Anos 50. Nas manhãs de sábado, meu pai tinha o hábito de ir ao Café Internacional, no centro de Santana do Livramento, cidade onde vivíamos e onde nasci. Na minha memória de criança era um local estritamente masculino, convergência de amigos e conhecidos que se alinhavam em grupos ao longo do balcão. Por vezes, eu ia com ele. Não lembro por que me levava, mas sei por que eu ia. Ali, em meus oito ou nove anos, ao aroma do café, circulando no meio daquele grupo de gente mais alta, eu ficava em posição privilegiada para apreciar os coldres e revólveres portados por alguns, apesar da proibição vigente desde 1941. Para mim, o ambiente era de saloon e evocava os filmes de faroeste saudados com assobios e bate-pés nos matinês dominicais.
Meu pai não andava armado, embora tivesse um revolver em casa e o levasse consigo quando saíamos para a estrada em viagens a Rio Grande, onde visitávamos nossos avós. Havia muito mais segurança, muito menos violência e muito mais liberdade.
O revolucionário e iluminista francês Anacharsis Clootz afirmou, certa vez, que as leis são como teias de aranha, caem nelas os pequenos insetos enquanto os grandes as atravessam. Poucos anos mais tarde, o chanceler do Império Alemão, Otto Von Bismarck, sentenciou ser inconveniente esclarecer o povo sobre como são feitas as leis e as salsichas. O povo não obedeceria as primeiras e não comeria as segundas.
Fico pensando na imensa dificuldade que teriam meu pai, meus tios, ou aqueles seus conterrâneos, em entender o que dizem os desarmamentistas de hoje. Desde o alto de sua gentilíssima e cordial modernidade, talvez considerem “selvagens” aqueles tempos de liberdade e segurança. No entanto, a geração que me antecedeu, tenho certeza, haveria de recusar, por falta de serventia, o que seja dito por gente tão perita em segurança pública quanto os famosos da Globo. Para estes, derrotados no referendo do desarmamento (2005), devemos abrir mão do direito natural à legítima defesa da nossa vida para garantir nossa vida. O simples fato de ter, e mesmo de portar uma arma em seu veículo, não transforma em potencial homicida o cidadão que preencha rigorosos requisitos pessoais. Ironizo, é verdade, mas para provar situação de risco deveria bastar o documento de identidade de cidadão brasileiro...
Quem disse que os ingênuos estão na cadeia alimentar dos mal intencionados? Eu mesmo em “Pombas e Gaviões”, livro que publiquei em 2010.
Projetos que tramitam no Congresso liberam o porte para os habitualmente privilegiados pelas nossas leis. A teia de Anacharsis se fecha sobre todos, exceto sobre os que estão fora dela porque fora-da-lei, e sobre os poderosos para quem não foi construída. Assim vamos, também nisso, com leis que fedem como salsicha, leis cujas teias são atravessadas pelos grandes. Como se atreve o Estado brasileiro a exigir dos cidadãos de bem o que não consegue impor aos bandidos que tão graciosa e benignamente põe em liberdade?
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.
PERCIVAL PUGGINA - 17/12/2020 13:09:55
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