Percival Puggina

08/07/2019

 

 Atribui-se a Martin Luther King o mérito de haver resumido o sentimento de tantos ao afirmar que o silêncio dos bons o preocupava mais do que o grito dos maus. Não obstante, criei-me ouvindo que o bem não faz alarde e isso me parecia, de fato, adequado à bondade, à virtude, à caridade.

Foi muito a contragosto, então, que, enquanto as décadas se sucediam, fui vendo o mal, travestido de bem e fazendo toda a gritaria possível, ampliar seus espaços, avançar e tomar posições indicativas de consistente hegemonia. Há 34 anos, quando comecei a escrever e a gritar contra isso, éramos poucos, dispersos e mal vistos.

O grito dos maus fez o Brasil afundar em complexo de inferioridade. Ensinaram-se alunos a desprezar nossa história e raízes e a afirmar que nossos males correspondem a culpas alheias. Ao mesmo tempo, foram sendo destruídos os valores morais, incentivado um conceito libertino de liberdade e promovida uma decadência estética. Bandidos foram mitificados, os crimes tolerados e a criminalidade expandida. Agigantou-se o Estado e o valor do indivíduo foi reduzido a dimensões liliputianas. Propagou-se tanta mentira e pós-verdade que os fatos ficaram irreconhecíveis. Tudo gritado e difundido como essência do Bem.

O silêncio dos bons aplainava a estrada e fornecia água ao longo do caminho para a gritaria dos maus que avançavam. Não me diga o leitor destas linhas que pode ser o contrário. Não me diga que o bem para uns pode ser o mal para outros e vice-versa, pois tal é o relativismo moral, árvore má bem conhecida por seus péssimos frutos. Para vê-los basta abrir a janela.

Foram as redes sociais que deram potência sonora à voz dos bons. É verdade que elas democratizaram o direito de dizer besteira, de mentir e de promover o mal, que sempre foi privilégio de alguns grandes veículos de comunicação. Mas democratizaram, também, a busca e difusão da verdade, da sabedoria, dos valores. Lembro-me que inúmeras vezes ouvi de cientistas políticos advertências no sentido de que, nas redes sociais, “falávamos para nós mesmos” porque elas agregavam as pessoas por afinidades. Não deveríamos, portanto, nos deixar iludir em meio às concordâncias que colhíamos àquilo que escrevíamos ou falávamos. Bendita agregação por afinidade! Foi dela que, mesmo no ambiente caótico e babélico das redes sociais, a voz dos bons começou a mudar o Brasil.

Resumindo: as redes sociais agregam por afinidade; agregam bons e agregam maus. Sendo aqueles muito mais numerosos do que estes, as redes se revelaram  preciosas à democracia, tanto por reduzirem a influência de certos veículos e formadores de opinião quanto por, dando voz à maioria, estarem alterando peças no tabuleiro da política. Martin Luther King, se vivo fosse, estaria muito satisfeito.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

04/07/2019

 

 No conflito entre a curiosidade que o acontecimento suscitava e o mal estar que as cenas provocavam, o corpo venceu a mente. Desliguei o televisor. Até hoje não consegui entender a “credibilidade” que possam ter minúsculas transcrições de conversas, sem gravidade alguma, trocadas ao longo dos anos, com assimétrica ocultação do inteiro conjunto do material que certamente serviria, mais robustamente, como prova da tese oposta.

Enfim, não deu para suportar aquela sequência de raciocínios rasos, grosserias e calúnias, postos em forma de perguntas, produzidas com o simples intuito de ofender o ministro.

O desrespeito e a clara intenção de usar o ato como instrumento de vingança, na tentativa de flagelar o ex-juiz com o azorrague da maledicência, me incomodavam tanto quanto saber que os incidentes transcorriam na “douta” Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Se os critérios morais de um questionamento são esses, o que restará para os atos legislativos e decisões de Estado? Que respeito terão, pelo interesse público, aqueles senhores e aquelas senhoras tão facilmente combustíveis à chama de sentimentos vis? Não surpreende o resultado de tantas deliberações.

Com o devido respeito às instituições republicanas, Sérgio Moro submeteu-se ao mais rigoroso teste de paciência, tolerância e força de caráter. Foi exemplar. Sofreu na carne durante sete horas aquilo que não suportei assistir. Aos que o agrediam, nenhum limite era exigido; nele, um simples sorriso era objeto de severas reprimendas! Por fim, havendo a agressividade do plenário alcançado o nível mais baixo, retirou-se da sala. E foi chamado de “fujão”! Ora, os fujões compunham boa parte do plenário. Fujões dos braços da justiça, agarrados ao privilégio de foro e, com as unhas, à porta que supõem estarem abrindo para promover o fim da aterradora Lava Jato. Essas mesmas vozes falaram praticamente sem contestação durante décadas, promoveram a destruição de valores, construíram duradoura hegemonia política e semearam antagonismos na sociedade. Alinharam, perfilaram e mobilizaram tropas de choque. No entanto, desde que perderam o poder, têm reclamado do que chamam “discurso de ódio”. Mistério dos espelhos que se quebraram.

A audiência de Sérgio Moro expôs o tipo de cisão política que se torna inevitável em presença de partidos e parlamentares que, num dia aprovam projeto de lei que penaliza o abuso de poder e, no outro, usam do poder conferido pelo mandato parlamentar para praticar os abusos que todos pudemos assistir.

Desde a entrada em cena dos vazamentos que estão sendo distribuídos por Glenn Greenwald teve início uma tentativa de reconstruir a imagem do ex-presidente Lula. É como se uma mão lavasse a outra e um crime lavasse outro. Como se não houvesse outras condenações, outros processos criminais em outros foros e outras evidências, sempre associadas à mesma relação impura com poderosas empresas.

Os espelhos se espatifaram de vez.
 

Percival Puggina

02/07/2019

 A expressão guerra cultural suscita, em muitas pessoas, um sentimento de aversão por evocar perda das conexões entre grupos sociais, esfacelamento da ordem, fim da política, e, não raro, violência.

 O leitor destas linhas talvez se surpreenda com o que vou dizer, mas guerra cultural tem, mesmo, tudo a ver com isso. Essa guerra começou a ser empreendida há muitos anos, desde que os marxistas ocidentais começaram a ler Gramsci e Luckács. Durante décadas, foi uma guerra travada unilateralmente entre a esquerda e a cultura do Ocidente cristão. O Brasil foi e continua sendo um dos cenários dessa guerra.

Aqui, nas últimas décadas, bem antes, mesmo, da redemocratização, ela se travou entre um polo ativo e um polo passivo. Um polo combatente e um polo combatido. Um lado que gradualmente conquistava “território” e outro que gradualmente o cedia sem resistência. O polo combatente agia com plena consciência de seus objetivos, dispunha de intensa produção e reprodução bibliográfica e tinha cartilha a seguir. Conhecia as “cabeças de praia” (para usar a linguagem militar) de onde deveria partir para a conquista do território. E as tomou sem resistência, naquela que talvez tenha sido a mais assimétrica de todas as guerras. Assim, avançou sobre o sistema de ensino, notadamente nas graduações em humanidades, expandindo-se daí para os níveis médio e fundamental. Neste território, o resultado foi avassalador, tornando a universidade, e, em especial, a universidade pública, uma espécie de “cosa nostra”, impenetrável por qualquer possível divergência. Partindo de outras cabeças de praia, dominou os meios de comunicação, hegemonizou a área da produção cultural, invadiu os seminários e o clero católico, conseguindo controlar a CNBB, mediante uma teologia travestida de “libertadora” – a Teologia da Libertação, conhecida como TL.
A partir daí, o resto veio por natural acréscimo, naquela fatalidade que, com palavras de Marx, preside as transformações da natureza. Veio o controle dos sindicatos, a miríade de movimentos sociais e suas violências, as primeiras vitórias eleitorais nos fronts locais e, por fim, a hegemonia do poder político associado ao poder financeiro pelos mecanismos que se tornaram conhecidos de todos.

Quando o projeto vazou – e vazou com energia das forças da Natureza quando longamente contidas –, sobreveio a derrota política e o fim dessa hegemonia. Dessa hegemonia, repiso. Mas se a derrota abalou a força política, não reduziu o ímpeto da guerra cultural. A diferença no ambiente dessa guerra foi o surgimento das redes sociais para aglutinar e dar voz ao polo até então passivo, que despertou para a necessidade de se defender nos espaços em que ela era travada.

A guerra cultural, agora, tem dois lados em confronto. Vem daí a sensação de que a sociedade está dividida e muitos que a levavam de roldão, agora reclamam da resistência que passam a encontrar. Era impossível que ela não emergisse quando a sociedade começou a contabilizar suas vítimas civis. A guerra cultural fez vítimas em proporções demográficas. Deixou milhões de crianças mentalmente mutiladas. Crianças que se tornaram adultos tolhidos em suas potencialidades. Mutilados em sua fé. Professores ocupados com formar quadros e não indivíduos livres; preocupados com hegemonia e não com harmonia; dedicados a um projeto que prescinde do livre pensar e que nunca, em parte alguma, conviveu bem com o contraditório. Uma guerra que precisa produzir mutilados.


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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

26/06/2019

 Vários meios de comunicação evidenciam engajamento num trabalho que visa a alterar a percepção e afetar o discernimento do leitor. No Estadão do dia 24/06, um artigo bem típico, indaga: “Há uma luz promissora no horizonte? Claro que não. Sejamos realistas porque o contexto atual é kafkiano. Não se trata de uma fábrica de crises, mas de uma usina de desvarios”... E, mais adiante conclui que nada de bom pode acontecer, restando-nos a longa espera pelo “fim da atual administração”. Mas como? Aos seis meses de mandato? “Usina de desvarios” ante um governo consciente de suas responsabilidades, após sucessivas gestões de Lula e Dilma?

Claro que há um estresse muito grande e incômodo na política nacional. Não esqueçamos, porém, que ele entrou na cena pelas mãos, pés e voz do Partido dos Trabalhadores, seguido de seus anexos e movimentos sociais, numa prática política centrada na desqualificação moral dos adversários. Sou testemunha viva e atenta disso. Durante décadas, em mais de uma centena de debates, denunciei tal conduta, justificada como parte da “luta política”. Em nome dela, aliás, a agressividade não ficava apenas na retórica. Incluía invasão de propriedades, destruição de lavouras e de estações experimentais, bloqueio de transporte, queima de pneus, leniência e justificação ideológica da criminalidade e, ainda, esse gravíssimo subproduto do aparelhamento da Educação brasileira: professores militantes levando alunos a rejeitar a atividade empresarial de seus pais, criando terríveis animosidades nas relações familiares. Isso é violência, que o digam as vítimas.

Pois há, então, quem sinta saudade disso, da corrupção, das “articulações” de Lula e das “habilidades” de Dilma. Há gosto para tudo, mas querer nunca mais conviver com isso é justa e meritória aspiração de uma sociedade que busca recuperar os valores perdidos, e que, quando se mobiliza, o faz de modo ordenado e civilizado. É a autodefesa de uma parcela majoritária da nação que passou a se posicionar politicamente, venceu a eleição de 2018 e sabe o que rejeitar porque convive com as consequências daquilo que rejeita.

Parte da imprensa brasileira ainda não percebeu: quanto mais atacar a Lava Jato e o juiz Sérgio Moro, quanto maior relevo der à atividade criminosa dos hackers a serviço dos corruptos (bandidos sob ordens de bandidos), quanto mais ansiar pelo silêncio das redes sociais, quanto mais desestimular e minimizar as manifestações de rua, mais estará reforçando, aos olhos de muitos, a obrigação cívica de proteger aqueles por quem se mobiliza. É tiro no pé. Principalmente quando salta aos olhos que, na perspectiva de tais veículos, membros do STF podem criticar o Legislativo e o Executivo; membros do Legislativo podem criticar o Executivo e o STF; o Chefe do Executivo a ninguém pode criticar; e os cidadãos têm que cuidar de suas vidas e deixar de incomodar as instituições.

Não há fundamento para o rigor com que o Presidente e o governo vêm sendo tratados. Não há um só ato que tenha causado prejuízo ao país. Bem ao contrário, todos os movimentos e iniciativas visam a diminuir o prejuízo herdado e a fazer as necessárias reformas. Bolsonaro já deixou evidenciado a todos que, se não é o príncipe perfeito com que pretendem aferi-lo alguns formadores de opinião, também não é o ogro que a fantasia destes, de modo maldoso, quis criar e exibir ao mundo.

Por fim, a sociedade entendeu que condutas voltadas a derrotar o governo, desacreditar o governo, derrubar o governo, são funestas ao país e àqueles que mais precisam que tudo dê certo. Não há parto sem dor. Ou as instituições fazem o que devem e o Brasil nasce diferente e melhor em 2020, ou será um lugar muito ruim de viver! A aposta no quanto pior melhor beira à delinquência. Ou à sociopatia.

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

24/06/2019

 

 Mas o problema é exatamente esse! É aí que tudo começa.

 Zero Hora do último fim de semana (22/06) traz, na página de opinião, um confronto de pontos de vista sobre a internação involuntária de dependentes químicos. De um lado, um psiquiatra que integra o Conselho Nacional de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria; de outro, a presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. O psiquiatra é favorável à internação involuntária na forma do PLC 37/2013; a psicóloga, contra.

Chamou-me atenção o que ela afirma. Textualmente: “O tensionamento se dá, em primeiro plano, ao direito da pessoa de não ser submetida a algo que não deseja nem autoriza.” E, mais adiante: “Não há uma epidemia de drogas, mas uma narrativa que se coloca a serviço de interesses diversos, que envolve um projeto de encolhimento do Estado”.

Ou seja, segundo o artigo da psicóloga presidente, tirante o abandono do setor de saúde, presumivelmente decorrente de uma concepção liberal que envolve redução do tamanho e peso do Estado, parece não haver maiores problemas. Epidemia de drogas é uma narrativa e é preciso respeitar o direito da pessoa de não ser submetida a algo que não deseja nem autoriza...

que não deseja nem autoriza...Repito: o problema é exatamente esse! É aí que tudo começa, inclusive a drogadição. Nessa linha de raciocínio, em que não vejo prumo nem norte, o indivíduo tem o direito de comprar a droga, de se drogar, de vender as tábuas da parede da casa de seus pais, de desgraçar a vida dos que com ele convivem, de fazer com que todos à sua volta adoeçam e de não seer contido e tratado a contragosto. É o perigosíssimo discurso dos direitos sem deveres. Quando ele se reproduz na sociedade, está sendo organizada a estrutura psicossocial de uma vida em comum que será mistura de sanatório geral e presídio central.

Não pode haver direitos sem deveres, sendo que aqueles vêm depois destes. Não pode haver liberdade sem responsabilidade, sendo que aquela vem depois desta.

Quando o ser humano não é educado em família, ou pelo círculo de convivência, ou ainda pelo rigor da lei, a dizer não a seus desejos e pulsões, favorece-se o caminho para o transtorno de personalidade antissocial. Tratar de dependência química passando ao largo dessa evidência, ou, mais grave ainda, afirmando o direito de não ser a pessoa submetida a algo que não deseja nem autoriza (como se estivéssemos tratando de uma dieta de legumes), simplesmente não tem cabimento.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

21/06/2019

 

 Em fins de 2016, num surto de invasões de escolas, estudantes secundaristas passaram o cadeado em milhares delas. Protestavam contra tudo e todos: Temer, o governador do Estado, o diretor do colégio, o preço do chicabom. Ainda que as articulações fossem levadas a débito das uniões estudantis secundaristas, seria ingenuidade supor que, por trás, não agissem militantes dos partidos políticos fazedores de cabeças nas salas de aula do país.

Uma foto de jornal ficou-me na memória como representação dessa realidade. Ela foi tirada no pátio de uma escola invadida (o número de invasores era sempre ínfimo em relação ao total de estudantes, mas, como em tudo, a minoria impunha sua vontade às lenientes autoridades). A imagem mostrava um grupo de adolescentes atentos a um adulto que lhes falava. Poderia não ser um professor? Estaria ele convencendo os alunos a desocuparem a escola? Aproveitava ele o tempo para transmitir aos seus pupilos os encantos da matemática ou da análise sintática? Três vezes não. Há uma voracidade dos professores de esquerda em relação à captura e domínio da mente dos alunos.

No meu tempo de estudante, a expansão do comunismo e a Guerra Fria mantinham o mundo em sobressalto. O pouco que vazava para o mundo livre sobre os bastidores da Cortina de Ferro era suficiente para que o Ocidente se enchesse de receios. Minha geração viveu intensa e longamente essa realidade. Houve um momento, nos anos 60 do século passado, período da disputa tecnológica espacial e de multiplicação das armas nucleares, no qual muitos creram ser inevitável a vitória do comunismo, a ele aderindo para estar com os vencedores. Uma parte da esquerda brasileira foi formada nesse adesismo. O regime vermelho era organizado, centralizado, totalitário, agia com objetividade, não dava espaço para divergências nem perdia tempo com discussões. Não contabilizava vítimas e tudo que servisse à causa era eticamente bom. Brecht não tinha dúvida alguma.

No entanto, nem mesmo o terror e o genocídio de uma centena de milhões deram consistência e sustentaram um sistema intrinsecamente mau e incompetente. A partir dos anos setenta, o gigante começou a expor a argila mole sob seus pés. E foi por essa época que a esquerda ocidental, visando amainar com falsa ironia os temores que durante tanto tempo havia causado, passou a usar uma expressão que, de tão repetida, se tornou famosa: “Comunistas, não comem criancinhas”.

Por serem comunistas, não. Mas a fome que produziram nos primeiros anos da década de 20 do século passado (fome de Povolzhye), com a estatização da produção de grãos, levou ao comércio de cadáveres e não parou por aí. Os relatos são tão tenebrosos que prefiro saltar essa parte. Ademais, como não enfrentavam pessoas, mas classes e grupos sociais, na URSS, na China, na Coréia do Norte, no Vietnã, lotadas as prisões e os sanatórios políticos, os governos comunistas dizimaram populações inteiras, criancinhas aí incluídas.

A frase, porém, foi trabalhada para se constituir num atestado de boa conduta: os comunistas não comem criancinhas. Eles diziam e as pessoas riam. Mas o que faziam os comunistas com as criancinhas? Bem, aí é importante saber que o processo de doutrinação começava por elas, com a eliminação do ensino privado, com a supressão de todo o pluralismo e com a uniformização pedagógica. Em suas escolas só se ensinava uma doutrina, se reverenciava um só grupo de líderes e se insuflava o ódio e a delação contra os inimigos externos e internos do regime (incluídos nestes os próprios pais, se fosse o caso). Ao ministrar uma doutrina intrinsecamente materialista e má, furtavam a alma e envenenavam as mentes.

Exceção feita à delação de familiares, as coisas ainda são basicamente assim em Cuba. Na maior parte do Ocidente, porém, as estratégias evoluíram muito com os ensinos de Luckás, Gramsci, Foucault, Althusser, Adorno, Marcuse, Habermas e a correspondente ocultação dos que deles divergem, como Voegelin, Scruton, Aron, Russel Kirk, Revel e tantos outros. Ora são sutilezas paulofreirianas, ora é a manipulação do material didático, ora são os esforços em aplicar a ideologia de gênero. Chega-se, assim, à universidade dita pública, mas privatizada, levada de modo permanente àquela condição das escolas secundaristas tomadas pelos estudantes e seus apoiadores. É o magistério da revolta e da pretensa superioridade moral da tolice acadêmica. A universidade pública brasileira foi canibalizada. E eu não preciso dizer por quem.


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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

 

Percival Puggina

19/06/2019

 

Muitos analistas políticos têm batido na tecla da necessária interlocução entre o Executivo e o Legislativo. Afinal, o Congresso tem a legitimidade institucional para aprovar ou não os projetos do governo e os cidadãos devem ficar fora desses assuntos. O parlamento é o lugar onde se fala e onde se verbalizam opiniões divergentes. Portanto, “bora conversar” que tudo se resolve.

Resolve? Não. Contudo, ainda que resolvesse – e vota e meia não resolve mesmo – a política é só isso? É apenas um formulário institucional onde os poderes conversam e as opiniões, magicamente, se harmonizam porque todos querem o bem do país? Acumulam nossas instituições méritos que as façam merecedoras da confiança nacional? Novamente, não.

Tenho como verdadeira a clássica lição segundo a qual a política é possível pelo que as pessoas têm de bom e necessária pelo que nelas há de mau. Sociedades humanas, para um ou para o outro, precisam de elite e precisam de liderança.

Certa feita, comentando as habilidades de Lula como comunicador, registrei minha observação segundo a qual, sobre o mesmo assunto, ele tinha opiniões diferentes para públicos diferentes e, graças a isso, era aplaudido dizendo A e dizendo o contrário de A. Essa “habilidade” é uma das condições necessárias para identificar um trapaceiro, jamais um estadista. Estadistas não molham o dedo na saliva e o esticam ao ar para perceber de que lado sopra o vento no auditório.

Na política, liderança e, especialmente, liderança exercida sobre a massa, é um dom distribuído em proporções escassas. Bolsonaro tem esse dom e só ele explica a vertiginosa escalada que o levou à Presidência, contrariando a vontade explícita de quase todos os profissionais da opinião pública, aí incluídos políticos e comunicadores.

Não adianta atacar e fustigar Bolsonaro, apontando suas limitações porque elas nunca foram dissimuladas. Ninguém está a descobrir uma face oculta do Presidente. Tais limitações sempre fizeram parte do jeito Bolsonaro de ser, jeito que a população conhece e ao qual atribui valor elevado num mercado de baixas cotações.

Parcela significativa da sociedade sabe que Bolsonaro não é o príncipe perfeito, mas percebe nele sadia intenção de se sacrificar para fazer a coisa certa. Não tenho o costume de usar citações bíblicas em textos sobre política, mas é impossível não lembrar, aqui, das palavras de Jesus sobre tomar a própria cruz e segui-lo. Tirar o Brasil da situação em que está exige do governante esse mesmo ânimo para enfrentar aqueles que fogem como o diabo de qualquer cruz. Que dizer-se de carregá-la! Ela, a cruz, é parte do problema do governo com a base.

O empenho que se percebe em tantos meios de comunicação, visando a constranger as redes sociais ao silêncio, sustar as cívicas e civilizadas mobilizações de rua e diagnosticá-las como intrusivas e impróprias, outra coisa não é que tentativa de isolar o Presidente de seu principal e mais consistente apoio.
 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

17/06/2019

 Não passa um dia sem que editoriais, artigos e comentários em rádio e TV, se disponham a lecionar o público sobre o caráter negocial da democracia e sobre a impropriedade das mobilizações populares. Neste domingo (16/06), o Estadão volta ao assunto: “O alarido não é bom conselheiro. Decisões de Estado tomadas ao sabor da gritaria das redes sociais, como se tem tornado perigosamente comum, carecem dos elementos básicos de uma política madura”. E por aí vai o texto lastimando a circulação de informações por esses canais, o passeio das versões e das versões de versões, tudo em tempo real, impossibilitando a necessária reflexão.

 Se o leitor destas linhas é, também, leitor de alguns dos mais destacados meios de comunicação do país, deve ter visto muito disso por aí. São afirmações que refletem saudosismo dos velhos tempos em que uns poucos iluminados opinavam e influenciavam a opinião pública. Esse tempo, felizmente, passou.

 O ganho proporcionado pelo surgimento das redes sociais é imenso! A hegemonia esquerdista fora, até então, produto acabado, finalizado e desastrado desse monopólio. As redes sociais, apesar de sua natureza babélica e caótica, mudaram o país, desfizeram mitos, denunciaram mentiras e seus autores, protegeram a Lava Jato, impulsionaram o impeachment e trouxeram ao debate ideias relegadas às catacumbas. Libertaram os ideários conservador e liberal das desqualificações que os mantinham no anonimato das prateleiras inacessíveis.

Numa sociedade conduzida durante décadas, como manada, por políticos, economistas, professores, sindicalistas, autores, artistas e atores, de esquerda, descolados, moderninhos e revolucionários, de onde vinha “a voz do povo”? Vinha das massas de manobra. Portava bandeiras vermelhas e era mobilizada a favores de Estado, ônibus de sindicato e sanduíches de mortadela. Durante esses longos anos, dezenas de milhões de brasileiros viveram uma cidadania aleijada, hipossuficiente, sem direito a vaga no parking das opiniões, apartados que eram pela pretensa “superioridade moral” da esquerda. Deu no que se viu e nunca foi diferente.

Seria essa a “política madura”? Se o alarido não é bom conselheiro, presume-se que quem pensa diferente deva se sujeitar a um silêncio obsequioso. Espera-se que a nação creia que tudo andará bem se todos fecharem os olhos, deixarem as instituições “cumprirem seu papel” e a formação das opiniões retornar às antigas vozes?

Não! Impressiona que tantos profissionais da comunicação não percebam o imenso desalento dos brasileiros em relação às instituições do país! É por causa delas que tantos vão às ruas. Cobrar dos cidadãos que entrem em recesso para que a paz volte a reinar é propor um contrato entre ovelhas e lobos. É voltar à cidadania quadrienal, exercida apenas no dia da eleição. E é restaurar o ancien régime da corrupção. Foram as redes sociais e as mobilizações pacíficas dos cidadãos que influenciaram de modo decisivo todas as transformações positivas pelas quais o país passou desde 2014.

Querem ajudar realmente o Brasil? Querem tornar desnecessárias as mobilizações sociais? Ótimo! Ajudem a mudar as instituições. Exerçam nesse sentido o poder que ainda têm. As instituições que temos estimulam condutas irresponsáveis, exigem sociedade em estado de alerta porque fabricam crises com assiduidade e desenvoltura que, mesmo aos 74 anos, não cessam de me estarrecer.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

15/06/2019

 

O Brasil não parou. A presidente do PT sonhava com cidades fantasmas e praças tomadas por candentes manifestações “contra tudo isso que está aí”. E “Lula livre!”, claro. Que modo melhor de exibir força, do que parando o país? Para mostrar musculatura, uma greve geral é mais eficiente do que camiseta cavada.

Quando uma paralização é anunciada, o trabalhador que insiste em ir trabalhar é acusado de furar a greve. Pois a greve do PT e seus satélites foi um fracasso que inverteu a situação. O que se viu foram grevistas furando um dia normal de trabalho. Dado da realidade: o Brasil não parou.

Foi uma lição de maturidade proporcionada aos imaturos, que não apenas desprezam as lições do passado e nada aprendem com o que acontece diante de seus olhos no momento presente, como ainda almejam uma volta ao passado. Querem cometer todos os erros uma vez mais.

É a política, dirão alguns. A vida é assim, há governo e há oposição, dirão outros. Sim, é verdade. Mas a ideia da greve geral, desde que a esquerda se organizou no país, acrescenta um ingrediente abusivo e totalitário com o intuito de impedir o acesso das pessoas aos locais de trabalho. Isso se obtém com a instrumentalização, o aparelhamento dos sindicatos que respondem pela mobilidade no meio urbano. Mobilidade de pessoas, mercadorias e dinheiro.

O que se viu no dia 14 foi que nem isso deu certo. A greve obteve uma adesão pífia e onde algum reflexo foi sentido, ele esteve longe de expressar adesão política. Foi mero produto do constrangimento. Deveria ser desnecessário dizer, mas, em todo caso, vá lá: quem não conseguiu chegar a seu posto de trabalho porque tal ou qual sindicato impediu a saída dos ônibus ou dos trens, ou porque alguns brutamontes se postaram diante da porta da agência ou da repartição, estava em oposição à greve geral. Provavelmente foi chamado fascista e seu olhar de reprovação deve ter sido interpretado como discurso de ódio.

Num país que precisa trabalhar para, com esse trabalho, gerar poupança necessária à abertura de novos postos de trabalho, parar o Brasil é irresponsabilidade em grau máximo. Por incrível que pareça, há forças políticas que ainda acreditam em sua capacidade de vender ilusões a um mercado onde perderam o crédito. E para isso se valem de grupos sociais com muito amor à remuneração e aos direitos e pouco amor ao trabalho e aos deveres.

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.