• Percival Puggina.
  • 31/10/2019
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O SÍNODO, ANCHIETA E A VISÃO DE HISTÓRIA

 


Em diferentes lugares do passado, muitas coisas se perderam no nosso país. Uma delas foi a visão de história. Perdeu-se a linha do tempo, a noção de continuidade e, com isso, a própria identidade. A ignorância deu origem ao palpite. A profunda ideologização das últimas décadas abriu vaga, posto de trabalho, carteira assinada e ascensão funcional à avalanche dos enganadores, peritos na grande ciência do ensinar errado. Não é fácil. Ensinar errado e ocultar o que é sabido exige treino.

Observo, em muitas manifestações, percebidas como valiosamente indigenistas, um remorso comunitário ao qual muitas pessoas se entregam como se fossem motivadas por imposições de ordem moral. Seria o inesgotável remorso dos ocidentais. A penitência de uma civilização. A autoflagelação de uma cultura superior. Afinal, por que diabos decidiram promover o não solicitado povoamento de um suposto e intacto paraíso terrestre indígena brasileiro? Pronto, está feito o serviço. É apenas mais uma página da longa lista de culpas históricas imputadas ao léu e sem réu. Mas gerando titulares de remotos créditos sociais resgatáveis no tempo presente.

Em todos esses casos – e são muitos – como já escrevi em artigo anterior, conviria ter certezas que me parecem ausentes, como ausentes estão nos problemas do povoamento e da evangelização do Brasil: a) certeza de não estarmos acusando, julgando e condenando antepassados a quem não concedemos direito de defesa; b) certeza de não estarmos colocando gestos de resgate a serviço de interesses ideológicos e políticos pelos quais, mais tarde, alguém terá que pedir perdão por nós; e c) certeza de não estarmos incorrendo em anacronismo, ou seja, avaliando a conduta dos povoadores de quinhentos anos atrás, com critérios atuais.

Apenas 250 anos nos separam do clássico Dei delliti e dele pene, com o qual Cesare Beccaria apontou a desproporção entre delitos e penas no sistema judicial de seu tempo. Foi por influência desse livro que a Revolução Francesa introduziu a guilhotina, mais misericordiosa para corte de cabeças do que a machadada. Diante desses fatos quase recentes podemos reprovar os portugueses por não haverem trazido a bordo antropólogos, sociólogos, ambientalistas e epidemiologistas?

As releituras e narrativas que a dominante visão de história costuma desenrolar, me levam a indagar: há sentido em desfiar o infindável rosário de mortificações temporãs sobre as quais se poderia cogitar até mesmo na leitura da Bíblia, ou percorrendo os olhos sobre a história de qualquer povo, incluídos os próprios indígenas? Não, não há. Deve ter arrefecido muito o apreço ao batismo e à salvação para que a evangelização de um continente ande suscitando tanto remorso, adaptação e modulação (como talvez propusesse Dias Toffili).

Se for para pedir perdão, por que não o fazerem também, como lembrava Sandra Cavalcanti em artigo publicado há alguns anos, os médicos que substituíram os curandeiros, as famílias novas que não aceitaram mais matar velhos e crianças aleijadas e os cozinheiros europeus que retiraram do cardápio ameríndio os assados de bispos e desafetos?
Não parece adequado subordinar-se o não solicitado Sínodo da Amazônia a uma ótica reducionista que, ao explicar todos os fenômenos históricos como conflitos entre oprimidos e opressores, se põe a serviço de uma ideologia pagã. Entre São José de Anchieta e o cardeal Cláudio Hummes eu fico com o santo das Canárias.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 


cloe espirito santo brizolla -   05/11/2019 12:12:21

Parabéns ao Percival. Concordo com o comentário de Luiz R. Vilela. Sensatez e inteligência.....

Luiz R. Vilela -   02/11/2019 12:00:12

Ideologização ou idiotização, parecem-me que são palavras com o mesmo sentido. quando o indivíduo perde a capacidade de raciocinar e passa a achar que tudo o que vem do seu "guru", é a verdade absoluta, tornou-se um robô. Ninguém deve se submeter a ideais supremacistas, onde alguns apenas se tornam a consciência de todos e sequer admitem contestação , são totalitários que apenas convivem com a democracia, porque não tem força suficiente para solapa-la. Sãos os democratas de ocasião, aquela que faz o ladrão. Quando puderem, rouba-nos a liberdade. Assim agem as extremas, tanto de direita como esquerda. A história nos recomenda a manter olho vivo e faro fino, em uns, e também em outros. A história também nos mostra que no passado, fez-se ações, que por valores atuais, seriam altamente reprováveis, mas como diz o autor, não se pode condena-los, em que se deem a eles o direito de defesa e possam se explicar. Os tempos eram outros. Quanto aos pedidos de desculpas que estariam obrigados a faze-lo os atuais descendentes de povos conquistadores a povos vítimas de suas ações, parece-me uma sandice. O que uma pessoa que vive presentemente, tem a ver com alguma coisa feita por seus antepassados, seria a responsabilização hereditária? Todos já nascem com o "pecado original", nasceriam também com a responsabilidade dos "pecados" cometidos por seus antepassados? A igreja católica, que tanto deseja que os indígenas mantenham as suas culturas e tradições, deveria também respeita-los na questão religiosa, permitindo que professem suas religiões primitivas, assim ficaria tudo no original. A alguns anos passados, um deputado federal entrou com um projeto na câmara, pelo qual, todo brasileiro branco deveria pagar um imposto, que este dinheiro deveria ser distribuído aos afro descendentes, como forma de promover uma justa indenização pelos anos de escravatura. Ai a pergunta, como uma pessoa que nunca teve um escravo e sequer viu um, teria de pagar a alguém que nunca foi um escravo e também sequer viu um? Ainda bem que a sandice não prosperou. Baseado nestes conceitos, poderiam ingleses e franceses exigir dos países escandinavos indenizações pelas invasões Vikings? As vítimas das invasões do império romano também estariam aptas a pleitear indenizações? E por ai vai a loucura que o mundo esta mergulhado. A algum tempo li o que um cidadão escreveu: " Homens sensatos, uni-vos, porque os insensatos, já estão".