Percival Puggina

29/12/2020

 

Percival Puggina

 

            Em vídeo recente, falei sobre uma pandemia de ideias e ações de natureza totalitária que, nascida no Ocidente, se volta contra a própria Civilização que lhe permitiu surgir. Opera como um vírus que acomete indiferentemente indivíduos e instituições, mediante – a analogia com a Covid-19 é adequada – uma espécie de spray que se difunde em todos os espaços do ambiente cultural. Afeta, prioritariamente, as estruturas psicológicas, os valores morais e a religiosidade das pessoas. É uma “desconstrução” individual e social que leva à perda de referências e à decadência.

            Pensando sobre como escrever sobre isso em poucas linhas, lembrei-me do segundo parágrafo da Declaração de Independência dos Estados Unidos. Ali, em 4 de julho de 1776, os representantes das 13 colônias parecem falar conosco ao dizerem:

“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados.”

Faz bem à alma ler essas palavras.

1º) Elas referem haver verdades evidentes por si mesmas. Aos olhos e ouvidos de hoje estão a dizer que relativizar tais verdades mediante comparações com sociedades primitivas, ou incivilizadas, ou não democráticas, destrói um dos fundamentos da ordem política e da civilização.

2º) Elas afirmam que todos os homens são criados iguais, mas não afirmam que uma sociedade deva ser igualitária.

3º) Elas proclamam que fomos criados, que há um Criador, e que somos, por Ele, dotados de direitos inalienáveis, entre os quais os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Tais direitos, portanto, são naturais à pessoa humana. Não é o Estado, nem são os governos que os concedem, pois nascem conosco.

4º) Elas declaram que os governos são instituídos entre os homens para “assegurar” esses direitos. Assegurar não é conceder, não é autorizar, menos ainda é criar.

Governos não devem, portanto, ser instituídos entre os homens desconhecendo-lhes a origem e a dignidade que daí advém. Somos criados por Deus, não nascemos como pés de alface. Governanças globais não podem ser instituídas para controlar a humanidade inteira, dominar-lhe a linguagem, o pensamento e planejá-la em laboratório. Ninguém tem legitimidade para isso!

Infelizmente, ensina-se nas faculdades de ciências humanas e na maior parte dos cursos de Direito que não existe uma Lei Natural. Negam-se os princípios da Declaração de 1776. Aqueles princípios são refugados porque são ditos mutáveis, porque podem ser objeto de “modulação”. Ora, quando tais ideias ganham espaço no ordenamento jurídico de um país, passam a fazer vítimas, por vezes em massa. Genocídios evoluem daí. Campos de concentração e valas coletivas nascem daí.

Pondere. Pode a moral não afetar o Direito? Pode a inexistência de verdades evidentes por si mesmas ser a única verdade absoluta, ainda que desmentida por séculos de história? Pergunte a cubanos da Ilha se algum direito lhes está sendo negado. Eles lhe dirão que sim, que o Estado os impede de serem livres. A norma jurídica ou o ato administrativo que os proíbe de portar um cartaz na via pública pedindo liberdade penaliza o exercício dessa liberdade. Não revoga, contudo, a Lei Natural e não corresponde a um “direito” do Estado.  E assim vão-se os direitos naturais, um após o outro, “como as pombas do pombal” até que só reste um corpo ao qual é negada até a vida do espírito.

Temos que apoiar quem vê isso e negar voto e poder a quem não vê.

 

* Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

27/12/2020

 

Percival Puggina

 

         Joãozinho, não bastante ser muito rico, tinha sonhos de grandeza. Queria ser presidente. Dinheiro sem poder é só dinheiro. Poder, sem dinheiro é só poder. E Joãozinho sofria com isso. Os anos passavam e ele circulava assiduamente em meio aos poderosos. Entre suas muitas organizações se incluía a LIDE – Grupo de líderes empresariais que reunia anualmente empresários e poderosos figurões da política nacional num paraíso de Comandatuba (BA). Mas poder, mesmo, ele não tinha. Toda noite, ao contemplar estrelas pela janela do quarto, Joãozinho antevia crescer ali fora um gigantesco pé de feijão que o levaria até elas. Ele queria ser uma estrela luminosa na constelação do poder.

Foi assim que, depois de ocupar alguns cargos, Joãozinho se elegeu prefeito de São Paulo. Glória pequena para os anseios que lhe abrasavam o coração. Assumiu com aprovação de 44% e abandonou o posto, 16 meses depois, com apenas 18%. Queria ser governador de São Paulo.

Havia, porém, uma dificuldade. Como eleger-se governador, se rejeitado pelo povo da capital onde fora prefeito? Joãozinho tinha sua fada protetora. Como todas as fadas, bruxas e gnomos, a fada madrinha de Joãozinho Doria sabia, em 2018, o que apenas os grandes meios de comunicação e institutos de pesquisa, batendo pé no chão, se recusavam a ver: Bolsonaro, tapado de votos, seria presidente da República. E a fada levou-o até ele. Nasceu, ali, para Joãozinho, o que ele imaginava ser o pé de feijão que o levaria aos píncaros do poder político.

Eleito governador, graças ao apoio do capitão, que fez mais da metade dos votos em São Paulo no primeiro turno da eleição, e quase 70% dos votos no segundo turno, Joãozinho marcou território e tomou por inimigo aquele a quem devia sua vitória.

O pé de feijão, porém, em vez de crescer, encolheu. Em seguida sua rejeição voltava a superar sua aprovação. O coronavírus secara a terra? Joãozinho ficou muito triste vendo seu pé de feijão fenecer e flexionar até voltar ao chão. Enquanto isso acontecia, resolveu adotar como modelo o pior ministro do governo Bolsonaro, idolatrado, apesar disso, pela grande imprensa. Se o Mandetta usa o vírus para aparecer diariamente na TV e encanta esse jornalismo de poucas luzes, eu posso fazer a mesma coisa, deve ter pensado ele. E armou palanque paulistano com o noticiário do vírus. Era a exaustiva e depressiva receita da moda.

E o pé de feijão de Joãozinho Doria continuava, claro, sem tomar corpo.

Certo dia, a fada madrinha, já á beira de um ataque de nervos, enviou-lhe um comerciante chinês. O esperto mercador falou de uma vacina capaz de fazer o pé de feijão sarar seus males e crescer a perder de vista. No alto, haveria à sua espera uma harpa encantada, uma galinha poedeira de ovos preciosos, um gigante a derrotar e, claro, a ambicionada faixa de usar no peito.

***

As duas últimas pesquisas presidenciais são desalentadoras para Joãozinho Dória. Segundo Paraná Pesquisas (04/12), enquanto o atual presidente tem 36% das intenções de votos, seguido por Ciro Gomes com 12%, ele tem apenas 5%; a pesquisa Poder Data/Band (23/12), posterior, mostra Bolsonaro com 36%, Haddad com 13% e ele, Joãozinho, com apenas 3%. E a Coronavac do mercador chinês parece não ser lá essas coisas. Mas isso é outra história.

 

* Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

Percival Puggina

24/12/2020

 

Percival Puggina

 

         Ressoa nesta noite, antigo e sempre novo, o anúncio do Natal do Senhor. Ressoa para quem está alerta, como os pastores de Belém há dois mil anos; ressoa para quem aderiu ao apelo do Advento e permanecendo atento, está pronto a acolher a mensagem feliz que canta a liturgia: “Hoje nasceu o nosso Salvador”, (João Paulo II, homilia de Natal do ano 2000).

         Dias antes dessa homilia, leigo católico cativado pela vida e obra de tão extraordinário pontífice, escrevi um artigo reivindicando para ele o título de “Magno”, reservado pela Igreja a poucos, como São Gregório Magno e Leão Magno, que marcaram o Cristianismo, o papado e suas respectivas épocas de modo definitivo, com incomparável – a palavra continua sendo adequada – magnitude.

         Gregório, misto de romano da velha estirpe e de monge capaz do maior ascetismo, como o descreve Daniel-Rops, emerge numa época em que o Império Romano sucumbira às hordas bárbaras. Era preciso começar tudo outra vez e Gregório percebe que a evangelização dos invasores deve ser conduzida como obra de toda a Igreja. Gregório Magno faz a síntese das duas cidades de seu muito admirado Agostinho: pés e mãos na cidade dos homens; olhos e coração na cidade divina.

Leão, dois séculos antes, vivera as lutas contra o declínio do Império, salvando o que podia. E nesse enfrentamento atribuiu à Sé Apostólica um primado religioso, moral e cultural que ela nunca mais haveria de perder.

         É bem conhecido o episódio do encontro entre o terrível huno Átila e Papa Leão I. O “Flagelo de Deus” varria o Império e se preparava para lançar um ataque definitivo sobre Roma. À margem do Míncio vê, no lado oposto, um curioso cortejo aproximar-se em sua direção, entoando cânticos. Eram sacerdotes, monges e diáconos, portando cruzes, pendões e ostensórios, conduzidos por um ancião de barbas brancas. Átila avança com seu cavalo até um banco de areia e o interroga: “Como te chamas?”. No silêncio que se seguiu, o ancião responde: “Leão, papa!”, e cruza o rio ao seu encontro.

         A posterior narrativa de Leão ao imperador Valentiniano sobre esse episódio, que acabou dando origem a muitas lendas, não revela o conteúdo do diálogo que manteve com Átila. Certo, porém, é que o “Flagelo de Deus” recuou.

         Foi pensando em personagens assim, extraordinários, que sugeri em artigo, às vésperas do Natal de 2000, o cognome Magno a João Paulo II. Eu o via conjugar as virtudes de Gregório e Leão. Intelectual, valente e diplomático como o primeiro, político e asceta como o segundo, reprovou energicamente quaisquer guerras, levou chumbo e cruzou todas as fronteiras com a mensagem da solidariedade e da paz. Fez penitência, orou, escreveu, foi firme e fiel. Como Leão, foi ao encontro do Átila soviético. Teve atuação decisiva no recuo daquele regime, na queda do Muro, na democratização do Leste Europeu. Conseguiu, até mesmo, que os católicos de Cuba pudessem comemorar, publicamente, o Natal do Novo Milênio.

         Assim o via, também, a multidão dos fiéis. Em 8 de abril de 2005, seu velório foi assistido pela TV por 1 bilhão de pessoas. Quatro milhões se reuniram nas praças e ruas de Roma. Trezentas mil na Praça de São Pedro. Representações oficiais de 200 países. Foi o maior funeral da História da Igreja. De repente, naquela multidão, irrompe um brado que se reproduz nas praças, nas ruas, nas sacadas, nas telas: “Santo súbito!”. Levem logo esse homem de Deus, esse irmão de fé, aos altares! – estavam a clamar em uníssono.  

         Assim foi o grande Karol Wojtila, São João Paulo II, Magno em vida, referência da minha geração, cujos Natais nunca foram “politicamente corretos”. Feliz Natal a todos!

 

* Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

23/12/2020

 

 

         Acompanhando a política brasileira ao longo de décadas, posso afirmar sem dar chance a equívoco que, durante muito tempo, a moda era responsabilizar a infidelidade partidária pelos maus caminhos da vida pública nacional. O Brasil, dizia-se, só tomaria jeito quando acabasse o troca-troca de partido que permitia aos detentores de mandato transitar de uma sigla para outra sem constrangimento e com bons ganhos adicionais. Aquilo, definia Boris Casoy, era uma ver-go-nha. Que me lembre, fui voz isolada a afirmar o quanto uma regra de fidelidade partidária seria inepta como solução para nossos problemas institucionais. E foi, não foi? Quem tem problemas de convicções ou caráter não muda o modo de ser, esteja em que partido estiver.  Ademais, são nossos partidos costumeiramente fiéis a algum princípio válido?

         Passados alguns anos, os olhares ansiosos da sociedade foram desviados para a imperiosa e redentora necessidade de uma Lei da Ficha Limpa. Mobilização nacional. Faxina geral na nação. CNBB, OAB, suas coligadas habituais e a grande imprensa cerraram fileiras e forçaram a aprovação de Nova Lei Áurea que iria salvar o Brasil dos políticos desonestos. Se alguém mais além de mim se atreveu a dizer e escrever que era uma lei inepta, que se apresente. Em setembro de 2010, em artigo para o Diário do Comércio, antecipei que iríamos trocar fichas sujas por outras novas, mas estas, logo adiante, se sujariam porque o verdadeiro ficha-suja, corruptor incurável, era o modelo institucional brasileiro. Não foi isso mesmo que aconteceu? A que nos levaram, tanto a eleição de 2014 quanto a grande renovação do Congresso em 2018?

         Oitenta e cinco por cento dos senadores que buscaram reeleição no último pleito foram derrotados nas urnas! Mas não há na Casa, passados dois anos, mais do que 22 ou 23 votos entre 81 para qualquer projeto moralizador ou transformador, tipo CPI da Toga, impeachment de ministros do STF, prisão após condenação em segunda instância, alteração do modo de compor o Supremo e por aí vai. Ou melhor, não vai. Lamento dizer que, de novo, eu estava certo. A ficha mais suja de todas é a do modelo institucional e do sistema eleitoral que regem nossa política.

Nosso tão louvado e preservado presidencialismo de cooptação merecia voz de prisão!

         É ele que responde pelas escolhas dos ministros do STF. É ele que levou Bolsonaro a indicar – num entendimento com os notórios Toffoli, Gilmar e Alcolumbre – o incógnito Nunes Marques para a cadeira vaga daquela Corte. Pois foi esse novato que concedeu liminar para revogar artigo da Lei da Ficha Limpa, desobstruindo o caminho para retorno à cena de políticos cujas candidaturas foram por ela barrados.

         Uma coisa é dizer que a lei seria inepta, como de fato foi, para os fins pretendidos. Outra, bem diferente, é reabrir porteira para maus políticos cujo retorno à cena só irá agravar os embaraços e reforçar o contingente de criminosos já instalados em posições de poder e influência sobre nosso cotidiano.

A ética, que muitos cobram como caminho necessário (como de fato é) e suficiente (coisa que não é) só ganhará relevância na cena política quando o modelo institucional deixar de agir na direção oposta.

 

* Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

Percival Puggina

20/12/2020

 

Quando criança, apanhado em alguma travessura de cuja responsabilidade não podia escapar, ouvido o altissonante – “Quem fez isso?” – eu respondia: “Até o maninho. E eu também”. Tenho um amigo que não pode usar seu cartão de crédito porque está sempre com o limite estourado. Ele culpa o cartão por seus problemas. Engraçado? Não. Quando isso se torna habitual, seja individualmente, seja como sociedade, tem-se um problema de natureza moral.

Afinal, o que há com as assustadoras contas nacionais? O mal está no que devemos ou no que gastamos? Tenho certeza de que se gastássemos menos com o supérfluo este artigo estaria tratando de investimentos. Botar a culpa nos outros vai derrubar o futebol como esporte nacional!

O culpado pelo endividamento nacional é quem comprou títulos do governo; a propriedade alheia é a causa dos males do mundo, junto com a globalização, a banca internacional, o neoliberalismo, os EUA, a China. A riqueza cria a pobreza... Temos problemas por conta da dívida e não porque sistematicamente houve excesso de despesa. A lista é infinita.

Ninguém lembra mais, mas entre 26 e 28 de abril de 1999, no Rio de Janeiro, num superlotado Teatro João Caetano, com promoção da CNBB e apoio de outras entidades tão sábias quanto CUT e MST, ocorreram rumorosas sessões de um certo Tribunal da Dívida  Externa. O veredicto de seu corpo de jurados concluiu pela obrigação dos credores de cancelar as dívidas dos países pobres. Exigiram “moratória soberana” (haja criatividade!), auditoria da dívida, renacionalização e democratização de empresas estratégicas, e por aí afora. Engraçado? Não. Um grave problema moral. Engraçada é a criança que quando a mãe diz não ter dinheiro para comprar algo pede para ela tirar no caixa automático do banco, logo ali. No mesmo raciocínio se alinham as muitas fragmentações com que minorias buscam atribuir seus problemas à maioria escolhida como antagonista.

O que o Brasil precisa não é de inventar credores e exumar devedores, mas de identificar as verdadeiras razões de seus desajustes sociais e o modo de saná-los. Somos membros de uma sociedade que estampa desníveis infames. A miséria, a ignorância, a falta de oportunidades não têm cor de pele, idade, ou preferência sexual. Agem contra a nação, os poderes de Estado que determinam despesas sem cobertura, ou a corporação que reivindica privilégios.

Ainda esta semana escrevi sobre os problemas da educação no Brasil. Sei porém que, para a maior parte dos que a fazem, a equação se resolve com mais ideologia e mais verbas. Consideram melhor preservar o slogan – Universidade pública gratuita e de qualidade para todos – do que fazer a coisa certa. É mais barato posar de justiceiro com os direitos alheios do que fechar as torneiras pelas quais se esvaem recursos que deveriam servir para acabar com a injustiça ali onde ela crava perversas raízes sobre o destino de milhões de crianças.

 

 

* Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

Percival Puggina

18/12/2020

 

 

         Assisti com grande interesse à serie Borgen, da Netflix. Apesar da usual chatice “politicamente correta” que vem dominando de modo opressivo a cultura mundial, a série é interessante por quanto mostra do cotidiano político da Dinamarca. Revela a natureza das negociações políticas para compor maiorias parlamentares (sem as quais, lá como aqui, ninguém governa). Exibe o dia-a-dia de uma primeira-ministra, chefe de família, sem secretária, a preparar café para os filhos, no mesmo apartamento de sempre. Acompanha o marido a cumprir boa parte das atribuições cotidianas familiares. Deixa evidente que estar no topo da escada da política não é fonte de regalias, mas oneroso posto de serviço com encargos adicionais.

         As conversas sobre política entre os personagens de Borgen me fizeram lembrar algo que escrevi há quase dez anos e que preserva atualidade entre nós. Transcrevo aqui, com mínimas adequações.

         De uns tempos para cá, a cada campanha eleitoral, mais e mais partidos transmitem de algum modo, a mensagem de que vão "cuidar bem das pessoas". Perceberam? Já passamos da fase do paternalismo e entramos num patamar superior - o maternalismo. Partidos e candidatos disputam troféu na produção de zelos maternais. Nós, os cidadãos, somos vistos nessas peças publicitárias como bebês de cueiros e mamadeira, cujas vidas dependem dos cuidados da mamãe estatal. Por isso, aquele primeiro domingo de outubro a cada quatro anos, quando ocorre eleição presidencial, deveria ser instituído como “Dia das Mães" cívico. Nessa emotiva data, digitamos na boca da urna nossa mensagem de gratidão à legenda que consideramos mais promissora em bons cuidados. Fôssemos todos gratos filhos da Pátria deveríamos deixar sobre as teclas lágrimas de nosso reconhecimento ou esperança. Afinal, pergunto, lendo o noticiário de hoje, 18 de dezembro: “Mamãe vai nos levar para tomar vacina?”.

         Não, não, não. Não estou exagerando. Bem, talvez um pouco, sim. Mas reconheça-se: é exatamente isso que vem sendo ensinado ao povo brasileiro mediante inesgotáveis demonstrações práticas. É a disputa dos corações para domínio das mentes. Com uma das mãos distribuem toda sorte de bônus. Com a outra enviam a conta para os pagadores de impostos. Como não poderia deixar de acontecer, enquanto "cuidam das pessoas", os agentes dessa política maternalista deixam morrer à míngua as funções essenciais do Poder Público. O pior, o mais nocivo, é que tais estratégias funcionam. E por funcionarem, deformam as consciências, convertendo pessoas em seres carentes, pets de última geração, aos cuidados do Estado.

         O ser humano é portador de eminente dignidade natural. Abdica a essa dignidade quem aceita ser passivo nas suas relações com os outros e com o Estado. Fomos criados para existirmos em sociedade e em solidariedade, mas sem deixarmos de ser nós mesmos, indivíduos sempre, nos nossos erros e nos nossos acertos. E, por isso, responsáveis. Aceitar passivamente que o Estado esteja aí para cuidar da gente é desconectar-nos das fontes de energia interior que nos impelem a cuidarmos bem de nós mesmos e dos nossos. E equivale a transferir essa energia pessoal, com grande perda, para as centrais cada vez mais totalizantes do Estado.

         O Estado brasileiro é forte onde deveria ser fraco e fraco onde deveria ser forte. É forte nos meios de ingerência e concentração de recursos e de poder, a ponto de estar acabando com a Federação. E fraco, fraquíssimo, em suas funções essenciais, a começar pela manutenção da ordem e segurança da sociedade. Não cabe a ele tomar dos indivíduos as rédeas dos seus destinos. Cabe-lhe criar as condições - repito: criar as condições - para que os indivíduos se desenvolvam. Portanto, só lhe compete fazer aquilo que as pessoas não possam fazer por si. E mesmo quando tais ações forem necessárias, deve o Estado reconhecer seu papel subsidiário. Fica bastante coisa para o Estado, sim. Mas sempre na justa medida, sem invadir o espaço sagrado onde cada um é soberano de si mesmo. Procure, leitor, os lugares onde as pessoas são mais necessitadas e chegará àqueles em que o Estado decidiu ser tudo para todos. Ou sequer apareceu para fazer o que deveria porque está metido onde não deve.

* Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

Percival Puggina

16/12/2020

 

         Há de parecer um contrassenso. Há algumas décadas, temia-se pela empregabilidade dos mais idosos. Dizia-se que eles seriam rapidamente superados e, muito provavelmente, substituídos pela juventude que se preparava para entrar no mercado de trabalho. Em reportagens sobre o assunto, li que indústrias japonesas tinham uma sala de estar e de convivência onde seus velhinhos podiam se sentir úteis, convidados a opinar perante certas situações específicas. Cortesias orientais para antigos ocupantes de um mundo que rejuvenescia. Não sei se tais locais ainda existem.

         A vida, porém, furou a bola de cristal, ao menos no Brasil. No país do futuro, o Estadão do dia 14 deste mês publicou matéria que merece ser lida, da qual extraí pequeno trecho:

“... Ou seja, de cada dez trabalhadores com até 24 anos de idade, quase oito trabalham em situação vulnerável, segundo levantamento da consultoria IDados. Em números absolutos, isso significa perto de 7,7 milhões de pessoas. Na faixa etária entre 25 e 64 anos, o porcentual é de 39,6% e, acima de 65 anos, de 27,4%.” O inteiro teor da matéria pode e deve ser lido aqui.

         A constatação não surpreende se recordarmos o minucioso relatório da UNESCO intitulado "Perfil dos professores brasileiros" (2004) – sem dúvida o mais alentado e minucioso que já li – constatou (tab. nº 55, pag. 108) que 72% dos nossos “trabalhadores em educação” assumiam como sua principal função "formar cidadãos conscientes". Apenas 9% priorizavam "proporcionar conhecimentos básicos" e não mais de 8% sublinhavam a importância de "formar para o trabalho". Noutro item da mesma pesquisa (tab. nº 64, pag. 127) 64,5% dos professores tinha consciência, em grau alto e muito alto, de exercer um "papel político". Infelizmente, não se requer nova investigação para saber que de lá para cá, ao longo dos últimos 16 anos, também nisso a situação só se agravou.

         É só lembrar: o aparelhamento e a ação política dos sindicatos da categoria; a partidarização das universidades públicas; a ocultação de autores conservadores e liberais; a orquestração depreciativa contra o projeto Escola Sem Partido; atos de formatura que se assiste por aí. Nada de estranhar num país que cultua Paulo Freire, que assume atitude religiosa perante a obra mais descaradamente política que já li sobre educação e continua a influir em tantos no comando da barra de giz ou do ponteiro lazer.

         O PISA de 2018, divulgado em dezembro de 2019, continha apenas uma notícia boa para o Brasil: a convicção de que assim como está não dá para continuar. Lembre-se, porém, que, em nosso país, tudo precisa mudar, contanto que, para cada um, tudo fique como está.  Resultado: num rol de 79 países, conseguimos as posições entre 58º e 60º em leitura, entre 66º e 68º em ciências e entre 72º e 74º em matemática. A variação decorre da margem de erro adotada pela pesquisa.

O resultado dessas posições de vanguarda, da formação de jovens de pouco estudo e nenhum livro, entregues a seus “criativos e não reprimidos impulsos”, está custando muito caro àqueles em quem se investiu de modo tão equivocado. Outro dia, deu-me dó de uma atendente de caixa quando a vi, disfarçadamente, contando nos dedos para calcular um troco de R$ 12 reais. Sem sucesso, apelou para a calculadora.

Sempre que alguém se apresentar como trabalhador em educação, lhe falar em educação para a cidadania, se disser freireano, saia correndo, chame a mulher e as crianças e grite por socorro, SOS, Mayday, salve-se quem puder! Em seguida seus filhos estariam falando em alternativos, fascistas, neoliberais, negacionistas, golpistas, excluídos, oprimidos, bem como em utopia, problematizar e por aí afora.

 

 

* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

13/12/2020

 

         Anos 50. Nas manhãs de sábado, meu pai tinha o hábito de ir ao Café Internacional, no centro de Santana do Livramento, cidade onde vivíamos e onde nasci. Na minha memória de criança era um local estritamente masculino, convergência de amigos e conhecidos que se alinhavam em grupos ao longo do balcão. Por vezes, eu ia com ele. Não lembro por que me levava, mas sei por que eu ia. Ali, em meus oito ou nove anos, ao aroma do café, circulando no meio daquele grupo de gente mais alta, eu ficava em posição privilegiada para apreciar os coldres e revólveres portados por alguns, apesar da proibição vigente desde 1941. Para mim, o ambiente era de saloon e evocava os filmes de faroeste saudados com assobios e bate-pés nos matinês dominicais.

 Meu pai não andava armado, embora tivesse um revolver em casa e o levasse consigo quando saíamos para a estrada em viagens a Rio Grande, onde visitávamos nossos avós.          Havia muito mais segurança, muito menos violência e muito mais liberdade.

O revolucionário e iluminista francês Anacharsis Clootz afirmou, certa vez, que as leis são como teias de aranha, caem nelas os pequenos insetos enquanto os grandes as atravessam. Poucos anos mais tarde, o chanceler do Império Alemão, Otto Von Bismarck, sentenciou ser inconveniente esclarecer o povo sobre como são feitas as leis e as salsichas. O povo não obedeceria as primeiras e não comeria as segundas.

Fico pensando na imensa dificuldade que teriam meu pai, meus tios, ou aqueles seus conterrâneos, em entender o que dizem os desarmamentistas de hoje. Desde o alto de sua gentilíssima e cordial modernidade, talvez considerem “selvagens” aqueles tempos de liberdade e segurança. No entanto, a geração que me antecedeu, tenho certeza, haveria de recusar, por falta de serventia, o que seja dito por gente tão perita em segurança pública quanto os famosos da Globo. Para estes, derrotados no referendo do desarmamento (2005), devemos abrir mão do direito natural à legítima defesa da nossa vida para garantir nossa vida. O simples fato de ter, e mesmo de portar uma arma em seu veículo, não transforma em potencial homicida o cidadão que preencha rigorosos requisitos pessoais. Ironizo, é verdade, mas para provar situação de risco deveria bastar o documento de identidade de cidadão brasileiro...

Quem disse que os ingênuos estão na cadeia alimentar dos mal intencionados? Eu mesmo em “Pombas e Gaviões”, livro que publiquei em 2010.

Projetos que tramitam no Congresso liberam o porte para os habitualmente privilegiados pelas nossas leis. A teia de Anacharsis se fecha sobre todos, exceto sobre os que estão fora dela porque fora-da-lei, e sobre os poderosos para quem não foi construída. Assim vamos, também nisso, com leis que fedem como salsicha, leis cujas teias são atravessadas pelos grandes. Como se atreve o Estado brasileiro a exigir dos cidadãos de bem o que não consegue impor aos bandidos que tão graciosa e benignamente põe em liberdade?

 

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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

 

 

 

 

Percival Puggina

10/12/2020

 

 

         A aparente contradição entre a fé e a razão suscita um debate que - mais do que recorrente - tem sido permanente nos últimos três séculos da história. Durante todo esse período, assim como houve quem lesse a Bíblia como um livro científico, houve quem lesse os livros da ciência como obra revelada e nesse teimoso engano abriram-se trincheiras que ainda persistem em mentes mais renitentes. 

         Que a Bíblia não é um livro científico parece evidente. E que a razão e a observação - a testa e o tato - não são as vertentes exclusivas e definitivas do que é verdade ou verdadeiro, deveria ser igualmente óbvio. Conforme registra Karl Popper (um agnóstico que não pode ser apresentado como defensor da religiosidade), nossos sentidos costumam nos iludir, as verdades científicas são sempre hipóteses provisórias e acreditar que a razão produz a verdade é uma outra espécie de fideísmo (qualquer bom filósofo sabe a razão pode conduzir a paradoxos).

         A dimensão religiosa é natural à pessoa humana, assim como o são, entre outras, as dimensões artística, moral, econômica e política. Qualquer uma delas pode ser desenvolvida ou não e o fato de perder impulso no transcurso da existência de algumas pessoas não significa que tenha deixado de existir. Por isso, o fenômeno religioso é presente em todos os povos e épocas. Há dezenove séculos, Plutarco já sustentava: “Podereis encontrar uma cidade sem muralhas, sem edifícios, sem ginásios, sem leis, sem moeda, sem cultura das letras. Mas um povo sem Deus, oração, juramentos, ritos, tal nunca se viu”. Todo conhecimento antropológico posterior veio corroborar essa observação, assim como veio comprovar a preeminente posição da religiosidade em todas as culturas.

         Joachim Wash, em seu Estudo comparativo das religiões, ensina que a experiência religiosa é uma resposta do homem à realidade última das coisas, a qual se expressa num Ser superior, transcendente, todavia susceptível de se relacionar com ele; que orientar-se para esse Ser exige do homem uma resposta total; e que aproximar-se dele constitui uma experiência inigualável, criativa e transformadora.

         A naturalidade da dimensão religiosa resiste aos totalitarismos. Jamais perece e ressurge, inclusive, nas explicações redutivas, de cunho científico, que a pretendem suprimir. Em todas há uma fé (ainda que na matéria, na natureza, no próprio homem, nas leis econômicas, no valor da sensualidade, na política) e, consequentemente, há em todas uma doutrina inquestionável e alguma forma de culto. Por isso, Max Scheler, não sem alguma ironia, afirma ser impossível se convencer alguém de que Deus existe pela mera razão. Mais fácil, constata ele, é mostrar que essa pessoa colocou algo no lugar de Deus: a si mesmo, a riqueza, o poder, o prazer, a beleza, a ciência, a arte. De fato, é curta a distância, mas há um abismo qualitativo entre o amor a Deus e a idolatria.

         Dada a naturalidade do fenômeno religioso e da dimensão religiosa do ser humano, recusá-las é negar realidade ao próprio ser. E isso é uma forma de alienação. De fato, como a vida se encarrega de evidenciar, aceitar a Razão como única fonte da verdade deixa o homem sem possibilidade de resposta para equações inerentes à sua natureza - tais como o sofrimento, o amor, a esperança, a morte e a própria finalidade da vida - cujas incógnitas não se resolvem nesse plano ou no dos sentidos.

 

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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.