• Percival Puggina
  • 21/10/2019
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JÁ ANDAMOS TÃO MELHOR!

 

 Ontem, enquanto assistia, com minha mulher, a um vídeo do III Festival de MPB da TV Record (1967), experimentei instantes daquela emoção em que chorar parece escandaloso e as lágrimas, por isso, deslizam silenciosas pelos cantos dos olhos.

 Qual sua causa? Seriam pequenas gotas de saudade dos anos 60? Do reencontro com as canções da minha juventude? Era isso, também, mas não era só isso. Refletindo sobre aqueles sentimentos, resultou impossível não considerar que era saudade de algo mais, saudade de uma juventude mais sadia, de um respeito ao belo, de uma reverência ao talento, à harmonia, à boa música e à poesia.

Havia isso, naqueles anos distantes. Letras que faziam pensar e sentir. Composições musicais que mobilizavam emoções de uma forma quase metafísica. Todas atravessaram mais de meio século na memória de uma geração inteira. Era música, era popular, por vezes revolucionária, mas era brasileira e tinha o perfume do amor ao Brasil e à nossa cultura.

Há quem descreva aqueles anos como os anos da inibição criativa, do amordaçamento de uma geração, mas o que vi e trago na memória são anos de extraordinária criatividade de jovens, muitos dos quais se alinhavam entre os principais críticos do regime. Não nego a censura política, nem as burras restrições à livre expressão das opiniões. O que nego é que de algum modo tenhamos avançado a partir do instante em que os instrumentos da cultura passaram a ser usados para destruir a cultura, degradar o gosto estético, refugar a beleza que, nas almas nobres, é zeladora de tantos bens imateriais.

Interrogo-me: como saímos de Ponteio, Roda Viva, Domingo no Parque; ou, mais expressivo ainda, de Caimi, Vinicius, Edu Lobo, Elis, para os padrões atuais? Quem não tem mente, faz do corpo seu alfarrábio e o transforma em outdoor de um indefinido protesto que nem desenhado se entende. Confirmam-no meio século de contracultura, de tribos urbanas e de desconstrução até as pessoas se desconjuntarem de sua própria natureza.

Hoje, dançar é agitar braços em ritmos frenéticos, ao ruído cavo e repetitivo de aborrecidas percussões. Percussões que atravessam paredes, vencem quarteirões, prolongam-se noite adentro e tornam sonolento o cotidiano dos cães.

Por isso, tudo isso e muito mais (a feiúra das picadas, das cheiradas, das fumadas, do alcoolismo, da negação do eterno, da supressão do sentido da vida), meus olhos úmidos desta noite celebravam a beleza e recriminavam a feiúra neste tempo em que o importante é chamar a atenção, ainda que para isso o senso de ridículo seja perdido. Resulta impossível, então, não trazer à superfície a cadeia de tragédias sucessivas traçada por Theodore Dalrymple. Saindo-se do ridículo de si mesmo, da arte ridícula, da promoção do hediondo, do naturalmente embaraçoso, segundo ele, a perda da vergonha significa a perda da privacidade, que faz sumir a intimidade, sem a qual vai-se a profundidade. As pessoas se tornam rasas. E tudo fica mais sombrio.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 


claudio Silva -   28/10/2019 12:49:51

Para nós a década de 60 ainda não terminou, é só olhar ao redor verá ainda os resquicios de sua herança. Está em praticamente em quase tudo.

mario m -   23/10/2019 00:54:06

Anos suaves os sessentas e setentas do século passado em comparação com os dias de hoje. Que país é este, perguntamo-nos a exemplo do MIllôr . Forte influência dos tempos modernos em um povo de estrutura frágil ou a fragilidade como portas abertas à sanha de maus intencionados? Cultura, informação saudável, necessidades prementes de um povo alienado.

Carlos Edison Fernandes Domingues -   22/10/2019 18:24:12

PUGGINA Terminei de ler o que escreveste e comecei a cantar "Confete, pedacinho colorido de saudade.." Carlos Edison Domingues

Menelau Santos -   22/10/2019 12:14:35

Que texto refrescante! Uma coisa que eu percebo nesses últimos anos é a ditadura da igualdade. As pessoas querem tudo igual porque parece que fica mais fácil. É tudo padronizado. Eu trabalhei na área fiscal e eu gostava era de comparar as notas fiscais das empresas. Como eram bonitas. Hoje, com a modernidade, as notas fiscais eletrônicas são todas iguais. Até os ônibus são padronizados. Veja esses ônibus urbanos azuis . Tudo igualzinho. Antigamente você tinha diversos tipos de samba, jovem guarda, bossa nova, partido alto. Hoje pagode, sertanejo, funk...parece que as músicas são todas iguais. Se vc ouvir um cd inteiro, vc vai ter dificuldade de perceber que uma música terminou e começou a outra. Todo mundo de aparelhinho no dente (nada contra). Todo mundo falando das mesmas coisas (sexo, ecologia, qualidade de vida...). Tá um mundo muito chato.

Luiz R. Vilela -   22/10/2019 02:25:32

Recordar é viver, diz o velho ditado, recordar é sofrer, saudades do passado. Quando ficamos velhos, sentimos muito ter passado, e rápido, o nosso tempo de juventude. Anos sessenta e setenta, talvez não fosse possível dizer alguma coisa, que o governo da ocasião não gostasse, mas as outras liberdades, eram totais. Ia-se onde queria. Nas cidades, andava-se pelas ruas dias e noites, sem qualquer preocupação com segurança, bandidos tinham medo da polícia, e esta respeitava o cidadão. Quem não fosse bandido ou comunista, não tinha porque temer o governo, que a propósito, fazia muito pelo pais e pelo povo. Eram tempos de "democracia relativa", mas de ordem e progresso. Bons tempos onde ainda se cultuava a vergonha e a moralidade, coisas que acompanharam a humanidade até a pouco tempo. Mas uns achavam que não era bom, e exigiram que o pais mudasse, e mudou, agora temos a tal "democracia", com todos os problemas que vemos, e o que parece bom para uns, é trágico para outros. Não faço a menor ideia, de onde esta democracia irá nos levar. Imagino que bom lugar, não seja. Se o Francelino Pereira já não tivesse falecido, perguntaria a ele, se já descobriu que pais é este.