Percival Puggina

08/11/2019

 O que aconteceu na sessão do STF da última quinta-feira, 7 de novembro, não foi uma simples decisão sobre tema constitucional. Foi uma ação articulada, complexa, que devolveu às ruas e às negociatas mais de quatro mil criminosos sobre cuja culpa o próprio Direito brasileiro não admite dúvida.

O presidente Dias Toffoli poderia não ter pautado a matéria. Optou por fazê-lo e colher o resultado previamente conhecido. Abriram-se, então, as portas das prisões para que, “de cambulhada”, na expressão tão repetida pelo ministro Marco Aurélio, fossem libertados corruptos, corruptores, líderes de organizações criminosas, bandidos endinheirados, réus confessos, que praticaram o maior assalto a um país de que se tem notícia na história universal. Não estranharei se até o dinheiro roubado e devolvido lhes for restituído, pois não podem ser considerados culpados antes do Juízo Final...

Aquela saudável sensação de justiça sendo feita exauriu-se. A associação criminosa entre políticos e empresários recuperou o status privilegiado da impunidade. O baixo risco dos negócios passará a reativar os canais da corrupção. E os que se exibiram à nação como guardiões da pureza constitucional acabaram ampliando a hostilidade da nação à sua Carta, ao STF, à política e às instituições do país. Belo serviço! Essa é a colheita de uma deliberação infame que transmitiu à sociedade inequívoco sentimento de derrota e desesperança.

A “maioria de circunstância” (para usar a expressão de Joaquim Barbosa ao encerar, frustrado, o julgamento do mensalão) responsável pela imperdoável decisão, contou com a reversão de duas convicções. Com efeito, a mostrar quão movediças podem ser certas dissertações jurídicas e quão infiel pode ser o amor à lei, Dias Toffoli e Gilmar Mendes já haviam votado anteriormente sobre tal assunto expressando convicção oposta. Não fosse esse giro retórico de 180 graus, o placar da deliberação da última quinta-feira teria sido de 7 a 4 no entendimento oposto. E a nação, insisto em dizer, estaria servida, o interesse público resguardado, a estabilidade jurídica reafirmada e a justiça preservada.

Gilmar Mendes, ao justificar sua mudança de opinião, afirmou que “sempre teve ‘inquietação’ com a possibilidade de prisões serem realizadas de modo ‘automático, sem a devida individualização’ e que seu pensamento evoluiu, desde 2016, por conta de mudanças no contexto do sistema penal do país”. Ou seja, não foi a leitura silábica e rasa do texto constitucional que o influenciou, mas a apreciação que fez do sistema penal. Poderia olhar o bem do país, avaliar o estrago que estava fazendo, medir o impacto ético da decisão adotada. Mas não quis. Preocupou-se mais com o “contexto do sistema penal do país”, seja lá o que isso queira dizer.

Agora é hora de pressionar os congressistas. Façam eles – e façam logo – o que já deveriam ter feito, dirimindo para sempre as dúvidas sobre as condições que devem orientar o início do cumprimento das penas de prisão.
 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

07/11/2019

 

 No Brasil, por força do modelo institucional presidencialista, o presidente é considerado pelo eleitor como um todo-poderoso. Parcela significativa da sociedade espera que ele detenha aquele poder absoluto capaz de resolver absolutamente tudo. De preferência sem marola e sem mexer em coisa alguma.

 Não é por outra razão que tantos são contra privatizações. O brasileiro ama seu patrão estatal e está convencido de que o Estado é o único generoso num mundo de ganância privada. Nessa perspectiva, o Estado zelaria pelo social, ao passo que as organizações privadas cuidariam do individual. Por mais que a realidade o conteste, os cidadãos brasileiros (ou a maior parte deles) acreditam que o que transcorre fora do setor público é periférico e inspira suspeitas.

Totalitária, igualmente, é a visão que o STF tem de seu poder, numa situação que se agrava quando os ministros se veem como Poder Moderador da República, função que sequer existe em nosso modelo institucional e, se um dia for criado, não será composto por magistrados.

Tais pontos de vista conduzem a uma centralização sob a qual nos fomos “adestrando”, aprendendo a esperar do Estado e a pagar, numa boa, pelo que dele não se recebe. Preferimos o calote a sacudir o jugo.

Também é nitidamente totalitária a crescente atribuição de ações ao Estado, impulsionadas pelos governos, notadamente pelos governos da União. Qualquer criança poderia entender, numa aula de OSPB, que quanto mais centralizada for a atuação do setor público, menor o espaço para a democracia e para a participação dos cidadãos. Centralização é antônimo de democratização. No entanto, em nosso país, vivemos sob o fetiche da unicidade.
Observe, leitor, o exame do ENEM. É o sonho de toda mente totalitária! Um exame nacional, com força suficiente para determinar a direção em que deve andar a visão de história, a compreensão dos fenômenos sociais, o vocabulário adequado à expressão das ideias, bem como para pautar leituras e redações. Não satisfeito o apetite pelo poder, essa alma totalitária cria e edita em 600 páginas uma tal Base Nacional Comum Curricular para viger nos quatro pontos cardeais da diversidade nacional.

Trata-se, na verdade, de uma paixão por qualquer programa ou criação que leve o adjetivo único, ou nacional, ou comum, ou federal. Na esteira aberta pelo SUS já temos o Sistema Único de Assistência Social, o Sistema Único de Segurança Pública. Procure no Google por “programa nacional de” e você vai se surpreender com a variedade da oferta existente.

Saudável, por isso mesmo, a visão adotada pelo governo Bolsonaro, em óbvia inspiração do ministro Paulo Guedes, e expressa no conjunto de projetos recém-encaminhados ao Congresso Nacional. Enquanto buscam sanear as finanças e reduzir a dependência dos entes federados em relação à União, esses projetos cumprem importante papel democratizador exorcizando a alma totalitária de nossa frágil e mal costurada democracia.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

04/11/2019

A maior dificuldade enfrentada nestes dias pelo governo federal é criada pelo gigantesco mecanismo que os movimentos revolucionários acionam a um estalar de dedos no plano nacional e internacional. É impressionante a fidelidade e a dedicação à causa. Há muito que aprender observando sua atuação, na qual o mais relevante é a reciprocidade dos apoios.

 Não houve coisa sequer parecida na história dos povos fora do espaço religioso e das sociedades secretas. Nos dois últimos séculos, porém, os movimentos revolucionários trouxeram para o terreno da política uma energia capaz de lhes dar longa vida e efetividade. A rápida circulação de informações que caracteriza as últimas décadas, assim como acabou com a hegemonia da mídia formal e com o privilegiado poder dos formadores de opinião, serviu também, esplendidamente, ao papel pró-hegemônico da articulação esquerdista, exercida mundialmente, sem contraponto.

Durante a campanha eleitoral brasileira de 2018, a imprensa internacional, acompanhando a nacional, procurou desconhecer as possibilidades eleitorais do candidato vitorioso. Entretanto, no dia seguinte à eleição de Bolsonaro, a mesma mídia externa expressava sua repulsa ao sucesso de um candidato “machista, homofóbico, misógino, antidemocrático e de extrema-direita”. Onde foi que aprenderam isso?

É perigosa e alarmante a ausência de algo capaz de articular enfrentamento com orientação liberal e/ou conservadora. Nada, nem aqui, nem mundo afora. Só o governo brasileiro fala a favor de si mesmo e de seus programas. E só fala em português, nas redes sociais. Zero articulação internacional.

Em contrapartida, é imenso o volume de poder político e financeiro que se vai concentrando em mãos de grupos revolucionários, anticapitalistas, alinhados em formas de “democracia popular” (de novo, como no Leste Europeu!) ao molde adotado pelos governos de Cuba, Nicarágua, Venezuela, Bolívia, com os quais o PT confraterniza e volta a se congregar no Grupo de Puebla. Alguém poderá se indagar sobre a necessidade desse novo grupo, dado que já existe o Foro de São Paulo. No entanto, mais um grupo é um grupo a mais, na linha do que aqui exponho.

Há uma miríade de fundações e organismos internacionais despejando dinheiro em pautas “progressistas” empenhadas em lutar contra o progresso e apoiando medidas antiocidentais ou anticivilizatórias. Em todo o mundo, organizações de direitos humanos, rescendendo a perfume barato de falso humanismo (oportunista, abortista, materialista e anticristão), fazem trabalho semelhante pelas mesmas causas. No seu horizonte estão o desejado poder político e a engenharia social.

Se pudermos deixar de lado a armação nacional e internacional a que o novo presidente está exposto, o que presenciamos nestes dias evidencia que o vencedor do pleito presidencial de 2018 está muito bem assessorado para conduzir uma gestão com resultados positivos. Embora os agentes da corrupção lutem por sobrevivência e restauração do status quo anterior, embora a Lava Jato tenha tantos inimigos no Congresso e no STF, as lâmpadas vermelhas acesas nos painéis dos economistas começam a apagar e as verdes a tremeluzir.

Bolsonaro, a despeito das características de sua personalidade, pavio curto e freio desregulado, faz um bom governo porque não delegou tarefas a picaretas. Seus ministros não são operadores de sistemas criminosos. Bem ao contrário, enfrentam uma luta de vida ou morte contra os criminosos remanescentes nos poderes de Estado. Tenhamos em conta, sempre, que política não é um jogo que se assiste, mas um jogo que se joga.
 

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

02/11/2019

 

Há em nosso país um excesso de partidos políticos. Eles são em número muitas vezes superior às disponibilidades num leque ideológico e ao de minorias cobrando representação. Partidos de mais, ideias de menos – eis aí uma das muitas idiossincrasias que embaraçam as deliberações políticas no Brasil. Qualquer pessoa que assista a uma sessão deliberativa da Câmara dos Deputados perceberá, por certo, o tempo consumido por 25 bancadas diferentes, com prerrogativas regimentais, em repetitivas manifestações! Esse número, é bom saber, pode aumentar muito porque existem outras sete legendas sem representação parlamentar, e mais 71 coletando filiados para cumprir formalidades e obter registro.

Não podemos esquecer, porém, da existência dos poderosos partidos das sombras. Eles não têm sigla nem número, não aparecem nas listas de votação, mas desenvolvem ações que servem a interesses partidários. Sua ação política é valiosíssima para aqueles a quem servem por vias indiretas e influencia fortemente a vida nacional.

Refiro-me, por exemplo, ao que se poderia chamar partido do Estado. Ele age silenciosamente no interior do imenso aparelho estatal, com foco na defesa dos interesses corporativos. Identificam-se, por isso, com todos os partidos estatistas; sentem-se protegidos quando eles ocupam o poder, o que os leva a uma fidelidade exemplar. O rombo de R$ 48 bilhões (1) aberto durante as gestões petistas nos fundos de pensão das estatais (Petros, Previ, Funcef, Postalis), obrigando assistidos, contribuidores e patrocinadores a aportes adicionais ao longo das próximas décadas não foi suficiente para suscitar a mais tênue recriminação no interior do partido do Estado!

Funciona também, poderoso, o partido das Igrejas. Um deles tem sua atuação centralizada na CNBB e o outro nas evangélicas. Enquanto este último assume sua condição política e adota legendas inteiras, aquela nega fazer o que faz, embora faça à vista de todos através de suas pastorais, CEBs, documentos, cartilhas e Teologia da Libertação. É um jogo bem ensaiado. Graças a esse ensaio e longa tradição, você nunca ouviu a CNBB criticar o PT, nem o PT criticar a CNBB, embora as posições do PT e partidos de esquerda sobre temas atinentes diretamente à moral cristã devessem sugerir um aberto antagonismo. Sempre que se trata desse assunto, é bom lembrar que a Conferência congrega os bispos com atribuições de órgão de serviço, mas não se confunde com a instituição Igreja Católica Apostólica Romana.

Partidos das sombras têm a ver com o poder político real. Dispõem de permanência e vitalidade próprias. Uma ampla visão dessa realidade foi proporcionada pelo partido da mídia logo após a posse do governo eleito em 2018. Os primeiros dois ou três meses de 2019, enquanto os partidos de oposição, destacadamente o PT, se aprumavam da fragorosa derrota imposta pelas urnas, coube quase exclusivamente ao partido da mídia agir como porta-voz da oposição, sem conceder ao vencedor um único minuto para desfrutar a vitória.

O que mais impressiona nesses e noutros partidos das sombras é a pretensão, assumida por quase todos, de agir sem que sejam seus movimentos identificados pela sociedade.

(1) https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2016/09/economia/519563-fundos-de-pensao-investigados-pela-pf-respondem-por-62-6-do-rombo-do-sistema.html

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

 

Percival Puggina.

31/10/2019

 


Em diferentes lugares do passado, muitas coisas se perderam no nosso país. Uma delas foi a visão de história. Perdeu-se a linha do tempo, a noção de continuidade e, com isso, a própria identidade. A ignorância deu origem ao palpite. A profunda ideologização das últimas décadas abriu vaga, posto de trabalho, carteira assinada e ascensão funcional à avalanche dos enganadores, peritos na grande ciência do ensinar errado. Não é fácil. Ensinar errado e ocultar o que é sabido exige treino.

Observo, em muitas manifestações, percebidas como valiosamente indigenistas, um remorso comunitário ao qual muitas pessoas se entregam como se fossem motivadas por imposições de ordem moral. Seria o inesgotável remorso dos ocidentais. A penitência de uma civilização. A autoflagelação de uma cultura superior. Afinal, por que diabos decidiram promover o não solicitado povoamento de um suposto e intacto paraíso terrestre indígena brasileiro? Pronto, está feito o serviço. É apenas mais uma página da longa lista de culpas históricas imputadas ao léu e sem réu. Mas gerando titulares de remotos créditos sociais resgatáveis no tempo presente.

Em todos esses casos – e são muitos – como já escrevi em artigo anterior, conviria ter certezas que me parecem ausentes, como ausentes estão nos problemas do povoamento e da evangelização do Brasil: a) certeza de não estarmos acusando, julgando e condenando antepassados a quem não concedemos direito de defesa; b) certeza de não estarmos colocando gestos de resgate a serviço de interesses ideológicos e políticos pelos quais, mais tarde, alguém terá que pedir perdão por nós; e c) certeza de não estarmos incorrendo em anacronismo, ou seja, avaliando a conduta dos povoadores de quinhentos anos atrás, com critérios atuais.

Apenas 250 anos nos separam do clássico Dei delliti e dele pene, com o qual Cesare Beccaria apontou a desproporção entre delitos e penas no sistema judicial de seu tempo. Foi por influência desse livro que a Revolução Francesa introduziu a guilhotina, mais misericordiosa para corte de cabeças do que a machadada. Diante desses fatos quase recentes podemos reprovar os portugueses por não haverem trazido a bordo antropólogos, sociólogos, ambientalistas e epidemiologistas?

As releituras e narrativas que a dominante visão de história costuma desenrolar, me levam a indagar: há sentido em desfiar o infindável rosário de mortificações temporãs sobre as quais se poderia cogitar até mesmo na leitura da Bíblia, ou percorrendo os olhos sobre a história de qualquer povo, incluídos os próprios indígenas? Não, não há. Deve ter arrefecido muito o apreço ao batismo e à salvação para que a evangelização de um continente ande suscitando tanto remorso, adaptação e modulação (como talvez propusesse Dias Toffili).

Se for para pedir perdão, por que não o fazerem também, como lembrava Sandra Cavalcanti em artigo publicado há alguns anos, os médicos que substituíram os curandeiros, as famílias novas que não aceitaram mais matar velhos e crianças aleijadas e os cozinheiros europeus que retiraram do cardápio ameríndio os assados de bispos e desafetos?
Não parece adequado subordinar-se o não solicitado Sínodo da Amazônia a uma ótica reducionista que, ao explicar todos os fenômenos históricos como conflitos entre oprimidos e opressores, se põe a serviço de uma ideologia pagã. Entre São José de Anchieta e o cardeal Cláudio Hummes eu fico com o santo das Canárias.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

27/10/2019

 

 Nestes últimos dias sinto uma santa inveja do José Nêumanne, homem certo, no lugar certo, na hora certa quando o vaidoso ministro Marco Aurélio Mello, em abril de 2016, se expôs perante a equipe de jornalistas do Roda Viva e teve a má sorte de topar com Nêumanne na roda de entrevistadores (1). O bravo jornalista não deixou barato e lavou a alma nacional. Apontou a morosidade do Supremo, a impunidade que conferia aos crimes praticados por aqueles réus que dispusessem de prerrogativa de foro. Ironizou e teatralizou o que era sabidamente ridículo, apontou a onerosa e inútil farsa do julgamento do mensalão, cujas penas, abrandadas pela exclusão do crime de formação de quadrilha, praticamente não se cumpriram. Em dado momento, sem encontrar porta retórica para evadir-se daquele aperto, o ministro tentou inverter a situação e de entrevistado virou entrevistador:

“Por que essa fixação no Supremo? Você não acredita na sua Suprema Corte?”. Ao que a resposta de Nêumanne veio fulminante: “Não, não acredito”. O comentário de Marco Aurélio Mello à dura afirmação ecoa através dos anos: “Isso é muito triste”. E é, ministro, acrescento eu. Os senhores não imaginam quanto, aos olhos da sociedade, é triste o papel que tantas vezes desempenham!

Se a pergunta que ele fez ao jornalista fosse endereçada hoje à nação, esta, quase unânime, expressaria seus sentimentos de maneira ainda mais áspera. A composição do STF que os anos petistas legaram ao país merece-lhe tanta confiança quanto aqueles a quem põe em liberdade, atendendo, por gosto ou não, querendo ou não, à ecologia do crime e ao preservacionismo da corrupção. É o que fazem.

Nestes dias, só nos resta aguardar os votos finais e gritar nossa repulsa e desalento ante o que ouvimos em votos dados no tom de quem ensina. Por vezes, são lições inaudíveis, intoleráveis. Os votos a favor do cumprimento das penas somente após as festas do Dia de São Nunca são proferidos sob um guarda-chuva retórico que tem apenas duas varetas. Não abre, não protege o discurso nem o voto. Uma vareta levanta seu pedaço de pano torto para a leitura literal da Constituição, soltar milhares de bandidos sobre cuja culpa não cabe dúvida e restaurar a impunidade, alegando que o contrário disso seria legislar. A outra , do lado oposto, faz o mesmo para legislar e criar tipo penal por analogia ou para inovar no direito processual em matéria de insignificante relevância como são as alegações finais. Assim, a Lava Jato e o combate à criminalidade vão definhando aos olhos de todos. 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

26/10/2019

 

Em diferentes lugares do passado, muitas coisas se perderam no nosso país. Uma delas foi a visão de história. Perdeu-se a linha do tempo, a noção de continuidade e, com isso, a própria identidade. A ignorância deu origem ao palpite. A profunda ideologização das últimas décadas abriu vaga, posto de trabalho, carteira assinada e ascensão funcional à avalanche dos enganadores, peritos na grande ciência do ensinar errado. Não é fácil. Ensinar errado e ocultar o que é sabido exige treino.

Observo, em muitas manifestações, percebidas como valiosamente indigenistas, um remorso comunitário ao qual muitas pessoas se entregam como se fossem motivadas por imposições de ordem moral. Seria o inesgotável remorso dos ocidentais. A penitência de uma civilização. A autoflagelação de uma cultura superior. Afinal, por que diabos decidiram promover o não solicitado povoamento de um suposto e intacto paraíso terrestre indígena brasileiro? Pronto, está feito o serviço. É apenas mais uma página da longa lista de culpas históricas imputadas ao léu e sem réu. Mas gerando titulares de remotos créditos sociais resgatáveis no tempo presente.

Em todos esses casos – e são muitos – como já escrevi em artigo anterior, conviria ter certezas que me parecem ausentes, como ausentes estão nos problemas do povoamento e da evangelização do Brasil: a) certeza de não estarmos acusando, julgando e condenando antepassados a quem não concedemos direito de defesa; b) certeza de não estarmos colocando gestos de resgate a serviço de interesses ideológicos e políticos pelos quais, mais tarde, alguém terá que pedir perdão por nós; e c) certeza de não estarmos incorrendo em anacronismo, ou seja, avaliando a conduta dos povoadores de quinhentos anos atrás, com critérios atuais.

Apenas 250 anos nos separam do clássico Dei delliti e dele pene, com o qual Cesare Beccaria apontou a desproporção entre delitos e penas no sistema judicial de seu tempo. Foi por influência desse livro que a Revolução Francesa introduziu a guilhotina, mais misericordiosa para corte de cabeças do que a machadada. Diante desses fatos quase recentes podemos reprovar os portugueses por não haverem trazido a bordo antropólogos, sociólogos, ambientalistas e epidemiologistas?

As releituras e narrativas que a dominante visão de história costuma desenrolar, me levam a indagar: há sentido em desfiar o infindável rosário de mortificações temporãs sobre as quais se poderia cogitar até mesmo na leitura da Bíblia, ou percorrendo os olhos sobre a história de qualquer povo, incluídos os próprios indígenas? Não, não há. Deve ter arrefecido muito o apreço ao batismo e à salvação para que a evangelização de um continente ande suscitando tanto remorso, adaptação e modulação (como talvez propusesse Dias Toffili).

Se for para pedir perdão, por que não o fazerem também, como lembrava Sandra Cavalcanti em artigo publicado há alguns anos, os médicos que substituíram os curandeiros, as famílias novas que não aceitaram mais matar velhos e crianças aleijadas e os cozinheiros europeus que retiraram do cardápio ameríndio os assados de bispos e desafetos?

Não parece adequado subordinar-se o não solicitado Sínodo da Amazônia a uma ótica reducionista que, ao explicar todos os fenômenos históricos como conflitos entre oprimidos e opressores, se põe a serviço de uma ideologia pagã. Entre São José de Anchieta e o cardeal Cláudio Hummes eu fico com o santo das Canárias.


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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

21/10/2019

 

 Ontem, enquanto assistia, com minha mulher, a um vídeo do III Festival de MPB da TV Record (1967), experimentei instantes daquela emoção em que chorar parece escandaloso e as lágrimas, por isso, deslizam silenciosas pelos cantos dos olhos.

 Qual sua causa? Seriam pequenas gotas de saudade dos anos 60? Do reencontro com as canções da minha juventude? Era isso, também, mas não era só isso. Refletindo sobre aqueles sentimentos, resultou impossível não considerar que era saudade de algo mais, saudade de uma juventude mais sadia, de um respeito ao belo, de uma reverência ao talento, à harmonia, à boa música e à poesia.

Havia isso, naqueles anos distantes. Letras que faziam pensar e sentir. Composições musicais que mobilizavam emoções de uma forma quase metafísica. Todas atravessaram mais de meio século na memória de uma geração inteira. Era música, era popular, por vezes revolucionária, mas era brasileira e tinha o perfume do amor ao Brasil e à nossa cultura.

Há quem descreva aqueles anos como os anos da inibição criativa, do amordaçamento de uma geração, mas o que vi e trago na memória são anos de extraordinária criatividade de jovens, muitos dos quais se alinhavam entre os principais críticos do regime. Não nego a censura política, nem as burras restrições à livre expressão das opiniões. O que nego é que de algum modo tenhamos avançado a partir do instante em que os instrumentos da cultura passaram a ser usados para destruir a cultura, degradar o gosto estético, refugar a beleza que, nas almas nobres, é zeladora de tantos bens imateriais.

Interrogo-me: como saímos de Ponteio, Roda Viva, Domingo no Parque; ou, mais expressivo ainda, de Caimi, Vinicius, Edu Lobo, Elis, para os padrões atuais? Quem não tem mente, faz do corpo seu alfarrábio e o transforma em outdoor de um indefinido protesto que nem desenhado se entende. Confirmam-no meio século de contracultura, de tribos urbanas e de desconstrução até as pessoas se desconjuntarem de sua própria natureza.

Hoje, dançar é agitar braços em ritmos frenéticos, ao ruído cavo e repetitivo de aborrecidas percussões. Percussões que atravessam paredes, vencem quarteirões, prolongam-se noite adentro e tornam sonolento o cotidiano dos cães.

Por isso, tudo isso e muito mais (a feiúra das picadas, das cheiradas, das fumadas, do alcoolismo, da negação do eterno, da supressão do sentido da vida), meus olhos úmidos desta noite celebravam a beleza e recriminavam a feiúra neste tempo em que o importante é chamar a atenção, ainda que para isso o senso de ridículo seja perdido. Resulta impossível, então, não trazer à superfície a cadeia de tragédias sucessivas traçada por Theodore Dalrymple. Saindo-se do ridículo de si mesmo, da arte ridícula, da promoção do hediondo, do naturalmente embaraçoso, segundo ele, a perda da vergonha significa a perda da privacidade, que faz sumir a intimidade, sem a qual vai-se a profundidade. As pessoas se tornam rasas. E tudo fica mais sombrio.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

17/10/2019

 

 Nossa lei penal, nosso processo penal, nossos tribunais são zonas de litígio. Quase nada está pacificado fora da letargia das gavetas e dos arquivos. Nas cortes, as posições divergem segundo el color del cristal con que sus miembros miran. No STF, há a turma do assim, e a turma do assado. Um ministro manda soltar e o outro manda prender. Não se entendem entre si, mas esperam ser compreendidos. Integram um poder político, fazem política sem voto, curtem a celebridade, mas querem ser tratados como se fossem exclusivamente poder jurídico imune às adversidades de relacionamento social e às críticas inerentes à vida pública. Topar com um cidadão é um desconforto que os faz enrubescer. Vergonha do STF!

 Nesta quinta-feira (17/10), os senhores ministros retomam o trôpego caminho por onde têm elucubrado e andado nesta aparentemente indeterminável questão: quando deve ser preso o réu condenado em 2º grau de jurisdição, sobre cuja culpa não incide mais a presunção de inocência? Retornar ao criminoso patrocínio da eterna impunidade e da prescrição, ou manter vigente a interpretação que interrompeu a atividade criminosa nos negócios com o Estado brasileiro? É preciso, afirmam, pacificar essa questão.

 Pois “pacificar” é uma boa palavra. Se tudo andar como pretendem os ministros, essa “pacificação” vai soltar algo entre quatro mil e 84 mil criminosos. Eles retornarão a seus negócios, às nossas ruas, estradas, parques. Somar-se-ão a outras centenas de milhares de inimigos da sociedade, à qual declararam uma guerra de conquista e formação de servidão. Ocupam território no meio urbano e rural; tomam o patrimônio e a vida de tantos; atacam nossas mulheres, nossas crianças e, em grande número, se constituem como estado paralelo dentro do Estado, a exigir integral submissão às suas determinações. Se não fui inteiramente entendido, esclareço: há uma parcela dessa bandidagem agindo com representatividade e vigor nas nossas instituições.

É essa a “pacificação”, sinônimo dolorido da nossa submissão, que muito provavelmente receberá notável reforço logístico da maioria do lamentável, desastrado e escandaloso Supremo Tribunal Federal brasileiro. O simples emprego da palavra “pacificar” é uma afronta e uma evidência suplementar da relação doentiamente alienada que o Poder mantém com a sociedade. A Corte vive num universo paralelo onde o brasileiro não conta, onde a realidade nacional é informação desconhecida. Nesse universo, a dubiedade dos tratados de Direito e dos precedentes contraditórios fazem o pretensioso cotidiano para que o próprio querer se imponha. Haverá muito mais bandido nas nossas ruas, a guerra contra a população recrudescerá, mas o STF “pacificou”. Ufa! Cairá a noite sobre um Brasil mais triste, mais desesperançado, mais perigoso, mais roubado, mas violento.

A grande celebração do crime, que fez do STF santuário de suas devoções, atravessará a noite. Metralhadoras, em festa, matraquearão balas perdidas arrepiando os morros. Abstêmios na prisão, grandes corruptos reabrirão suas garrafas de uísque. Farão o mesmo aquelas figuras conhecidas que exalam os maus odores da ira quando um endinheirado é preso.

Como obra de suas mãos, o Brasil se terá tornado um país pior para se viver. A vontade e a dignidade nacional sangrarão no pelourinho! Mas quem se importa com isso no STF? Lisboa, onde eles passam mais tempo, e a civilização ficam logo ali.

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.