• Eduardo Levy
  • 08 Agosto 2017

 


Imagine um departamento de Matemática qualquer, seja o da faculdade da esquina, seja o de Harvard. Quantos adeptos verdadeiros da ideologia de gênero haverá nele? Se o conhecido apreço dos matemáticos por dados objetivos ainda for o mesmo, é difícil que sejam muitos. Mas não faz diferença, pois se quase ninguém ali a defende, absolutamente ninguém a combate, já que fazê-lo resulta na destruição da própria carreira. Quem pode intimidar não precisa persuadir: é assim que se pode retratar como fruto de consenso universal ideias que são alvo de dissenso universal.

Ao longo da história das ideias da nossa cultura, até as correntes mais autoritárias procuraram conquistar adeptos por meio da persuasão racional. Mesmo nas conversões forçadas e nas guerras de religião, a espada vinha acompanhada do silogismo. O que a esquerda descobriu, e ao que deve sua hegemonia cultural de décadas, é que a persuasão racional não é apenas desnecessária, é prejudicial. Pois quando argumentamos, o adversário tem o mau hábito de contra-argumentar, existindo sempre o risco de que seus argumentos sejam melhores. Muito mais eficiente é passar a agir como se já tivéssemos vencido o debate, tendo provado não somente o acerto de nossas ideias quanto a maldade das ideias opostas, e passar a perseguir os dissonantes. Para obter hegemonia não é necessário que todos concordem; basta que ninguém tenha coragem de discordar. Que me importa que, no fundo de sua consciência, José ache a ideologia de gênero uma monstruosidade? Importa apenas que ele jamais dirá isso em público, pois fazê-lo o transformaria em desempregado perpétuo. Que pessoas como José se calem é suficiente para criar a impressão de consenso; está é suficiente tanto para impor normas legais e práticas culturais quanto para justificar a perseguição aos discordantes, a qual, por sua vez, reforça a impressão de consenso. É o ciclo perfeito, nada mais é necessário.

Parece exagero? Pois considere: Quantos argumentos você já leu a favor dos pressupostos, das conclusões e das exigências práticas da ideologia de gênero? Que debates a respeito dela aconteceram antes que se tornasse uma obrigação tácita de todos aceitá-la sob pena de ostracismo? Que disputa de ideias ocorreu antes que se começasse a ensinar às crianças que o sexo com que nasceram não tem a menor importância e a submetê-las a cirurgias mutiladoras irreversíveis? Quando foi que essa discussão foi vencida pelos ideólogos de gênero? Faça a si mesmo perguntas semelhantes trocando “ideologia de gênero” por outras ideias da esquerda que se tornaram dogmas incontestáveis e verá que a resposta é sempre jamais. Jamais debate nenhum foi vencido porque jamais debate nenhum aconteceu. A esquerda não argumenta. Faça com que opor-se a suas ideias resulte em ostracismo, ridículo e boicote e nunca mais precisará defendê-las.

É assim porque ter razão é muito diferente de ter poder. A criança não obedece aos pais porque acha que tenham razão, a vítima não obedece ao bandido porque foi persuadida de seu clamor (a não ser que seja a Maria do Rosário), nem este obedece ao policial por estar convencido da beleza da ordem legal. Ter razão—ou, mais propriamente, parecer ter razão—é apenas um dos meios de conquistar e exercer poder, e o mais frágil deles. Pois mesmo o melhor dos argumentos pode ser contestado, ao passo que um emprego perdido, uma cela de prisão e uma bala na testa são irrefutáveis. Não foi por outro motivo que a esquerda se tornou imbatível no momento em que desistiu de ter razão.
E como reagem seus adversários? Respondem a cada intimidação com um silogismo, a cada boicote com um dado, a cada reputação assassinada com um gráfico. Nas publicações de esquerda encontram-se diretrizes comportamentais e repreensão aos dissidentes, nas de direita argumentos e estatísticas. Os liberais (no sentido brasileiro da palavra), especialmente, fazem um esforço comovente para nunca pôr em forma escrita conclusão desacompanhada de uma estatística irrefutável que a embase. Será que jamais lhes ocorreu questionar-se por que ter razão com tanta frequência nunca lhes trouxe vitória política nenhuma? A superioridade absoluta do liberalismo econômico, tanto nos seus fundamentos teóricos quanto nos seus resultados práticos, é um dos fatos mais comprovados da história das ideias, fato que só pode negar quem não quer vê-lo. O adversário contra o qual se bate, por outro lado, o marxismo, já nasceu refutado em seus fundamentos teóricos e refutou-se a si mesmo em seus resultados práticos, que foram invariavelmente miséria, tirania e massacre. Por que, apesar disso, há tantos marxistas e tão pouco liberais? Será que em vez de suar tanto para mostrar a realidade a quem não quer vê-la os liberais não fariam melhor se tentassem descobrir por que não lhes serviu para nada estar certos?

Do princípio ao fim, a história do século XX é uma longa refutação das ideias da esquerda. Do momento ao princípio, a história do XXI é uma demonstração da hegemonia absoluta da esquerda. Enquanto seus adversários continuarem a combater ações com argumentos, ela continuará a vencer todas as batalhas práticas; que o faça apesar de perder todas as teóricas é apenas mais uma demonstração de seu poder. Quem quiser vencê-la deve deixar de analisar gráficos e passar a analisar estratégias de ação, deixar de denunciar os erros e passar a denunciar os errados, abandonar a luta contra as teorias e adotar a luta contra as práticas, desistir de combater ideias e passar a combater pessoas.
#paz
 

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  • Francisco Ferraz
  • 07 Agosto 2017

 

Vivemos uma crise multifacetada. Ela é econômica, política, social jurídica, cultural, ideológica e histórica. Mais grave que os aspectos econômicos, sociológicos ou jurídicos da crise, contudo é o seu agravamento político, resultante da Estamos num rumo perigoso.

No Brasil tudo está em questão. A isso nos levou a confusão cultural, normativa e comportamental que resultou da dilaceração do tecido social.

Qualquer sociedade democráticaprecisa institucionalizar valores básicos, subscritos por sua população, para assegurar sua estabilidade e um ordenado e legal processo político de mudança. Quando não há um consenso em torno desses valores básicos ou, quando se instala umconflito radical entre eles, a nação tende a se dividir em dois blocosradicais e excludentes que “hurlent de se trouver ensemble”.

É a conhecida situação da “curva em U”, em que o poder foge do centro e se aloja nos extremos.Este é o caso da Guerra civil, o pior dos conflitos, cujo exemplo emblemático é a Guerra Civil Espanhola que, em julho de 1936, mais que dois blocosdeuorigem a ‘Duas Espanhas’.

Nessa situação parentes e amigosevitam encontrar-se tal a hostilidade que os valores políticos antagônicos provocam entre eles.

A guerra civil é a prova definitiva de que o ódio na politica é muito mais forte que o ódio no amor.

Não nos encontramos nesta situação. Mas o mínimo que se pode dizer é que já estivemos muito mais longe dela... Entre a Espanha da Guerra Civil e o Brasil da crise, a Venezuela Bolivariana de Maduro já se encontra muito próxima de uma guerra civil. Estamos ainda longe da situação espanhola, mas não tão longe da Venezuelana.

Atente-se para alguns valores essenciais à vida social organizada que se encontram em conflito, contestação e deslegitimação no Brasil:

1. Democracia Direta para corroer a Democracia Representativa

• Única condenação legítima é pelo voto: implica em desqualificação da legislaçãopenal.
• Pressão por convocação de Constituintes, Plebiscitos, Referendos e Reformas Políticas para substituir competências já definidas do legislativo e STF.
• Manifestações com militantes ‘pagos’ para pressionar, e forçar, decisões legislativas ou jurídicas em normal tramitação no Congresso e no STF.


2. Quebra do consenso: tudo está em questão

• Redefinição ‘contra-legem’ dafamília; do regime jurídicodo funcionalismo (greve ); daeleição direta de dirigentes de órgãos públicos.
• Família – qual sua conformação em termos de gêneros? Malicioso enquadramento da discussão: família tradicional x família moderna.
• Sexo: se escolhe ou é pré-determinado ao nascimento? Uso de sanitários é de livre escolha?
• Democracia: qual averdadeira democracia – a representativa ou a democracia direta?
• Qual o valor estruturante da democracia? Igualdade e Liberdade Política ou Igualdade econômica e social?
• Liberdade econômica macro: quem deve se ocupar da atividade econômica: livre iniciativa ou os órgãos do estado?
• Propriedade privada é legítima e legalmente protegida ou tem uma legitimidade discutível e precária? A ‘invasão’ é delito ou é um direito?
• O lucro é uma conquista legítima ou um roubo sujeito à expropriação? O mercado é necessário ou prejudicial?
• A escola deve transmitir conhecimentos ou ideologia? Educação ou doutrinação? É legítimo e legal a censura por deliberada exclusão?
É óbvio que, na prática política, ideologia e doutrinação serão eufemisticamente definidos como ‘espírito crítico’.
• O criminoso é responsável por seus atos ou é a vítima?
• Liberdade de imprensa é uma garantia de liberdade ou é o abuso dos proprietários?
• Qual o critério legítimo para a promoção salarial ou na carreira: desempenho (mérito) ouconfiança política?
• Símbolos religiosos não podem ser expostos em público ou é direito de qualquer religião expor seus símbolos?
• A vida humana é sagrada ou instrumental?
• O que é a legalidade? O estado democrático de direito, suas instituições e normatividade ou esses são apenas atributos formais, inferiores aos critérios substantivos?
• O que é golpe de estado? Um conceito jurídico-político ou um termo usado na disputa política de significado arbitrário?
• Como entender esta frase: Seguir a virtude prejudica o país? (prejuízos e custos da Lava Jato).

3. Destruição da dignidade dos poderes e das funções 

• Plenário do Congresso como palco para danças folclóricas, reunião indígena, concentração de minorias organizadas.
• Ocupação da mesa do Senado por senadores de um partido.
• Legisladores usando cartazes, igualando-se a manifestantes.
• Cenas de pugilato, ‘cuspidas’.
• Obstrução invasiva apoiada por legisladores.

Como se constata, tudo é contestado. E quando tudo é contestado corrói-se o consenso básico.

Não se trata de um consenso absoluto e irreal. Trata-se de um consenso em valores básicos, centrais e de elevada hierarquia, mediante o qual a política e a administração são previsíveis; contêm regras que os cidadãos conhecem, praticam e as instituições protegem; e se consolida numa organização política democrática, unida em torno desses valores e dividida em torno de políticas públicas.

Quando tal não sucede, quando tudo é contestado, quando tudo está sempre aberto a mudanças, o que resulta é uma democracia instável, imprevisível, de precária legitimidade e duração. Tais democracias tendem a desembocar no totalitarismo, na ditadura populista ou na cronificação da instabilidade, o que parece ser o caso do Brasil.

A listagem apresentada permite identificar no mínimo 40
questões intensa e radicalmente divisivas.

Considere-se, entretanto, que nenhuma dessas questões é de importância periférica ou secundária. São todas elas indispensáveis para a configuração política, econômica, social, jurídica e cultural do país e para a qualidade de sua democracia.

A indagação que se impõe é de hierarquia correspondente à gravidade do nosso desafio como nação democrática:

“Como uma nação com tal grau de conflito em seus valores básicos poderá construir e manter uma democracia moderna, autêntica e estável?”

 

* Professor de Ciência Política, ex-reitor da UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton,  criador e diretor do site Política para Políticos

 

 

 

 

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  • Paulo Antônio Briguet
  • 07 Agosto 2017


Uma antologia da vigarice universal contemporânea

(Publicado originalmente em http://www.folhadelondrina.com.br/blogs/paulo-briguet/)

CRIME SEM CASTIGO. A história de um país onde os bandidos são idolatrados e contam com inúmeros benefícios para a redução de suas penas. Nesta curiosa nação garantista, onde uma pessoa morre a cada nove minutos, o mais conhecido meliante apresenta-se como campeão da honestidade e salvador da pátria.

GUERRA À PAZ. Romance baseado em fatos reais. Um pequeno grupo de iluminados decide que os mais variados grupos sociais — pobres e ricos, homens e mulheres, negros e brancos, jovens e velhos, heterossexuais e homossexuais, empresários e trabalhadores — devem guerrear uns com os outros até que a morte os separe. Subtítulo: "A luta de classes universal".

PAIS CONTRA FILHOS. Também inspirado em fatos reais, este romance mostra o conflito bélico que tem como objetivo central destruir a família.

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE CUBA. Narrativa de realismo fantástico em que um pedaço do inferno é apresentado como ilha paradisíaca. Subtítulo: "Os paredões não têm ouvidos".

ARQUIPÉLAGO LULA. Novela surrealista em que um homem nega sistematicamente ser proprietário de um sítio milionário e de um apartamento de luxo, mas acredita fervorosamente ser proprietário de uma nação.

POR QUEM O SOROS COBRA. Antologia de contos de terror em que um bilionário metacapitalista financia grupos esquerdistas em todo o planeta, com as finalidades de reduzir a população mundial (via aborto e drogas), acabar com a liberdade de expressão, sufocar o livre mercado e garantir lucros interplanetários para sempre.

DOUTOR DIVAGO. A trajetória de um acadêmico cuja vida consiste em manter-se à distância de qualquer vínculo com a realidade, enquanto faz greve e garante seu alto salário com estabilidade vitalícia no emprego.

CEM ANOS DE COMISSÃO. A história da aliança indissolúvel entre uma elite política e econômica, homiziada numa cidade-pesadelo, que mantém domínio sobre 200 milhões de pagadores de impostos. Subtítulo: "O país do faturo" (apud Millôr).

EM BUSCA DO MURO PERDIDO. Ensaio antropológico sobre uma tribo que utiliza vestimentas vermelhas e tenta reconstruir a cortina de ferro debaixo da linha do Equador. Subtítulo: "Caindo de Maduro".

MANIFESTO ABORTISTA. Texto revolucionário que fomenta a destruição de seres humanos no ventre das próprias mães, mesmo contra a vontade da maioria esmagadora da população.

OS NOIVXS. Drama de um casal apaixonado — uma mulher e um homem — que tenta esconder a própria identidade sexual para formar uma família opressora e patriarcal.

Alguém pode estranhar:

— Ué, não eram dez livros? Eu contei onze.

De fato, eram apenas dez. Mas é que esse tipo de coisa se reproduz com uma velocidade assombrosa, meu amigo.
 

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  • Rodrigo Constantino
  • 06 Agosto 2017

 

(Publicado originalmente em http://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/artigos/)

Num mundo tão relativista, com tanto lixo efêmero chamado de “arte”, muitos conservadores passaram a pregar o resgate da Beleza. Não deixa de ser curioso, então, que um esquerdista como Paulo Nogueira Batista tenha escrito, em sua coluna de hoje, que a beleza é um “mandamento”. O problema é que, como de praxe, para ele essa “beleza” é puramente estética e está apartada, até por necessidade, de valores morais, de bondade, do que é certo. Eis um trecho:

Sempre me pareceu que o artista verdadeiro sacrifica qualquer “conteúdo”, qualquer “coerência”, por uma bela frase, por um belo gesto, por um belo efeito plástico ou cênico. Como dizia Oscar Wilde, “coerência é a virtude dos que não têm imaginação”. Dos não-artistas, portanto.

O que distingue o artista é a busca incondicional da beleza, em detrimento da verdade, do equilíbrio, do bom senso, da ética, da saúde e até da própria vida. Além disso, leitor, o artista é frequentemente um pobre ser ameaçado, precariamente instalado no mundo. E, se faz concessões, corre o risco de se desvirtuar, de perder o rumo.

Assim, o artista precisa sacrificar, ou deixar em segundo plano, a verdade e a moral. A objetividade e os bons princípios são temas para outros tipos humanos, para o cientista e para o sacerdote, respectivamente. Para o artista, o “conteúdo” enquanto tal não existe propriamente. Nietzsche expressou isso, com perfeição, quando escreveu que só se é artista, verdadeiramente, quando se trata aquilo que os não artistas chamam de “forma” como o conteúdo mesmo da coisa.

Quando um artista migra para outros terrenos (ciência, moral, filosofia, pensamento social, crítica literária) o que acaba dominando, em última análise, é a expressão da beleza. Para o verdadeiro artista, a beleza é o único mandamento. Para bem e para mal, ela interfere o tempo todo. E a obra artística resvala para a mentira, para o engano, para a fabulação. Tangencia a imoralidade, o crime, a perversão.

Há controvérsias. É verdade que Paulo Nogueira fez uma ressalva: “a verdade e a moral podem, sim, coincidir com a beleza, podem aparecer juntas e se reforçar mutuamente. Mas não como regra geral”. Mas sua mensagem essencial parece ser puramente estética, até mesmo anti-moral, e esse talvez seja um vício de artistas brasileiros, mas não necessariamente de artistas de outras terras, com outros valores.

Não sou especialista no assunto. Mas pego carona com quem é: Martim Vasques da Cunha, que escreveu o livro essencial sobre o assunto, especialmente voltado para a arte literária. Em A Poeira da Glória, Martim, inspirado em Mario Vieira de Mello, disseca essa obsessão tão brasileira em separar o Belo do Bom e do Verdadeiro, desfazendo um tripé que se mostra fundamental para a arte eterna. Em um trecho, eis o que o crítico literário diz:

A equivalência do bem e do mal, do certo e do errado, somada a uma ambiguidade literária que se assemelha a um abismo de espelhos, paralisa a sensibilidade nacional – e talvez seja por isso que o brasileiro evita ser sincero consigo mesmo, dificultando como pode a mudança interior. Por não perceber que a única comunicação verdadeira que existe é com “o fundo insubordinável do ser” (expressão fantástica do filósofo espanhol Ortega y Gasset), fazemos justamente o contrário daquele conselho que Teofrasto dava aos contemporâneos todos os tempos: preferimos acolher um homem desprovido de qualquer vida real, elogiando a máscara que se esconde na ironia dos abandonados, quando este “deveria ser mais evitado do que uma víbora”.

Em outro trecho mais adiante, Vasques da Cunha aprofunda o conceito em questão nesse texto:

No passado, muito antes da Idade Média, havia a percepção de que a estrutura da realidade se articulava em três polos de uma tensão orgânica e insuperável: o Bem, o Belo e o Verdadeiro. Apelidados pelos filósofos clássicos de “os três transcendentais”, a força deles existia em seu conjunto – e, se separados, perdiam seu poder de atração para guiar o ser humano neste “vale de lágrimas”. O Bem dava o norte ético, que só podia ser feito se o sujeito tivesse uma educação sentimental correta, se fosse educado numa sensibilidade estética que o orientasse a realizar a bondade e a desprezar o Mal. Se fosse unido com o Belo que tal ação provoca, o deleite que temos quando percebemos que o mundo tem um propósito e um sentido – isto nos ajudava a permanecer na Verdade, no Bem que se unia ao Belo não só porque era bom e bonito, mas sobretudo porque era a coisa correta a fazer.

Para Martim, à medida que o homem passou a se tomar como a medida para todas as coisas, abandonando a ideia de Deus como norte, a tensão orgânica que animava os três polos se desintegrou, e “um processo de fragmentação passou a ser o verdadeiro eixo do mundo moderno, a crise que ainda não conseguimos superar”.

Dessa forma, criou-se um conflito grave entre o princípio ético e o princípio estético, entre o Verdadeiro e o Belo. No Brasil, essa divisão encontrou solo fértil, com um povo obcecado com a estética, mas nem tanto assim com a verdade. Seria um traço de imaturidade, de fuga, pois mergulhar no próprio interior em busca da verdade pode ser uma experiência angustiante, e ter que buscar o mesmo nos outros pode ser ainda pior. Martim explica:

Ao mesmo tempo, a vida com os outros é complicada porque os seres humanos também possuem as suas próprias vidas interiores, as suas respectivas realidades ensimesmadas. Isto só pode causar uma única coisa: conflitos inevitáveis. Então, o que fazemos para suportar isso? Muito simples: inventamos nossas próprias vidas, criamos reinos interiores em que, obviamente, somos nossos próprios monarcas. Nós somos os próprios modelos a quem seguimos – e a quem os outros devem seguir sem hesitação, pelo menos segundo a nossa cabeça. A nossa vida torna-se, enfim, uma obra de arte e queremos que os outros sejam apenas detalhes em uma pintura ou um palco de teatro onde somos os atores, os diretores, os dramaturgos e, de quebra, os contrarregras.

Nessa subjetividade excessiva, de forma um tanto mimada, deixamos de lado a busca pelo universal e eterno e nos regozijamos com a estética pura, sem substância, sem embasamento, sem elo com a Verdade. No mundo apenas estético, o sujeito vê a sua vida e a dos outros como um quadro, uma escultura. No mundo ético, é necessário perceber que há escolhas morais em jogo, que envolvem um compromisso, uma responsabilidade perante elas.

O terceiro estágio seria o religioso, “em que há uma abertura para o transcendente e ele aceita que, após ter passado pelo Belo e pelo Verdadeiro, deve deparar-se com o Bem”. Essa etapa parece bem distante do povo brasileiro, que ficou preso no primeiro estágio:

No Brasil, a compreensão da vida por meio de um ponto de vista meramente estético é o que caracteriza o comportamento do seu cidadão. […] O brasileiro é possuído por uma ideia de Belo que não precisa do Bom nem muito menos do Verdadeiro. O que lhe interessa é a aparência, o disfarce, a dissimulação […] Essa “psicologia do extrovertido” é mais um reflexo da insinceridade que domina as relações entre os brasileiros, insinceridade que tem raízes no fato de que o indivíduo que habita este país não consegue ser verdadeiro consigo mesmo.

São constatações duras, incômodas, mas verdadeiras. E nossa arte, nossa literatura, espelha esse traço de nossa personalidade. Muito apreço pela casca, pela forma, e pouca preocupação com o conteúdo. Um povo superficial, afetado, vidrado na estética, mesmo que a “beleza” não passe de um grande truque de mágica, de uma enorme mentira, de um falso verniz que esconde a podridão interior. Uma vila de Potemkin, feita para impressionar os demais, sem qualquer substância ou pilares sólidos.
 

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  • Bruno Braga
  • 05 Agosto 2017

(Publicado originalmente em http://b-braga.blogspot.com.br/)

 

Com os sucessivos escândalos que diariamente chocam o país, o que escrevo aqui pode estar desatualizado ou fora do tempo. No entanto, mesmo com a avalanche de notícias e denúncias, é algo que não pode ficar para trás, soterrado: trata-se de um documento emitido pela CNBB sobre a grave crise política.

Não, o objetivo não é fazer um comentário exaustivo do documento. Não é tratar das atribuições específicas da CNBB nem da falta de legitimidade da Conferência dos Bispos para apresentar-se em nome da Igreja - como se fosse (a) Igreja Católica - em questões políticas. Não cabe falar sobre o tom de declarações do mesmo tipo, afinadas frequentemente com o esquerdismo. Não é o momento para narrar o aparelhamento da CNBB, que, como já é de conhecimento público, contribuiu de forma decisiva para a ascensão do criminoso esquema de poder comuno-petista. Não. O objetivo é considerar um ponto bem determinado do documento: a exigência de "um resgate da ética na política".

Parece um mau sinal o fato de uma declaração assinada por Bispos católicos não conter uma só menção a Nosso Senhor Jesus Cristo. Para pastores que se mostram tão preocupados com a corrupção da classe governante, é no mínimo estranho não trazerem à consciência das pessoas o temor e a justiça de Deus, e o próprio Jesus Cristo como modelo de conduta. Eles reivindicam e exigem a ética, mas se esquecem até mesmo da lei divina, que já determina: "não roubar", "não levantar falso testemunho", "não cobiçar as coisas alheias".

De qualquer maneira, o que é a tal ética? Os Bispos, aparentemente, fazem referência a uma "conduta íntegra" - por parte do servidor público - e aos "valores" da "honestidade" e da "justiça social" - exigidos para que se tenha um "novo modo de fazer política".

Claro, normas de conduta são importantes. Contudo, elas estabelecem compromissos na camada mais superficial da vida humana, no domínio estritamente mundano e material. Tais compromissos, para serem efetivos, precisam de outros ainda mais profundos, que sejam capazes de comprometer a pessoa inteira. Sim, pois a atividade - a política, especificamente - ocupa somente um período de tempo na vida diária, apenas uma parte da existência, enquanto a virtude precisa abarcar a pessoa como um todo, e não só no instante em que está dedicada ao serviço público, mas em todos os momentos e para além do tempo.

No âmbito mais profundo do ser, o que vem do exterior tem uma voz mais baixa e uma autoridade mais frágil, que precisa muitas vezes da vigilância, da correção e até mesmo de uma pena. Nesse domínio, é necessário estabelecer um compromisso do coração, que é mais dócil - não à letra, a uma norma de conduta - mas a outra pessoa. Talvez seja possível verificar isso na própria experiência, pois parece evidente que um compromisso com o pai, com a honra da mãe, ou uma palavra dada ao irmão, inflamam na pessoa uma seriedade e uma dedicação superiores aos apelos vindos de um código de postura no trabalho. Agora, e se essa pessoa for mais que o pai, a mãe e o irmão, uma vez que só ela tem acesso ao coração do indivíduo? Uma pessoa que é ela mesma o caminho, a verdade e a vida, e que ao encontrá-la se estabelece um compromisso com uma justiça que ultrapassa o tempo e que é para toda a eternidade. Pois foi justamente essa Pessoa que os Bispos esqueceram de mencionar no documento, embora eles mesmos tivessem o dever de representá-La.

Enfim, o documento da CNBB, longe de ser uma luz, é ele mesmo expressão de uma crise ainda mais profunda, pois mostra, infelizmente, a incapacidade dos Bispos para indicar o único antídoto contra o Mal, o apoio firme e sólido contra as incertezas e o caos político, o modelo a ser seguido e único capaz de possibilitar uma conduta efetivamente íntegra. Em vez de falarem ao coração, muitos deles cederam à tentação de politizar a fé. Aliás, tudo não começou com uma campanha comuno-petista pela ética na política, "abençoada" por "apóstolos" de uma teologia fraudulenta - a Teologia da Libertação? As consequências estão ai. No Centenário de Nossa Senhora de Fátima, é impossível não lembrar a sentença profética da Irmã Lúcia: "são cegos a guiar outros cegos".


 

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  • Ricardo Bordin
  • 05 Agosto 2017

 

(Publicado originalmente em https://bordinburke.wordpress.com)

 “Fica autorizado o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, em apoio às ações do Plano Nacional de Segurança Pública, no Estado do Rio de Janeiro, no período de 28 de julho a 31 de dezembro de 2017”.

Por meio deste decreto, Michel Temer enviou um contingente de aproximadamente 10 mil militares para o patrulhamento das ruas e para a realização de operações contra organizações criminosas no RJ.

Considerando o incremento do número de homicídios dolosos no estado na casa dos 24% de 2016 para o corrente ano, aparenta ser medida muito bem-vinda, à primeira vista, determinar que soldados de Exército, Marinha e Aeronáutica ombreiem esforços com os agentes de segurança locais, correto?

Não fosse, claro, por um detalhe crucial: a lei penal vigente no Brasil, a qual impede que bandidos sejam tratados como tais – sob o aplauso de intelectuais intoxicados de Foucault -, precisará ser igualmente seguida pelos militares em suas ações ostensivas.

Ou seja, eles também irão trabalhar de mãos atadas, com o freio de mão puxado.

Neste cenário, que diferença faz aumentar o número de indivíduos empregados no combate aos criminosos, ou mesmo elevar o potencial lesivo das armas de fogo empunhadas, se, mediante situações de enfrentamento com marginais da mais alta periculosidade, tanto policiais quanto militares precisarão esperar serem alvejados para somente então reagir – sob pena de serem eles processados administrativamente?

Que diferença faz prender um número maior de delinquentes se a Justiça irá determinar sua soltura logo em seguida – seguindo, no caso, o previsto em leis elaboradas sob o argumento da superlotação de presídios (já que vagas em instituições prisionais não são criadas em número suficiente justamente por conta da mentalidade de que “devemos construir escolas e não presídios”)?

De que adiantaria largar pelas ruas androides armados até os dentes, como o RoboCop, se os meliantes que apavoram cidadãos honestos e ceifam vidas sem pestanejar são tratados como “vítimas da sociedade desigual”, como pessoas que jamais tivessem tido opção de não ingressar no crime? O que esta máquina ultra-poderosa poderia fazer contra um “dimenor” defendido por Psolistas com unhas e dentes mesmo quando comete as maiores atrocidades? Como ela iria efetuar prisões de assassinos, fazendo uso de meios de busca e localização extremamente avançados, se menos de 8% dos homicídios do Brasil são solucionados (ou seja, a Polícia Civil também está largada às traças)?

Pior: como poderia proceder este herói futurista contra a violência urbana quando até mesmo o auto de resistência à prisão for proibido, como quer o deputado Chico Alencar?
Não pensem, portanto, que o pessoal de verde-oliva poderá acrescentar muito à segurança do povo fluminense, uma vez que não há porque os bandidos os temerem mais do que aos policiais militares: tantos estes como aqueles estão submetidos a um regramento que inviabiliza totalmente seu trabalho.

Já são recorrentes os casos de armamento roubado de dentro de quartéis, exatamente em decorrência da constatação, por parte dos fora-da-lei, de que estão protegidos sob o manto da impunidade e da inversão de valores predominante no Brasil. Até mesmo casos que beiram o deboche já vêm sendo registrados.

Como criminosos costumam ser sujeitos muito pragmáticos, pode ser que eles, sabedores de que, mais dia menos dia, as forças armadas acabarão indo embora, resolvam diminuir o ritmo de suas atividades ilícitas até a poeira baixar e o reforço militar partir.

Se isto realmente ocorrer, tão logo a PM seja devolvida a própria sorte no Rio de Janeiro, a carnificina de policiais, cujas mortes já ocorrem em ritmo muito superior à média da população (mesmo em um país com 60 mil homicídios ao ano), irá atingir níveis ainda mais alarmantes, visto que nada terá sido feito pensando em resolver o verdadeiro problema: a legislação penal anacrônica e deturpada por marxismo cultural – que vê o bandido como apenas mais um “oprimido” pelo “grande capital” a ser manipulado como massa de manobra.

Ou seja, ou reforma-se com urgência o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execuções Penais e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou surtirão efeito nulo esta e quaisquer outras providências tomadas para, supostamente, tornar mais segura a vida dos cariocas e dos demais brasileiros – o que representa, em verdade, tudo que aqueles dotados de visão estatizante desejam: semear o caos até que as próprias pessoas implorem pela atuação redentora do Estado (o qual atenderá ao pedido de bom grado, apenas, claro, cobrando mais um pouco de impostos para tão nobre tarefa e atribuindo a si mesmo ainda mais poder de intervir em nossas vidas).

Mas tais reformas legislativas não serão factíveis enquanto a mentalidade nacional dominante for ditada por “progressistas” que consideram que “cadeia não resolve” e que todo criminoso é legalzinho como os personagens do filme Carandiru. Não é à toa que Jair Bolsonaro não consegue aprovar quase nenhum dos projetos de lei que apresenta e encampa: como angariar o apoio necessário para endurecer penas de estupradores e reduzir maioridade penal em meio a um congresso tomado por parlamentares esquerdistas que impuseram o estatuto do desarmamento reprovado fragorosamente em 2005 (alguns dos quais querem até mesmo desarmar a polícia)?

Em suma: a iniciativa da Presidência da República de correr em socorro da cidade maravilhosa é louvável, mas resume-se a enxugar gelo – apenas com mais gente no processo agora…

 

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