula lhe deu, mais cedo ou mais tarde, a roda das cadeiras o fará presidente do Supremo. Meu Deus! Especial para ZERO HORA 02/12/2012

Percival Puggina

01/12/2012
Quand il me prend dans ses bras Il me parle tout bas, Je vois la vie en rose. Bem me diziam que São Paulo é um país amigo do Brasil. O fato teve confirmação quando se soube que o chefe de Estado brasileiro mantém lá uma embaixada, localizada no mais concorrido point do capitalismo tupiniquim - a esquina da Rua Augusta com a Avenida Paulista. Ali, Lula presidente instalou a amiga Rosemary Nóvoa de Noronha, dita Rose, como embaixadora plenipotenciária para assuntos nacionais e internacionais. A natureza das atividades a que ela se dedicava chegou recentemente às manchetes. E mais uma vez arrancou silêncios do ex-presidente, que parece totalmente desinteressado do assunto. Duas pessoas falaram por ele. Falou por ele o sempre obsequioso ministro Gilberto Carvalho, que disse não ver motivos para os fatos trazerem qualquer perturbação ou constrangimento ao amigo Lula. E falou por ele, também, a muda e sorridente submissão de dona Marisa Letícia. Não vou tratar aqui desse submundo em que tantos amigos de Lula são assíduos frequentadores. As docas e bares do porto de Marselha, nos anos 50, eram habitadas por marinheiros, vagabundos e prostitutas mais exigentes em suas transações. Não é disso que este texto se ocupa. Quero falar sobre o tal Escritório de Representação da Presidência da República em São Paulo e sobre como se confiam a mãos tão incompetentes quanto sujas setores decisivos ao funcionamento do país. Para que serve esta estrutura administrativa existente nos escalões presidenciais onde, há sete anos, Rose ia levando sua vie en rose? A Polícia Federal entrou lá por uma porta e a ordem de Dilma chegou fulminante: fica extinto o cargo que ela ocupava. Se podia ser extinto, por que existia? Doravante, segundo teria disposto a presidente, todas as determinações relacionadas com aquela repartição federal serão originadas de Brasília. Resta a pergunta: o que há num escritório sem chefe, além de telefonista, office boy e motoboy? O caso é uma evidência de o quanto se joga fora o dinheiro do contribuinte. Cargos são criados por necessidade de acomodar afetos pessoais e cargos são extintos por necessidade de resolver desconfortos causados pelos ocupantes. Com a mesma mão que assinou a extinção do cargo da dona Rose, Dilma despachou para o Congresso projeto de lei criando outros 90 junto à presidência da República. A história das atividades que agora estão sob exame da Polícia Federal no escritório paulista mostra, por outro lado, os parcos critérios com que são providos postos significativos como são as chefias das agências reguladoras de atividades concedidas. Nem mesmo a complicada ficha funcional de um dos irmãos Vieira foi motivo suficiente para frear a determinação de vê-lo titulando o posto que pretendia. E tudo se passava ante os olhos da mãe do PAC, sob o nariz da mãe do PAC e junto aos ouvidos da mãe do PAC. Por quê? Porque o poder confiado a mãos irresponsáveis não vale pelo bem que produz mas pela festa que proporciona e porque é muito difícil afastar-se de más companhias generosas. ______________ * Percival Puggina (67) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.

Percival Puggina

26/11/2012
ELA SABIA PARA QUEM LIGAVA Percival Puggina Quando a Polícia Federal iniciou a operação de busca em sua residência, a chefe do gabinete do Escritório de Representação da Presidência da República em São Paulo, deu de mão no telefone e ligou para quem? Para um advogado? Para a presidente Dilma? Para o ministro da Justiça, o companheiro Cardozo? Não. Ligou para o Zé (como diria Roberto Jefferson). O fato talvez seja surpreendente para quem não conhece a lógica mafiosa de certos grupos políticos que jamais deixam ao desamparo os membros da famiglia. Ela tinha certeza de que poderia contar com o pronto apoio do seu Corleone. No entanto, neste momento, Dirceu está com seu campo de ação limitado e respondeu que nada poderia fazer. O telefonema em questão vale por um depoimento sobre o poder de José Dirceu dentro do PT e sobre como, apesar de tudo, os quadros petistas ainda o veem.

Percival Puggina

24/11/2012
No meu tempo de infância, em Santana do Livramento, o passatempo preferido das crianças do sexo masculino, superando de longe o futebol em número de adeptos, era brincar de mocinho e bandido. Tratava-se de uma reprodução das perseguições e tiroteios típicos do gênero de filme que mais animava as platéias nas sessões dominicais - o bom e velho bangue-bangue. O resultado era sempre previsível. O sorteado para o papel de bandido enfrentava todos os outros e acabava preso. As notícias das últimas semanas sobre a exasperação da violência em São Paulo me fez pensar naqueles folguedos infantis. Ao fim e ao cabo, também no Brasil real, todo bandido que não morre antes, um belo dia acaba preso. Mas na manhã seguinte se apresenta de novo para brincar. Prenderam e soltaram. Vamos deixar essa frase assim, na base do sujeito oculto porque, de hábito, os responsáveis pelo soltar jogam a culpa uns sobre os outros. Em novembro de 2010, quando o Rio de Janeiro iniciou a ocupação dos morros com apoio das Forças Armadas, escrevi um artigo - O Rio espana o morro - afirmando que a bandidagem, como o pó submetido à ação do espanador, saía dali, mas iria pousar em outro lugar. Li, recentemente, no Estadão, que o Primeiro Comando da Capital (o PCC paulista) está abrigando criminosos do Rio, ligados ao Comando Vermelho (o CV). Segundo a matéria, essa interação das duas organizações começou, de fato, com a ocupação do Morro do Alemão e com a subsequente construção de quatro Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no local. O fato me leva a algumas certezas. Primeira, fracassará irremediavelmente toda política de segurança pública que não incluir a ampliação dos contingentes policiais e a construção de estabelecimentos prisionais em números suficientes para atender a demanda. Segunda, o mero controle de território e a simples pressão sobre tal ou qual atividade criminosa apenas fazem com que os agentes do crime migrem para outro local ou para outro ramo. Terceira, será infrutífera toda legislação que desconhecer o fato de que a cadeia é o lugar onde os bandidos devem estar. Carência absoluta de penitenciárias é o sonho sonhado por todo delinquente. A insegurança de que padecemos tem muito a ver com a ideologia da luta de classes e com o ressentimento da esquerda que nos governa desde 1995 (FHC cabe aí dentro, sim senhor) em relação à atividade policial e de segurança pública. Para essa mentalidade, polícia civil, polícia militar, repressão ao crime é tudo aparelho direitista contra os oprimidos. Duas décadas dessa mentalidade nos levaram à situação atual. Não há presídios, os quadros policiais estão esvaziados, as leis penais e processuais têm mais furo do que queijo suíço, e o crime compensa. Sim, o crime, no Brasil, virou um negócio de escasso risco e enorme rentabilidade. E, pior de tudo, sob uma proteção legal e institucional que se impõe à vontade dos próprios agentes da lei. ______________ * Percival Puggina (67) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.

Percival Puggina

19/11/2012
QUANTO MAIOR O PODER... Percival Puggina A iniciativa do Ministério Público Federal de São Paulo de pedir à Justiça Federal a retirada da expressão Deus seja louvado das cédulas de reais impõe uma reflexão sobre o poder. Quanto maior ele for, quanto mais discricionário for, maior a prudência exigida no seu exercício. O Ministério Público, pela Constituição de 1988, ganhou uma amplitude que só não se pode chamar infinita porque tudo é finito na humanidade. Mas nada escapa às suas prerrogativas na defesa do interesse público. Do traçado das rodovias às etiquetas dos supermercados. Poder com tal amplitude reclama prudência proporcional. Tão vasta gama de atribuições exige senso de prioridade. Não pode, quem por elas responde, confundir a defesa do interesse público com a afirmação de suas opiniões pessoais. Nem ocupar-se com quizílias quando tanto tema de relevo para o interesse público clama por atenção. É exatamente esse o caso.

Percival Puggina

18/11/2012

 

Raramente leio páginas policiais. Evito fazê-lo para não acrescentar doses extras de horror a meus próprios calafrios. Vivemos com medo, aferrolhados. Em nossas conversas habituais não faltam relatos de pavor e sangue. São apontamentos nos diários do cárcere, do cárcere em que nos recolhemos, inseguros e acossados. Há um pânico instalado no país e ele não distingue classe social nem cor da pele, campo e cidade. Como consequência, quem de nós, quando um bandido é morto no exercício de suas atividades, não exclama intimamente - "Um a menos!"?

É sobre essa síndrome que escrevo. Ela tem agentes causadores bem determinados. Não encontro pessoas com medo de serem vítimas de grandes crimes novelescos, por vingança, ciúme, herança ou dívida. O que encontro são pessoas com medo da criminalidade hoje considerada trivial, corriqueira, cotidiana. As pessoas temem ser espancadas ou mortas nas calçadas por motivo fútil. Percebêmo-nos sujeitos a isso. Volta e meia alguém, ao nosso redor, foi parar na mala do carro ou experimentou o metal frio do revólver encostado na cabeça. Quem sai vivo de tais enrascadas ajoelha-se gratificado e lava o passeio com lágrimas de ira e júbilo. Um ano depois, os mais extremados rememoram a data, reúnem a família e sopram velinha. Festejam aniversário. São sobreviventes da criminalidade cotidiana.

O que descrevo tem tudo a ver com luta de classes, com pobres e ricos, com oprimidos e opressores. Mas não pelo motivo que lhe indicam certos analistas. É a bolorenta leitura marxista, conflituosa, da realidade social, sem a qual não conseguem pensar, que produz essa inoperância do Estado e suas consequências. É ela que responde pelo abandono do sistema carcerário e pelo desapreço às instituições policiais. É ela que redige a generosa benignidade dos códigos e os favores concedidos por leis penais que desarmam os juízes bons e compõem o arsenal dos maus. É uma leitura da realidade que minimiza aquilo que apavora o cidadão e aterroriza a sociedade. É uma leitura da realidade que legisla e atua na contramão do que todos temos o direito de exigir. Criminaliza a vítima e absolve o réu.

O bandido que nos sobressalta certamente já foi preso. O desmanche para onde vai nosso automóvel roubado durante o assalto já foi fechado várias vezes. Mas alguém no aparelho estatal não fez e não faz o que lhe corresponde. O legislador brasileiro dispõe sobre matéria penal como se vivesse numa realidade suíça. Inúmeros magistrados desvelam-se em zelos para com os bandidos. Elevam desnecessariamente os riscos a que está exposta a sociedade sob sua jurisdição. E não faltam formadores de opinião para pedir penas brandas exatamente para esse tipo de crime cotidiano, covarde e violento, de consequências sempre imprevisíveis. Em tal contexto, conceder indultos generalizados e soltar presos a rodo é uma bofetada oficial nas vítimas.

Progressão automática de regime, na realidade brasileira? Quanta irresponsabilidade! Existe coisa mais escancarada do que o tal semiaberto? Prisão domiciliar? Estão brincando. "Mas faltam presídios!", alegam os protetores dos apenados. A situação dos presídios brasileiros extrai hipérboles do ministro da Justiça. Mas há dez anos o grupo do ministro governa, dá as cartas e joga de mão no país. Quem sabe Sua Excelência espera que os contribuintes, à conta própria, saiam por aí a construir presídios? Lidam irresponsavelmente com coisa seriíssima, senhores! Da rendição do Estado ante a criminalidade sobrevirão a anomia e o caos.

Este meu artigo, infelizmente profético, foi publicado no jornal Zero Hora em 18/11/2012.


 

Percival Puggina

18/11/2012
Raramente leio páginas policiais. Evito fazê-lo para não acrescentar doses extras de horror a meus próprios calafrios. Vivemos com medo, aferrolhados. Em nossas conversas habituais não faltam relatos de pavor e sangue. São apontamentos nos diários do cárcere, do cárcere em que nos recolhemos, inseguros e acossados. Há um pânico instalado no país e ele não distingue classe social nem cor da pele, campo e cidade. Como consequência, quem de nós, quando um bandido é morto no exercício de suas atividades, não exclama intimamente - Um a menos!? É sobre essa síndrome que escrevo. Ela tem agentes causadores bem determinados. Não encontro pessoas com medo de serem vítimas de grandes crimes novelescos, por vingança, ciúme, herança ou dívida. O que encontro são pessoas com medo da criminalidade hoje considerada trivial, corriqueira, cotidiana. As pessoas temem ser espancadas ou mortas nas calçadas por motivo fútil. Percebêmo-nos sujeitos a isso. Volta e meia alguém, ao nosso redor, foi parar na mala do carro ou experimentou o metal frio do revólver encostado na cabeça. Quem sai vivo de tais enrascadas ajoelha-se gratificado e lava o passeio com lágrimas de ira e júbilo. Um ano depois, os mais extremados rememoram a data, reúnem a família e sopram velinha. Festejam aniversário. São sobreviventes da criminalidade cotidiana. O que descrevo tem tudo a ver com luta de classes, com pobres e ricos, com oprimidos e opressores. Mas não pelo motivo que lhe indicam certos analistas. É a bolorenta leitura marxista, conflituosa, da realidade social, sem a qual não conseguem pensar, que produz essa inoperância do Estado e suas consequências. É ela que responde pelo abandono do sistema carcerário e pelo desapreço às instituições policiais. É ela que redige a generosa benignidade dos códigos e os favores concedidos por leis penais que desarmam os juízes bons e compõem o arsenal dos maus. É uma leitura da realidade que minimiza aquilo que apavora o cidadão e aterroriza a sociedade. É uma leitura da realidade que legisla e atua na contramão do que todos temos o direito de exigir. Criminaliza a vítima e absolve o réu. O bandido que nos sobressalta certamente já foi preso. O desmanche para onde vai nosso automóvel roubado durante o assalto já foi fechado várias vezes. Mas alguém no aparelho estatal não fez e não faz o que lhe corresponde. O legislador brasileiro dispõe sobre matéria penal como se vivesse numa realidade suíça. Inúmeros magistrados desvelam-se em zelos para com os bandidos. Elevam desnecessariamente os riscos a que está exposta a sociedade sob sua jurisdição. E não faltam formadores de opinião para pedir penas brandas exatamente para esse tipo de crime cotidiano, covarde e violento, de consequências sempre imprevisíveis. Em tal contexto, conceder indultos generalizados e soltar presos a rodo é uma bofetada oficial nas vítimas. Progressão automática de regime, na realidade brasileira? Quanta irresponsabilidade! Existe coisa mais escancarada do que o tal semiaberto? Prisão domiciliar? Estão brincando. Mas faltam presídios!, alegam os protetores dos apenados. A situação dos presídios brasileiros extrai hipérboles do ministro da Justiça. Mas há dez anos o grupo do ministro governa, dá as cartas e joga de mão no país. Quem sabe Sua Excelência espera que os contribuintes, à conta própria, saiam por aí a construir presídios? Lidam irresponsavelmente com coisa seriíssima, senhores! Da rendição do Estado ante a criminalidade sobrevirão a anomia e o caos. Zero Hora, 18/11/2012

Percival Puggina

18/11/2012
Gore Vidal afirmou certa vez que ter estilo é saber quem você é, o que você quer e escrever isso lixando-se para a repercussão (not giving a damn, nas palavras dele). Sem qualquer pretensão de reivindicar méritos de estilo, o que vou escrever é totalmente contrário ao senso comum e, por isso, se enquadra na última parte dessa afirmação. Simplesmente sinto que devo escrever. E pronto. Sou um defensor dos parlamentos (embora não de muitos parlamentares) e vejo com maus olhos campanhas sistemáticas voltadas para a desmoralização dessa instituição e para a demonização de seus membros. No Brasil, quando se fala em corrupção, os holofotes voltam-se para os plenários, notadamente para as duas conchas contrapostas do Congresso Nacional. Esquecem-se tais análises de alguns parâmetros indispensáveis. A Câmara dos Deputados (513 membros) e o Senado (81 membros), juntos, reservaram para si, no PLOA 2012, R$ 5,4 bilhões. Enquanto isso, o programa de Gestão e Manutenção da Presidência da República, abocanha R$ 4,7 bilhões. Parece mentira, mas é verdade (as informações estão disponíveis aqui: http://www8a.senado.gov.br/dwweb/abreDoc.html?docId=202054). São inegáveis os desvios de conduta e os excessos em ambas as casas do Congresso. Mas convenhamos, com a União manejando em 2013 um orçamento de R$ 2,3 trilhões, não será nos R$ 6 bilhões do Congresso Nacional que se esvairão os recursos públicos. É uma questão de proporção, coisa que a gente começa a aprender com a tabuada do 10. Tenho dito, insistentemente, que os problemas do custo Brasil, do mau gerenciamento e das grandes farras com os dinheiro do contribuinte estão centrados no outro lado da praça. E o motivo é simples. Ali estão as grandes verbas, os grandes contratos, as grandes compras. Perto do poder de fogo do Palácio do Planalto, o Congresso Nacional é indigente. Pois bem, existem sistemas autoritários e totalitários com parlamentos. Mas não existem democracias sem eles. Parlamentos são conditio sine qua non de qualquer regime democrático. Por isso, na minha labuta de escrever, quanto mais atacam os legislativos, mais me empenho em valorizar tais instituições. O desprestígio dos parlamentos tem inúmeras causas e os maus congressistas, eleitos por maus eleitores, são os principais responsáveis pela maior parte delas porque poderiam mudar isso e não o fazem. Felizmente, o julgamento da Ação Penal 470 pelo STF acaba de trazer o problema para o centro do quadro de observação. O que o processo está mostrando é uma fração, um farelo da realidade, mas já serve como exemplo da capacidade corruptora que o governo usa para adquirir base parlamentar. Dirá o leitor: O mensalão felizmente acabou. Saiba, porém, que remanescem outros mecanismos para compra de apoio no Congresso Nacional, sendo as emendas parlamentares o mais nocivo. É algo tão daninho que a expressão emenda parlamentar, que designa várias formas de atuação de deputados e senadores no processo legislativo, corrompeu seu sentido e virou sinônimo da prerrogativa, individual, de destinar verbas no orçamento da União, até um determinado limite. A quota individual, quinhão privatizado do erário, é a mesma para todos, mas o governo a libera como prêmio por bom comportamento. Isso é compra de apoio! Emendar o orçamento é atribuição importante dos parlamentos, mas transformar a emenda em fração de livre destinação, em pouco se distingue do que ocorreu no episódio do mensalão. Muito, mas muito mesmo, do que tem sido dito por ministros do STF no julgamento da AP 470, se aplica, sem tirar nem pôr, às emendas parlamentares. ______________ * Percival Puggina (67) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.

Percival Puggina

11/11/2012
Quando o governador Tarso Genro anunciou que iria a Cuba com uma caravana de empresários para comercializar produtos gaúchos, fiquei pensando: como essas exportações irão perfurar o terrível bloqueio americano? Viajarão de submarino? Chegarão, furtivamente, alta madrugada, a bordo de pequenos e discretos botes de borracha, vindas de Key West, na direção inversa à dos cubanos evadidos? Ironias à parte, nem Tarso Genro, viu-se agora, acredita no terrível bloqueio americano. Esse clichê só é válido quando se torna necessário explicar a pobreza da ilha após mais de meio século de comunismo e revolução, ao longo dos quais só se faz, por lá, o que os Castro mandam. Mesmo assim, Tarso foi a Cuba, com numerosa comitiva, vender produtos do Rio Grande do Sul ao sonolento mercado daquele país. Minha mais recente viagem a Cuba ocorreu em novembro do ano passado. Mantenho-me atualizado sobre a realidade cubana. Recebo, assiduamente, informações por meio de amigos que, contornando as dificuldades impostas pelo regime, se dedicam ao chamado periodismo independente. Periodismo independente, para os efeitos ocidentais, é apenas jornalismo. Em Cuba é diferente. Lá, jornalistas, reconhecidos como tal, são meros redatores da imprensa oficial. Portanto, tenho informações atualizadas. E sei que o país não dispõe de dinheiro para coisa alguma. A famosa libreta - caderneta de racionamento criada sob mal-estar nacional, em 1963 - foi perdendo conteúdo e qualidade. Hoje, quando o governo cogita em extingui-la, ocorrem protestos populares... Sem a libreta, muitos cubanos não sobreviveriam. O país é muito pobre. A recente abertura para empreendimentos totalmente privados restringe-se a pequenos serviços, sem efeito perceptível na morna cadência da vida econômica de um país em que a quase totalidade da força de trabalho atua no serviço público. Na verdade, o que o governo fez foi legalizar o velho mercado negro de serviços e os cuentapropistas (trabalhadores por conta própria que há alguns anos vinham atuando no país). Nesse contexto de pobreza geral, Cuba - entenda-se, como tal, o governo cubano - não poderia comprar e pagar por nada que lhe pretendêssemos vender. Não é à toa que os Estados Unidos, só lhe vende à vista. Darei um exemplo. O vidro dianteiro do taxi que me levou do hotel ao aeroporto estava totalmente trincado. Creio que se mantinha no local por docilidade das forças da natureza ao regime. Perguntei ao motorista por que não o substituíam. Disse-me ele: Porque no hay ni plata ni reemplazo, ou seja, não há dinheiro, nem peças de reposição. Note-se que era um taxi para turistas, propriedade do governo. Segundo o motorista, o vidro estava assim havia quase um ano e quando ele referia a situação ao chefe da repartição onde deixava o carro, este lhe respondia que podia recolher o veículo e abandoná-lo lá. O modo de exportar para Cuba encontrado por Tarso Genro foi fazer o Badesul buscar R$ 40 milhões no BNDES e, com esse montante, financiar as vendas gaúchas. É um negócio de risco, que jamais seria assumido por um banco privado, diante da má fama de Cuba no mercado internacional. É o que me asseguram pessoas conhecedoras desse tipo de operação. Com Cuba? Nem pensar. De fato, a situação da economia cubana é pior do que a da Grécia. Os títulos da dívida cubana junto ao Clube de Paris chegam a US$ 30 bilhões e estão em situação de calote ou atrasados (wharton.universia.net). O país exporta três vezes menos do que importa (indexmundi), o que mostra a inoperância do seu, digamos assim, parque produtivo. E o Badesul vai entrar nessa roubada porque a ideologia do governador gaúcho tem razões que a razão desconhece. ______________ * Percival Puggina (67) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.