Percival Puggina

18/12/2014

"Ahora, llevamos adelante, pese a las dificultades, la actualización de nuestro modelo económico para construir un socialismo próspero e sostenible". Raúl Castro, em discurso ao povo cubano no dia 17 de dezembro de 2014.


 Num dia de outubro do ano de 2012 - já contei isso antes por aqui - enquanto caminhava ao longo do Malecón habanero, eu ia observando o incessante bater das ondas contra os molhes que protegem a cidade. Retornara a Havana, passados 10 anos da minha visita anterior, para conhecer as mudanças que se dizia, então, estarem ocorrendo no país. Gastara os dias anteriores perguntando às pessoas sobre essas mudanças. "Câmbios? No hay cambios!", asseguravam-me aqueles com quem falava. De fato, tudo parecia apenas dez anos mais velho, dez anos mais deteriorado, exceto pela novidade dos telefones celulares. "Mas um dia o mar vencerá o muro", eu ia pensando enquanto contemplava a baía de Havana.

 Lendo os jornais de hoje, 18 de dezembro de 2014, me pergunto: será este o momento? Será agora que Cuba tomará a decisão certa, o caminho da democracia sonhado por tantos cubanos, exauridos de sua liberdade e criatividade por um governo comunista, de feitio leninista? A frase com que abro este comentário, feito em cima dos acontecimentos, deixa margem para muitas dúvidas. O ditador Raúl Castro pretende instalar-se sobre uma contradição - "socialismo próspero". Ora, isso não existe. O que pode existir é uma ditadura com capitalismo, tipo chinesa.

 Diante disso, vê-se que Obama acaba de prestar um desserviço ao povo cubano. Se era para fazer acordo, que o acordo previsse a abertura política. Ao isolar das negociações o povo da ilha, Obama reproduz a conduta brasileira, que socorre o ditador em suas necessidades materiais ajustando o estribo para que ele possa continuar cavalgando a nação cubana. Huber Matos, um dos principais comandantes da revolução, no livro "Cómo llegó la noche", relata uma conversa que teve com Fidel, indagando-o sobre quando iriam cumprir a promessa de permitir aos trabalhadores a participação no resultado das empresas. Na resposta, o Líder Máximo afirmou que isso seria impossível porque quando o trabalhador adquire independência econômica logo vai atrás da independência política.

Se tal entendimento os manteve no poder durante 54 anos, não vejo razão para que tenham mudado de opinião. A longa experiência certifica a correção da tese. Ademais, o modelo político cubano, segundo a própria definição de Fidel Castro, é marxista-leninista, ou seja, tem total desapreço à democracia e às liberdades que normalmente a acompanham. Se a questão política interna de Cuba não faz parte da pauta negociada entre Raúl e Obama com as bênçãos de Sua Santidade o Papa Francisco, então esqueceram o principal. Cuba não é um negócio da família Castro & Castro Cia. Ltda, com a qual Obama faz acertos, mas uma nação insular onde, há mais de meio século, 11 milhões de pessoas trabalham como escravas do Estado. Um dia, contudo, o mar vencerá o muro.

* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

17/12/2014

Interessado na história do período que vai de 1964 a 1985, ouvi falar e busquei assistir o documentário Hércules 56. Trata-se de um longa, do diretor Sílvio Da-Rin, composto por entrevistas, gravações de época e uma espécie de coletiva desenrolada numa mesa de bar. Os participantes da coletiva são remanescentes dos sequestradores do embaixador norte-americano em 1969 e do grupo despachado para o México, por exigência deles, a bordo da aeronave que dá nome ao filme. Entre outros, depõem, com a perspectiva que lhes permitiu um afastamento que já chega a quatro décadas, Franklin Martins, Vladimir Palmeira, José Dirceu, Flávio Tavares, Daniel Aarão Reis Filho e Paulo de Tarso Venceslau.

 Eu assistira, antes, ao “O que é isso companheiro?”. Nele, Fernando Gabeira assume participação importante no sequestro. Em Hércules 56 Gabeira some. Por quê? O diretor, após a estreia, em 2006, explicou que Gabeira fora “soldado raso” na operação e jamais teria participado não houvessem os líderes escolhido para refúgio a casa onde ele morava. Praticamente mandou Gabeira procurar a própria turma e não inventar lorota. Só encontro uma explicação: o então deputado Fernando Gabeira se transferira do PT para o PV e perdera a simpatia dos companheiros.

Do conjunto da obra (Hércules 56 é um bom filme), concluí que, hoje, a maior parte dos protagonistas considera o seqüestro e a luta armada como equívocos que estimularam o endurecimento e a continuidade do regime. Escolheram esse caminho por descrerem do jogo democrático. Eram militantes, dispostos a morrer e a matar pela revolução que julgavam estar fazendo, e sobre cuja existência real, pelo que pude presumir, não têm mais tanta certeza.

 Foi exatamente aí que nasceu a observação registrada no título deste artigo: do que escapamos! Imagine, leitor, se, em vez de senhores de meia idade, reflexivos mas orgulhosos dos seus ímpetos juvenis como se apresentam no filme, eles tivessem sido vitoriosos, e chegassem ao poder, como desejavam, na esteira do que realizara Fidel partindo de Sierra Maestra. O que teriam implantado no Brasil? Totalitarismo marxista-leninista, expropriações, tribunais revolucionários e execução de conservadores, liberais, burgueses, latifundiários, empresários, direitistas. E mais, partido único e total absorção da comunicação social pelo Estado. Era o que na época se chamava “democracia popular”, regime adotado pelas referências mundiais do comunismo.

 Não estarei indo longe demais? Não. Assista ao filme e ouvirá Vladimir Palmeira elogiar o chefe do sequestro, Virgílio Gomes da Silva, por lhes ter dito: “Se houver algum problema que, por desobediência a uma ordem minha ou vacilação, coloque em risco a operação, não pensem que vou esperar um tribunal revolucionário. Eu executo na hora”. Quem trata assim os companheiros, como procederá com os adversários? Noutra passagem, os entrevistados respondem à seguinte questão: caso as exigências não fossem atendidas pelo governo, o embaixador seria executado? Foi unânime a confirmação. Palmeira ilustra que essa mesma pergunta lhe fora feita no interrogatório posterior à sua prisão. Resposta: “Teria executado, sim; eu cumpro ordens”. E os cavalheiros, ex-revolucionários, em volta da mesa do bar, riram com ele. Franklin Martins riu mais alto do que todos.

Hoje, personagens daqueles anos acantonaram-se no poder e estamos sob severo risco de andar na mesma direção, por outros meios e com outros modos.

* O filme "Hércules 56" está disponível em boas locadoras e, dividido em nove partes, pode ser assistido no YouTube, buscado pelo título.

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* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

15/12/2014

Por que as instituições nada fazem contra a matriz de corrupção instalada no coração do poder? Mistério. Por que Bolsonaro suscita maior comoção e interesse entre os formadores de opinião do que as denúncias da geóloga Venina Velosa da Fonseca? Mistério. Por que o relatório de uma Comissão Nacional da Verdade que sepulta verdades e ressuscita mentiras ganha espaço como se credibilidade tivesse, malgrado afronte a própria lei que a criou? Mistério. Por que, para tantas pessoas, o mal está na mera existência da revista Veja e não nos crimes que ela denuncia? Mistério. Por que é tão solenemente ignorada a existência do Foro de São Paulo, como bem sinaliza Olavo de Carvalho? Mistério. Por que não causou estranheza em parte alguma que a pessoa escolhida para ocupar a função de tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, seja, justamente, o ex-dirigente de uma cooperativa habitacional que lesou centenas de associados? Não está ele sendo processado por estelionato, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica? Comanda as finanças do PT e só a Veja acha estranho? Mistério. Por que o partido que governa a República perdeu todo interesse em desvendar os enigmas em torno da morte de Celso Daniel? Mistério, mistério, mistério. Para onde quer que se olhe, lá está a densa bruma de onde quase se espera o surgimento de dragões, unicórnios e manticoras.

Pois eis que, de repente, fica-se sabendo que a presidente da República foi a Quito participar de uma reunião da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e que nessa reunião foram tomadas diversas decisões envolvendo supostos interesses comuns aos países do bloco. E com que parcerias! Pois bem, as relações internacionais do Brasil, de uns tempos para cá, seguem estratégias incomuns e nos têm custado muito caro. Não seria preciso mais do que isso para despertar o interesse da mídia nacional. Mas não despertou. Por quê? Mistério. E não me consta que alguém tenha gasto meia hora, seja na mídia, seja no Congresso Nacional, para investigar o que significará, na vida prática, algo tão enigmático (mormente entre nações sob tais governos) quanto a Unidade Técnica de Coordenação Eleitoral que passará a funcionar na Unasul. Por quê? Mistério.

Tampouco suscitou interesse a decisão de criar uma Escola Sul-Americana de Defesa, que até sigla já tem: Esude. E para que servirá a Esude? Para constituir "un centro de altos estudios del Consejo de Defensa Suramericano de articulación de las iniciativas nacionales de los Estados Miembros, formación y capacitación de civiles y militares en materia de defensa y seguridad regional del nivel político-estratégico". Será que só eu fiquei preocupado com isso? Será que só eu fui buscar informações e me deparei com este vídeo? Terei sido o único a descobrir que, conforme ali se explica, a tal Esude tem por objetivo formar civis e militares afastados das "lições caducas com que se formavam nossos militares", as quais seriam "quase cópias dos manuais gringos, norte-americanos"? O que dizem sobre tudo isso nossos comandantes militares? Mistério.

Definitivamente, de duas uma: ou estou ficando incapaz de compreender o Brasil, suas instituições e seu povo, ou o Brasil está se tornando outra coisa qualquer.

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* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

13/12/2014

Ora vejam só. Na última quarta-feira, a senhora Graça Foster propôs à presidente Dilma a substituição de toda a diretoria da Petrobras. Nessa novela, o enredo é conhecido. Muitos personagens, também. O mais novo é a geóloga Venina Velosa da Fonseca, cujo relato contém cenas de gangsterismo. Quando denunciou o pouco que sabia do muito que acontecia, encostaram-lhe uma pistola na cabeça, ameaçaram seus filhos e a expatriaram.

 O Brasil real já sabe. A Petrobras foi aparelhada pelo Comando Vermelho, pelos sócios do Clube da Estrela, que governa e faz girar a roda da história em nosso país há mais de uma década. Mas o Brasil do faz de conta, do me engana que eu gosto, funciona de outro modo. Acredite, foi necessário que a presidente da Petrobras fosse ao Palácio do Planalto propor a Dilma a demissão da diretoria da empresa!

 Causa surpresa a conduta da presidente? É bom lembrar que no dia 27 de outubro, dia seguinte à eleição, já lá vai mês e meio, Dilma declarou ao Jornal Nacional, referindo-se à corrupção na Petrobras: "Não vou deixar pedra sobre pedra!". Pois deixou. Deixou cada pedrinha no seu lugar. Você sabe como são essas coisas no jogo de xadrez - às vezes, uma pedra mal mexida faz desandar a partida.

Ao longo desse período, cada dia reservou ao noticiário nacional algo capaz de estremecer a escala Richter de quem tenha a mínima sensibilidade política e moral. E a que se dedicou a presidente Dilma? Manteve-se cumprindo o dever: protegendo a linha de fundo de seu tabuleiro, lá onde estão o rei e a rainha, cujas cabeças perdem preço tão rapidamente quanto se depreciam as ações da Petrobras. Ah, as ações da Petrobras! Saíram da lista das blue chips e foram para os artigos, incisos e alíneas do Código Penal, as ações da outrora reverenciada Petrobras!

 O momento pertence às instituições da República. Ou elas cumprem seu papel ou o povo voltará às ruas para proclamar sua revolta e sua vergonha. Não será apenas vergonha ante o que esse governo, seu partido e seus associados fizeram com o país e com a imagem do país. Será uma revolta contra as instituições e sua condescendência criminosa. O povo já percebeu que não pode contar mais com outras veneráveis instituições que, historicamente, funcionavam como faróis e como vigilantes dos grandes valores nacionais - entre outras a CNBB, a OAB, a ABI. Hoje elas se omitem, ou concedem apoio explícito ao Comando Vermelho, aos sócios do Clube da Estrela.

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* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

13/12/2014

O Brasil ainda não chegou nesse ponto, mas o dirigente político de qualquer país que se aprofunde em tal ideologia  fala para um povo que enfrenta escassez de tudo, que sai de uma fila para entrar noutra. São países onde se tabelam preços de produtos que não existem, onde a inflação dispara e de onde, quem pode sair, foge correndo. O discurso oficial, porém, proclama vitórias populares, sucessos indiscerníveis, luminosos dias do porvir e ataca ferozmente inimigos externos que estão se lixando para ele. Assim fazem em Cuba, assim fazia Chávez, assim tem sequência o processo venezuelano com Maduro. Para aí vai, célere, a Argentina. Nunca lhes faltam idiotas defensores do regime, dentro e fora do país, para aplaudir seus discursos.

 Em 16 de outubro, o jornalista Clovis Rossi publicou na Folha de São Paulo uma coluna com o título "Aécio assusta Unasul". No texto, o jornalista comenta o pânico que o crescimento das intenções de voto do candidato oposicionista brasileiro estava causando, naquele momento, entre os governantes da região.

Sem conseguir dizer bem o que pensava a respeito ele concluiu o texto afirmando que "com todos os déficits democráticos claramente expostos na Venezuela chavista, o governo Maduro é legítimo. E é do interesse brasileiro que saia da crise, até para poder pagar as dívidas mantidas com as empresas brasileiras". Em síntese, Aécio teria nenhum interesse em aproximação com Bolívia, Venezuela, Cuba, Argentina e Equador, que são os países mais alinhados com o Foro de São Paulo e com a União das Nações Sul-Americanas. E isso seria muito ruim para seus governos.

Desde este meu minúsculo mas vigilante observatório, vejo que Aécio tinha razão: os parceiros de Dilma afundam numa ideologia que é a própria usina da miséria. Quanto maior a crise, maior a dose de autoritarismo e intervencionismo que só serve para ampliar as dificuldades e aumentar aquilo que Clóvis Rossi chamou, eufemisticamente, de "déficit democrático". Definitivamente, a Venezuela se degenera, a Argentina vai no mesmo caminho e ambos começam a ficar, cada vez mais, parecidos com a venerada ilha dos Castro. Enquanto isso, o governo brasileiro tenta, por todos os modos e maus modos, disfarçar seus próprios problemas com estratégias de avestruz. Como em Cuba, o nexo entre o ufanismo oficial e a realidade nacional mostra que o delírio psicótico é o máximo denominador comum dos governos comunistas. No entanto, e aqui está o importante no texto de Rossi relido após o encontro da Unasul, todos os países do così detto "bolivarianismo" espicham para o Brasil olhos esperançosos, como se o tamanho da nossa economia fosse sinônimo de riqueza disponível e socializável.

Infelizmente, é nessa direção que apontam, de fato, os movimentos da política externa petista. Na última reunião da Unasul, Dilma foi recebida e falou como talvez falasse Bill Gates numa reunião com estagiários. Não admira que o real se desvalorize, que as verdinhas abandonem o país, que a inflação fure o teto e o PIB fure o piso.

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* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.


 

Percival Puggina

12/12/2014

 Quando a nação fica sabendo que os muitos escândalos da Petrobras são apenas alguns dentre muitos outros, nascidos no seio fértil do governo recém reeleito, a Comissão da Verdade chega, célere, em seu socorro. Veio a lume, ontem, o relatório final. Sai da pauta a corrupção financeira e entra na pauta a corrupção da história.

 Imagine, leitor, que durante o governo Sarney, fosse deliberada a criação de uma Comissão da Verdade com o objetivo de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura de Getúlio Vargas, "a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional". Foram muitas e graves as violações. E a nação, decorridos, então, 40 anos da ditadura de Getúlio, se agitava indormida e irreconciliada ante a tenebrosa lembrança dos abusos cometidos por Felinto Müller e seus asseclas.

Avancemos, com nossas suposições. Para compor a Comissão e desenvolver o histórico trabalho, o governo Sarney nomearia sete membros, escolhidos a dedo entre os remanescentes parceiros mais leais de Carlos Lacerda. Tudo gente da velha e combativa UDN.

Uma tal comissão, não fosse apenas fruto de imaginação, concebida para compor o raciocínio que exponho neste texto, seria um disparate, um destampatório, motivo de gargalhadas, porque existem bibliotecas inteiras, centenas de trabalhos acadêmicos a respeito da Era Vargas e da ditadura getulista. Ninguém precisaria então, e não precisa ainda agora, de uma comissão para descrever o período e, menos ainda, de uma versão oficial dos fatos de então, narrados por seguidores de seu maior adversário.

Acho que não preciso desenhar para ser entendido. A atual Comissão Nacional da Verdade era tão necessária quanto seria a CNV sobre Vargas ao tempo de Sarney. Não é assim que se faz historiografia. Versões oficiais são próprias de regime totalitários. Nas democracias, abrem-se os arquivos para que os pesquisadores pesquisem e para que os historiadores escrevam, emitindo suas opiniões em conformidade com o conhecimento adquirido e à luz dos respectivos critérios. E já há centenas de trabalhos feitos. A nação custeou uma comissão que não deveria ser criada, cujo objetivo foi o de transformar comunistas terroristas, sequestradores, guerrilheiros, assaltantes, homicidas em "heróis do povo brasileiro", lutadores por uma democracia que odiavam com o furor ideológico. Com o mesmo furor ideológico que motivou a luta armada dos comunistas, no mundo inteiro, naquele período da Guerra Fria, infelizmente muito quente por estas bandas. Passado meio século, muitos dos reverenciados pela CNV estão no poder e persistem nos mesmos afetos ideológicos e na mesma aversão à democracia representativa. Seu apego aos direitos humanos acabam quando visitam Cuba ou Caracas, ou quando elogiam a tirania comunista na Coreia do Norte. Quanto ao mais, tortura é crime odioso, terrorismo é crime odioso, comunismo e ditaduras são regimes odiosos e a anistia, ampla, geral e irrestrita, foi pedida pelos que hoje a querem revogar.

O trabalho dessa Comissão é leviano, violador da lei que a criou, mal intencionado, revanchista. E é o equivalente, em colarinho branco e bem remunerado, do popular linchamento.

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* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

10/12/2014

Em sua página no Facebook, a senhora Jandira Feghali, deputada federal do PCdoB, divulgou nota a respeito dos "crimes de ódio" que estariam acontecendo contra os comunistas em nosso país. Fala em injúria, difamação e, claro, em fascismo.

 Ora, ora, dona Jandira. Cem milhões de cadáveres produzidos ao longo de um século por seguidores de seus ideais lhe parecem insuficientes para justificar rejeição moral às suas ideias e práticas políticas? Pois, então, lhe acrescento mais algumas. Em nossas escolas, militantes dessas mesmas ideias doutrinam nossas crianças. Sucessivas gestões do ministério da Educação e de órgãos estaduais e municipais de Educação divulgam material didático com igual conteúdo. Órgãos oficiais dedicados à "cultura" nacional raramente cuidam de outra coisa ou destinam recursos para quem diverge da sua ideologia. Em concursos públicos, muitas respostas "certas" correspondem a seu modo de ver as coisas. O dinheiro do contribuinte brasileiro é desviado pelos seus compadrios oficiais para financiar governos alinhados com o seu partido na América Latina e na África.

 Na base do governo e fora dele, seu partido e associados dedicam-se a combater liberais e conservadores, como regra, aliás, oponentes muito pouco ativos, quase inertes. Pois até essa oposição é merecedora de violentos ataques, sendo apresentados como inimigos a serem esmagados, causadores insensíveis dos males nacionais, parceiros dos ricos e inimigos dos pobres. Tamanha tolice é afirmada contra toda evidência, pois nunca, na história do Brasil, um governo distribuiu tanto dinheiro aos ricos, ajudou tanto os negocistas em suas negociatas e proporcionou tantos ganhos lícitos e ilícitos aos economicamente mais poderosos.

 As ideias que a senhora e seus parceiros defendem (malgrado as imensas contradições morais entre a teoria e a prática), já acabaram com a valiosa autonomia da OAB, já destruíram a credibilidade da CNBB, já derrubaram a capacidade pastoral de muitos púlpitos e pregadores, já afastaram da fé cristã muitos religiosos e religiosas, já afundaram no marxismo, no laicismo e no anticlericalismo muitas escolas e universidades católicas, já desacreditaram muitos tribunais.

 Quando seu partido e seus associados estavam na oposição, faziam uso constante da violência através das invasões de propriedades rurais e urbanas, de estabelecimentos públicos, de plenários de parlamentos. Quando o povo ordeiro saiu às ruas nas jornadas do ano passado, seu partido e seus associados extraíram dos subterrâneos a fúria destruidora dos black blocs. E esvaziaram as manifestações.

 E a senhora, seu partido e associados têm a audácia - ou a ignorância explícita - de nos chamar fascistas? "Fascistas" liberais? "Fascistas" conservadores? "Fascistas" defensores da democracia constitucional e representativa? Ora, vá estudar!

Como podemos ser fascistas, nós, que queremos liberdade e pluralismo? Nós que nos manifestamos por meios pacíficos, que não incendiamos ônibus, não jogamos pedras, não quebramos vidraças? Nós que queremos um Estado pequeno, que respeite o espaço da vida privada, os indivíduos, seus negócios e suas famílias? Nós, que combatemos o comunismo por dever moral, no plano das ideias e das instituições que a senhora, seu partido e associados ocuparam? Nós que somos caracterizados por aquela tolerância inerte que, de hábito, é própria da "ação" política de liberais e conservadores? E agora ficamos sabendo que, mesmo sob tão benignas condições, basta que se conte a história de sua ideologia, basta que se aponte as más consequências dela, bem atuais em Cuba e na Venezuela, basta que se mencione o Foro de São Paulo, basta que se critique a corrupção que se multiplica no país, basta que se comente as descaradas deliberações da Unasul, para a senhora nos ameaçar com a polícia? Agora, me diga quem é fascista.

Examine o comportamento da esquerda contrariada, do seu partido e associados, por exemplo, numa assembleia estudantil, numa eleição de DCE, na invasão de alguma universidade, numa reunião do Congresso Nacional quando alguém grita "Vai para Cuba!". E me diga quem é fascista. O comunismo, deputada, é irmão gêmeo do fascismo. Aprenderam muito um com o outro. E ambos causam igual repugnância a liberais e conservadores! No fundo, no fundo, eu acho que a senhora, seu partido e associados, pelas afinidades que têm com as práticas do fascismo, preferiam viver sem oposição, ou com uma oposição que lhes fizesse cafuné.


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* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

07/12/2014

 

Retirar do mundo dos fatos o estouro do orçamento da União foi uma proeza como poucas. "Cadê o déficit que estava aqui?", perguntava, zelosa, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). "O gato comeu", respondeu o Congresso, em sessão comandada por Renan Calheiros. A estatura moral desse senhor foi decisiva para seu retorno ao cargo no ano passado. E a longa jornada dos dias 3 e 4 de dezembro justificou plenamente a escolha do situacionismo. Renan cumpre contratos, seja para vender boiadas em Alagoas, seja para conduzi-las em Brasília. E tudo foi feito às claras, com as galerias vazias. Pudor exagerado. Até para entrar em cinema pornô basta ter mais de 18 anos.

 Assisti pela tevê boa parte da sessão. Havia algo incomum nos discursos governistas. Raramente, os defensores do PLN 36 exaltaram os méritos do projeto. Foi como se reconhecessem que não os tinha. Sua aprovação era uma necessidade prática e urgente. Tratava-se de impedir que a oposição, fazendo uso daquela coisa perversamente neoliberal que é a LRF, acusasse a presidente de crime de responsabilidade. Esse era o resumo da pauta.

 O deputado líder do governo, periodicamente, subia à tribuna e repetia o mesmo discurso ufanista. Fazia lembrar a personagem de Lewis Carrol no país das maravilhas. Falava como se fosse líder de um outro partido, de um outro governo, num outro país. Mas sobre os méritos do projeto, quase nada. Entende-se. Exigir do governo o cumprimento das leis é desatino próprio de fascistas e golpistas. O senador Lindbergh Farias dizia a mesma coisa. Quem hoje nos governa, quando na oposição, promove furiosas campanhas tipo fora este, fora aquele, fora todo mundo. Mas ai de quem, por maiores que sejam os escândalos, as promova contra eles.

O Planalto preparara tudo direitinho. "Extra, extra! Governo pode liberar R$ 10 bilhões!". Na sexta-feira, 28 de novembro, o anúncio atravessara os corredores do Congresso em edição extraordinária do Diário Oficial da União. Estava bem claro no texto do decreto sobre o qual se debruçavam os figurões e as figurinhas das duas Casas: a liberação, que incluía as sacrossantas emendas parlamentares e os constitucionais repasses aos Estados e municípios, dependeria da aprovação do PLN 36. Coerência em estado puro. Num governo onde é difícil encontrar área que não tenha virado Zona de Livre Comércio, não se haverá de estranhar que apoio parlamentar e quorum sejam negociados com dinheiro dos impostos que pagamos. A política, no Brasil, virou um exemplo para a população. Para a população carcerária, quero dizer.
 

Zero Hora, 07/12/2014

Percival Puggina

05/12/2014

Há uma dignidade inerente ao perdão pedido com o coração contrito pelo erro que se cometeu. Quem o formula cresce perante o próximo e perante Deus. Um pouco exótico, mas igualmente válido, é o perdão que se pede em nome de outros. Nesse caso, porém, convém ter certezas que me parecem ausentes quanto aos problemas do povoamento e da evangelização do Brasil:

a) certeza de não estarmos acusando, julgando e condenando antepassados a quem não concedemos direito de defesa;
b) certeza, portanto, de que as culpas que hoje apontamos estavam presentes na consciência daqueles a quem as atribuímos;
c) certeza de não estarmos colocando tal gesto a serviço de interesses ideológicos e políticos pelos quais igualmente, mais tarde, alguém terá que pedir perdão por nós; e
d) certeza de não estarmos incorrendo em anacronismo, ou seja, avaliando a conduta dos povoadores de quinhentos anos atrás, com critérios atuais.

Sobre o fenômeno do anacronismo vale lembrar que pouco mais de 200 anos nos separam do clássico "Dei delliti e dele pene" com o qual Cesare Beccaria apontou a desproporção entre delitos e penas no sistema judicial de seu tempo. Foi por influência desse livro que a Revolução Francesa introduziu a guilhotina, mais misericordiosa para corte de cabeças do que a machadada. E tudo era coisa não apenas corriqueira mas se constituía em espetáculo. “On s’amuse” (a gente se diverte) dizia sobre tais eventos um personagem de Racine. Diante desses fatos, quase recentes, podemos reprovar os portugueses por não haverem trazido a bordo antropólogos, sociólogos, ambientalistas, epidemiologistas, e não estarem perfeitamente a par do “politicamente correto”?

Esses idiotas que exigem reparações cobram dívidas históricas de cartão de crédito clonado. O documento é falso e os devedores que apontam no cartório da história são inocentes. Setenta por cento da população deste país tem sangue de branco, índio e negro. Portanto, vai ser muito difícil suscitar, aqui, um ódio racial do tipo que a esquerda norte-americana cultua. Mesmo assim, existem pastorais da CNBB que se dedicam a isso, permanentemente. Creio que deve ter arrefecido muito o apreço ao batismo e à salvação, para que a evangelização de um continente ande suscitando tanto remorso.

Se for para pedir perdão, por que não o fazerem também, como lembrava Sandra Cavalcanti em artigo publicado há alguns anos, os médicos que substituíram os curandeiros, as famílias novas que não aceitaram mais matar velhos e crianças aleijadas, e os cozinheiros europeus que retiraram do cardápio ameríndio os assados de bispos e desafetos?

Não parece adequado subordinar-se o ato penitencial a uma ótica reducionista que, ao explicar todos os fenômenos históricos como conflitos entre oprimidos e opressores, se põe a serviço de uma ideologia pagã. Anchieta, perdão.

* Percival Puggina (69), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, integrante do grupo Pensar+.