Percival Puggina

13/04/2018

 Está virando moda, acolhido como tema de reportagens especiais, chamar sexo de gênero e deixar esse detalhe para a criança decidir mais tarde, no pleno exercício de sua liberdade. Danem-se a natureza, a genética, a biologia, a ciência, os hormônios. Danem-se, até mesmo, as inclinações naturais dos primeiros anos. Através de um labirinto de possibilidades e experiências, a criança - presume-se - deve ser conduzida a um mundo de incertezas. Tudo em nome da liberdade; da mesma liberdade que não lhe é concedida quando se trata de escolher o clube de futebol pelo qual vai torcer.

Tomo este exemplo bem contemporâneo como ponto de partida para mostrar que o conceito de liberdade, suas aplicações e implicações podem ser retorcidos a ponto de se tornarem imprestáveis. Mais frequente do que liberdade usada para o mal (autodegradação) é liberdade inutilizada, desperdiçada, que vaza entre os dedos de quem a teve em mãos como dom sublime que poderia levar à autossuperação.

Foram necessários milhões de anos para que os gregos empreendessem a longa jornada de reflexão filosófica em busca de um Bem impresso na natureza humana que não fosse o simples e primitivo produto do querer. Foi um dos grandes saltos morais, esse em que o ser humano mergulhou no imanente e no transcendente em busca da Verdade e do Bem. Sempre tomo isso em grande conta para recusar a moralidade fundada apenas no bem próprio e no interesse próprio.
Outros saltos seriam dados na construção da mais avançada civilização e da mais elevada cultura que a humanidade produziu. O que os gregos haviam coletado de hindus, egípcios, árabes e mesopotâmios, operado por seus filósofos, confluiu para Roma, instruiu o império e influenciou o direito romano. Outra vertente unir-se-ia a seguir. Refiro-me à milenar construção do judaísmo, iluminada por grandes profetas como Abraão, Isaac, Jacó, José, Moisés, Davi, Salomão, Elias, Isaías. De seu interior adviria, ainda, o cristianismo. Séculos mais tarde, a escolástica. E depois o iluminismo...

Impossível menosprezar esse longo caminho através do qual o saber humano buscou articular os conteúdos inerentes ao Bem que buscamos na vida social. É a liberdade o maior dentre todos? Certamente, inclusive na perspectiva do Criador (sim, eu creio em Deus). Ele estabeleceu interditos que, bem examinados, servem ao bom exercício da liberdade, mas lhe tributa divino respeito, não interferindo no que com ela fazemos, mesmo se e quando a usamos contra Ele.

Tão comum quanto abusar da liberdade para afrontar o Bem (como no Queermuseu, e em algumas "performances artísticas", para citar exemplos recentes) é inibi-la para fins ideológicos, como quando se reprimem as liberdades econômicas em nome de uma certa "justiça social". Fazer justiça é tarefa do Direito e da Política, como exemplificam os países prósperos e bem organizados. Já a finalidade da Economia, de um sistema econômico, é produzir, e nesse sentido é irrecusável a superior eficiência das economias livres. Alias, fôssemos menos socialistas, nossa situação e nossas atuais perspectivas econômicas e sociais seriam muito melhores.

Mas se a liberdade se destaca no conjunto dos grandes conteúdos do Bem, ela não é, nem pode ser, por si só, o fundamento da moral. A liberdade é filha da verdade. Em João 8:32 Jesus afirma: "Conhecereis a verdade e ela vos libertará". Entendo perfeitamente que, agora, alguns leitores abandonem este texto. Parecer-lhes-á exótica tal afirmação num artigo sobre liberdade. No entanto, nada de melhor se ensinou sobre o tema. Nada a respeito se disse tão verdadeiro e com tão poucas palavras.

Imagine um barqueiro que ao cair da tarde reme seu barco várias milhas mar adentro. Cansado, deita-se e adormece. No meio da noite, um vagalhão sacode o barco e o desperta. Da superfície da água ao céu coberto de nuvens, tudo é escuridão. Alguém dirá que esse homem, incapaz de saber para onde remar, finalmente conquistou sua liberdade? Não. Perdeu-se ele no mar aberto; o imenso bem da liberdade só será reavido quando raiar o dia e ele, recuperando a capacidade de se orientar, reconheça o seu destino. No momento em que souber para onde ir, ele recuperará a liberdade, inclusive, de ir para qualquer outro lugar.

Nada orienta melhor a liberdade humana do que a busca sincera da Verdade e, por ela, do Bem. E nada disso é coercitivo. É apenas inspirador. É um saber que faz bem.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

11/04/2018

 

 Entrei no taxi – taxi mesmo, o que já se torna raro – e puxei assunto: “Como estão as coisas no negócio de vocês?”. Resposta: “Este país não tem jeito. Sempre explorado. O litoral brasileiro está cheio de navios estrangeiros levando nossas riquezas. É assim desde o Descobrimento”. Fui tomado por uma vontade irresistível de ficar só e mergulhar fundo nos meus próprios pensamentos. Neles, ando em círculos, sei, mas não perco dois ingredientes dos quais tenho estoque limitado: ciência e paciência.

 Meu interlocutor, pela idade, fazia parte da segunda geração de filhos de Paulo Freire. Muito provavelmente, se constituiu família, já estava transmitindo aos seus descendentes essa mesma visão de mundo e de história, sem perceber a que tipo de existência os estava condenando. E assim prossegue o “patrono da Educação brasileira”,  com a retórica explorado/explorador, oprimido/opressor e outros tantos litígios que a criatividade humana pode conceber para exportar responsabilidades e substabelecer cidadanias, perpetuando rotinas que são, enfim, os objetivos políticos dessas falácias nas salas de aula.

 Quem entrar numa faculdade de Educação ou num curso de Pedagogia e desenrolar críticas à obra de Paulo Freire se tornará receptáculo de todas as maldições conhecidas desde Tutancâmon. É possível atacar e vilipendiar tudo que for sagrado sem que qualquer dedinho se mova em gesto negativo, mas criticar Paulo Freire? Não. Isso não é coisa que se faça. O motivo pouco ou nada tem a ver com Pedagogia ou com Educação propriamente ditas. Tem a ver com política (e o “p” vai minúsculo).

 Quando Freire fez uma experiência pedagógica em Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963, para alfabetizar três centenas alunos em 40 horas, o resultado final deu a todos, em política, uma nota de aprovação superior à de alfabetização. Numa entrevista em Recife, no ano de 1979, indagado sobre possível filiação a um partido político, Freire respondeu: “Faço política através da pedagogia”. No ano seguinte, estaria entre os fundadores – adivinhe de qual partido? Pois é. Acertou. No livro “Ação Cultural para a Liberdade” (1975) ele trata ainda mais extensamente do engajamento político inerente à ação educadora, enfatizando-a como instrumento para a libertação das classes dominadas. Qualquer semelhança com marxismo cultural não é mera coincidência. Qualquer semelhança com Teologia da Libertação não é semelhança: é identidade. Com efeito, a retórica marxista sobre proletariado é copiada e colada para formar o conceito herético de “povo de Deus” na Teologia da Libertação. Nela, o povo de Deus é o povo oprimido, conscientizado, lutando por sua libertação.

O resultado disso em sala de aula vem sendo desastroso. Nossos estudantes disputam entre os piores lugares nos indicadores internacionais. Em grande número, quando concluem o ensino médio já tiveram suas potencialidades neutralizadas; adquiriram, ao preço exorbitante de seu próprio tempo de vida, as piores ideias políticas e o respectivo kit de chavões paralisantes. Ao se posicionarem mal num mercado de trabalho onde a maioria dos empreendedores anseia por recursos humanos qualificados, trabalham muito, produzem pouco, em tarefas mal remuneradas. Ao final, dão razão a quem mais os prejudicou: os professores que lhes fizeram a cabeça e os maus políticos em quem consequentemente passaram a votar. Com eles, repetem o bordão segundo o qual essa mínima liberdade econômica de que dispomos em nosso país é o “demoníaco” capitalismo, feito para explorá-los e oprimi-los.

É perfeitamente previsível o drama dos filhos de Paulo Freire. Deus seja louvado, então, pelos muitos bons professores que com seu trabalho, em meio a essa infindável luta pelo atraso, enriquecem e abrem horizontes aos alunos que lhes entram pela porta da sala de aula.


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* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.


 

Percival Puggina

09/04/2018

 

 A combinação da Operação Lava Jato com a jurisprudência que permitiu o cumprimento provisório da pena após a condenação em segunda instância foi a versão moderna da pesca milagrosa. Jamais se vira algo assim fora do Mar da Galileia! Era muito peixe graúdo na rede. A cada arrastão, a malha se fechava sobre poderosos empresários, executivos de inimagináveis salários, figuras destacadas da cena política nacional, tesoureiros e operadores de partidos políticos. Saqueada e abusada, durante década e meia, a nação passou a ser informada sobre o escândalo de cada dia – e cada dia tinha o seu - enquanto viaturas da Polícia Federal agitavam as alvoradas nacionais em operações de estranhíssimos nomes. Um bálsamo para quem tem senso de justiça.

Em longa tradição do Direito Penal brasileiro, não há interdição a que o réu, condenado em segunda instância, inicie o cumprimento da pena de prisão. Essa é a jurisprudência atual e foi esse o entendimento até que, em 2010, o STF fez valer a letra fria e visionária do inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença criminal condenatória”. Foi um desastre. Os processos eram empurrados para frente e para longe com os talões de cheques. Tão difícil ficou prender bandido rico que, em 2016, o mesmo STF retornou à orientação anterior. Foi um ano fervilhante. A operação Lava Jato desvendava os fundilhos da República, a justiça profissional de primeiro e segundo grau acelerava o passo e o recolhimento à prisão era ameaça bem próxima no horizonte dos criminosos. Formou-se fila para as colaborações premiadas. Fila de confessionário em domingo de Páscoa. Todos se apressavam em colaborar com a justiça, devolver dinheiro roubado, entregar os bens e os anéis mal havidos para salvar os dedos. E para poder usar o banheiro de casa. Subitamente, com a nova orientação, ninguém tinha dúvida sobre as próprias culpas.

No contundente diagnóstico do senador Romero Jucá, tornou-se urgente “estancar a sangria”. Frear a Lava Jato. O modo cirúrgico de suturar a artéria e parar os vazamentos incluía a participação do STF. Fazia-se necessário acabar com a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Afinal, a Constituição diz que só depois de sentença criminal condenatória transitada em julgado, certo?

Certo, mas errado. O preceito se opõe à proteção da sociedade, impede a realização da justiça, desmoraliza os juízos de primeiro e segundo graus, distribui a esmo atestado de inocência a criminosos que são verdadeiros flagelos sociais engravatados, muitos dos quais já condenados, sobre cuja culpa não cabe dúvida alguma e em relação a quem a sociedade tem o direito de cobrar sanção penal.

Mude-se, então a Constituição, exigem os falsos ingênuos. Eles sabem, porém, que o Congresso Nacional jamais o fará porque é tudo que os criminosos com mandato parlamentar não querem, ora essa! Pelo mesmo motivo, aliás, não quiseram aprovar a PEC dos Recursos, com a qual o ministro Peluso pretendeu reduzir o elenco de possibilidades recursais que fazem amarelar os processos e produzem um Direito Penal eunuco.

É luta de vida ou morte para a impunidade. Constrange, dói na alma dos cidadãos cumpridores de seus deveres, que reconhecem a importância das instituições, saber que pelo menos cinco ministros do STF atuam com tanto denodo na mesma trincheira dos advogados de corruptos e corruptores. Nem se discuta se o STF pode, agindo no mundo dos fatos e vendo o Congresso que temos, reafirmar a bendita jurisprudência que está em vigor. O que precisa ser afirmado é bem diferente: o STF deve manter o atual entendimento se não quiserem seus ministros se constituírem em protetores da corrupção. Se o Supremo abandonar a nação no relento da impunidade geral, quem a protegerá? De onde virá a Justiça?

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* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

06/04/2018

 

 Na última quarta-feira (04/04), nem os mais distraídos observadores da sessão do STF, fossem devotos do réu, fossem seus antagonistas, deixaram de observar o empenho com que os ministros Marco Aurélio e Lewandowski se dedicaram à defesa do ex-presidente Lula. Os dois magistrados tinham torcida nacional a favor e contra. Os favoráveis se empenhavam na leitura labial daqueles cochichos, na escuta de apartes e grosseiras repreensões aos colegas; emergiria dali algum estratagema salvador de seu ídolo? Os contrários presenciavam as cenas e manobras em meio a interjeições e adjetivos muito pouco qualificativos.

 Não me lembro de já haver observado algo assim. Duvido que, se voz tivesse, a banca inteira de advogados contratados, e ali sentados, litigasse com igual combatividade. Nessa tarefa, os dois ministros se ergueram bem acima dos também denodados Toffoli e Gilmar, que não costuma deixar barato o trabalho da divergência. Era como se, longe dos votos, das mais sadias expectativas nacionais por justiça, o réu cujo nome estava inscrito na capa do processo exigisse de ambos o sacrifício da própria respeitabilidade. E eles foram para o holocausto! Ao final da longa jornada, reeditando o advogado Battochio da sessão anterior, coube a Marco Aurélio cobrar de seus pares a concessão de um novo salvo-conduto ao réu, até que o STF revisitasse o tema da prisão provisória após condenação em segunda instância! Nessa treta, nesse gambito, isolaram-se ambos. Nem os demais parceiros os acompanharam.

Por quê? Se lhes déssemos atenção apenas às palavras, pareceria que serviam à mais essencial causa humana depois da Paixão de Cristo. Eram arautos, a um só tempo, da liberdade, da dignidade humana, dos direitos do homem e do cidadão, da Constituição da República e da carta de princípios do Flamengo. No entanto, não era assim. A prisão do réu, uma dentre milhares, cumpria decisão do próprio STF sobre a constitucionalidade do cumprimento provisório das penas após condenação em segunda instância, etapa a partir da qual a culpa dos réus é assunto que não mais pode ser discutido.

Interpretação diferente não corresponde ao bom Direito e constituiria caso singularíssimo no mundo civilizado. Se o texto constitucional é ruim e instaura a impunidade eterna, não será um Congresso Nacional tomado por corruptos que o revisará. Isso só pode ser tarefa de uma Suprema Corte formada por verdadeiros magistrados. No período em que foi exigido o trânsito em julgado (2010-2016), constatou-se o quanto se tornou impossível combater a criminalidade no consequente ambiente de impunidade.

O Mecanismo que assaltou a nação começou a cair quando, em 2016, para inconformidade de criminosos e seus advogados, em exercício ou potenciais, o STF adotou a atual jurisprudência. A leitura meramente silábica da norma constitucional, afastada do mundo dos fatos, tomada como mensagem inscrita no céu por arcanjos para anjos, é um disparate que se traduz em impunidade por prescrição ao alcance de quem tenha uma boa conta bancária. Ainda que fornida, essa conta, por recursos de crime que ficará impune.

Os arcanjos da justiça, que leem na Constituição normas feitas para tais anjos, não são ingênuos. Estes, os ingênuos, têm lugar na cadeia alimentar dos mal intencionados. Mas não é o caso dos ministros que quebraram e continuam quebrando lanças e espadas em defesa do império da impunidade. A quem servem esses senhores, junto com os parceiros Celso, Toffoli e Gilmar, que nada têm de ingênuos, quando falam em “punitivismo” no país da impunidade?

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* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

05/04/2018



 Foi por um triz. Se o voto da ministra Rosa Weber seguisse sua própria convicção, teria soado para corruptos e corruptores o “liberou geral” da roubalheira. E o Mecanismo teria recebido, da mais alta Corte do país, seu alvará de funcionamento. A esse ponto chegamos.

 Trata-se, porém, de uma triste vitória, cuja validade vence ali adiante quando a questão de fundo for a exame do plenário. Nesse momento, o assunto será a constitucionalidade da pena de prisão aplicada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Para essa deliberação, salvo nova interferência divina, os votos já estão contados e as consequências, bem conhecidas.

Foi repugnante testemunhar o vigor retórico com que os horríveis ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Toffoli e Lewandowski, alegando defender os pobres, votavam favoravelmente aos corruptos milionários, cujos interesses estavam indiretamente representados pelos dispendiosos advogados do abonado réu Lula. Aquela eloquência demagógica e populista dos quatro julgadores não era ouvida, porém, nas celas infectas e superlotadas dos nossos presídios. Quem não perdia uma palavra da sessão era a nata prisional do país e aqueles que, fora das prisões, só conseguem dormir quando soam as seis badaladas do sino da igreja sem que lhes batam à porta.

Horríveis, esses ministros contaminados pelo lulismo. Sua prática é a mesma do réu cujo nome estava na capa do processo em pauta, depois de furar a longa fila das precedências. Também o réu Lula, com uma das mãos servia generosamente os ricos enquanto, com a outra, jogava míseros farelos aos pobres.

Assim, estamos. Fenômenos análogos já foram descritos como círculos de ferro, referindo-se, por exemplo, às oligarquias, ou à burocracia. Nós vivemos sob o círculo de ferro da impunidade que envolve o topo dos três poderes de Estado. Jogam afinados. No Executivo, opera a matriz dos negócios. No Legislativo enquanto umas leis definem os crimes, outras protegem os criminosos, embaraçam os ritos e frustram a aplicação das penas. Do topo do Judiciário saem os comandos que se empenham em recobrir as indecências da impunidade com as vestes talares da justiça e o manto da mais fingida misericórdia. Ainda tenho diante dos olhos a figura de alguns ministros, na lamentável sessão do dia 23 de março, lavando os pés dos advogados de Lula e regurgitando admiração quando um deles falou francês.

Não consegui arregimentar em mim alegria suficiente para qualquer comemoração. Breve, muito em breve, salvo milagre, o talão de cheque dos criminosos endinheirados varrerá de seu caminho a desagradável obrigação de cumprir as penas a que forem condenados. O círculo de ferro da impunidade se fechará e a execução das sentenças de prisão ficará postergada para o Juízo Final, após a ressureição dos mortos. Nessa ocasião, o horrível Celso de Mello falará por todos.


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* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

 

Percival Puggina

03/04/2018

 

 O Estadão de 2 de abril informa que intenso e acelerado troca-troca de partidos está em curso na Câmara dos Deputados. Como talvez dissesse o poeta Raimundo Correa, parece o despertar das pombas nos pombais. “Vai-se outra, mais outra, enfim dezenas”; vão-se os deputados, como as pombas, enquanto raia “sanguínea e fresca a madrugada” – a madrugada eleitoral de 2018, claro. Juntos, PT, MDB e PSDB, os três maiores, já perderam 35 deputados que se deslocaram, em boa parte, para partidos do pelotão intermediário, PP, DEM, PSD, Podemos e PROS. 

 Os parlamentares estão devidamente “precificados”, para usar a linguagem do mercado. Saem à base de R$ 2 milhões a R$ 2,5 milhões por cabeça. Quem vai levar? Quem vai levar? Dado o preço unitário, chegar-se-ia à conclusão de que o PP inteiro, com seus 49 deputados, estaria valendo 98 milhões, o PSD e o DEM 84 e 82 milhões, respectivamente. No entanto, esse mercado opera ao contrário do que estamos acostumados. Talvez um por dois milhões, dois por cinco, três por dez, e assim por diante. Estou ironizando? Pior é que não. O mecanismo conhece o mercado e sabe quanto vale uma bancada inteira. É por isso que estatais e ministérios sempre fazem parte do preço de grandes lotes nos leilões do poder.

Quando uma pombinha diplomada em 2014 abana suas asas, migrando de um poleiro partidário para outro, nas janelas de troca-troca asseguradas pela lei, os tais R$ 2 milhões que levam no bico saíram do nosso bolso. É recurso público, dos fundos eleitoral e partidário. Seu primeiro manuseio malicioso é esse: como não há financiamento privado, a conta é nossa. Dinheiro extraído da sociedade pela via tributária usado por partidos que, em vez de irem às ruas batalhar votos para eleger deputados, como convém à democracia, tratam de comprar deputados já feitos.

ergunto: durante a atual legislatura, o nanico PTN não virou Podemos e pôde saltar de quatro para 18 deputados federais? O segundo manuseio malicioso, capaz de assegurar uma bolsa de tal magnitude por cabeça diplomada, é o que farão os partidos com o recurso público, privilegiando detentores de mandato em detrimento dos novos postulantes e impedindo a renovação tão aguardada por quem quer filtrar, um pouco ao menos, os ares putrefatos do Congresso Nacional. Ou seja, se o financiamento privado desequilibrava em favor de quem tivesse maior acesso a recursos, o financiamento público faz o mesmo, com dinheiro do contribuinte.

A situação se agrava quando observamos a conduta dos maiores partidos. A sociedade pensa: é preciso renovar; salvo notáveis exceções, não reeleja! E os partidos, alarmados com esse clamor, estão criando suas listas quase fechadas, formadas pelos atuais parlamentares mais outros poucos nomes, só para disfarçar. O anterior trabalho de atrair candidatos para as nominatas foi substituído pelo de desincentivar inscrições.

Serão quase cubanas as eleições parlamentares brasileiras de 2018. A ideia é deixar os eleitores praticamente sem opção, reelegendo as atuais bancadas. Um verdadeiro jogo de braço dos nossos políticos com os eleitores para ver quem pode mais... Eu nunca tinha assistido algo assim!
 

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* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

30/03/2018

 

 Sob o ponto de vista de sua estabilidade, três pilares sustentam uma construção. Quatro fazem-no ainda mais facilmente. Com apenas dois pilares só dá para fazer uma ponte, ou algo com jeito de ponte. Num único pilar pode-se colar um cartaz, apoiar as costas, ou fazer alongamento de pernas.

São quatro os melhores pilares para suporte de uma boa ordem social: família, religião, escola e instituições políticas. No Brasil, há longo tempo, todas vêm sendo atacadas por grupos que agem com motivação política, ideológica, partidária e/ou econômica.

A instituição familiar tornou-se objeto de sistemática desvalorização. As uniões são instáveis e os casamentos, quando chegam a acontecer, duram, em média, 15 anos (em acelerada queda). O número de divórcios anuais já corresponde a um terço do número de casamentos. Em 27% das famílias com filhos, a mulher não tem cônjuge (um total de 11,6 milhões de lares). Vinte por cento dos casais não têm filhos e, quase isso - 18,8% - dizem não querer ter filhos. Estou falando apenas em estatísticas, sem aprofundar na análise da nebulosa qualidade dos laços e do exercício das funções parentais. É sabido, porém, que tais funções estão revolutas na desordem dos costumes que tanto afeta a vida social nas últimas décadas. E vai-se o primeiro pilar.

A religião enfrenta notória redução de sua influência. Externamente, correntes políticas que perceberam ser impossível destruir a civilização ocidental sem revogar a influência do cristianismo atacam as religiões cristãs declarando o direito de opinião e o exercício da cidadania territórios interditos a quem tenha convicções decorrentes de fé religiosa. E o fazem em nome da laicidade do Estado. Com esse estratagema, confundem os néscios e reservam apenas para si o direito de opinar e intervir em relevantíssimas questões sociais e morais. Internamente, as mesmas correntes agem de modo perversor na Igreja Católica através da Teologia da Libertação e nas evangélicas através da Teologia da Missão Integral. E vai-se o segundo pilar.

A escola e o controle das funções educacionais foram tomados por militantes mais ocupados em conquistar adeptos às causas revolucionárias do que em desenvolver talentos e habilidades para que os jovens tenham participação produtiva e ativa na vida social. Com isso, oportunidades são dissipadas pela mais rasa ignorância, nutrindo frustrações e revoltas. Professores que respondem por essa realidade reverenciam Paulo Freire e sua pedagogia do oprimido que outra coisa não é senão a definitiva opressão pela pedagogia. Outro dia, um conhecido me contava de certo jovem seu parente que, aos 18 anos, sem ser imbecil, egresso do sistema de ensino, não sabia os meses do ano. E vai-se o terceiro pilar.

As instituições políticas afundam no bioma pantanoso da corrupção e do descrédito. Não apenas pesam dolorosamente nos ombros magros de uma sociedade empobrecida. Fazem questão, por palavras e obras, de deixar claro o quanto os píncaros dos três poderes existem para reciprocamente se protegerem. Vai-se, então, o quarto pilar. E ficamos, todos os demais brasileiros, pendurados no pincel.

 

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* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.



 

Percival Puggina

27/03/2018

 

Está no noticiário desta terça-feira a informação de que Marco Aurélio Mello - aquele do talão de embarque, que não mora em Jaçanã, mas não podia ficar “nem mais um minuto com vocês” – decidiu, como rabugento lapão, sair da reta e colocar a culpa na presidente do STF, ministra Cármen Lúcia. Ela teria cometido o erro de antecipar o julgamento do habeas corpus de Lula quando o correto, segundo ele, teria sido julgar antes as duas ADCs sobre prisão em segunda instância que aguardam julgamento. “O desgaste para o tribunal está terrível. Isso demonstra que a estratégia da presidente foi falha”, afirma Marco Aurélio. “Foi muito ruim julgarmos só o caso do ex-presidente. Agora estamos pagando um preço incrível”.

Dadas todas as vênias, é muito caradurismo. Se o ministro não queria votar o habeas corpus, por que aprovou sua admissibilidade quando a consulta feita por Fachin deu ao plenário a oportunidade de rejeitá-lo? Bastava-lhe dizer não para que não se concretizasse o vexame atribuído por ele ao ato da presidente. No entanto, disse sim e copatrocinou o desgaste do STF.

Cármen Lúcia colocou em votação o HC de Lula exatamente para destapar a estratégia dos seis ministros a serviço da impunidade, que queriam votar, às pressas, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade e beneficiar Lula. Toda aquela urgência tinha nome – Luiz Inácio Lula da Silva. Ora, se o objetivo era derrubar a prisão após condenação em segunda instância e proteger Lula, que o fizessem na pessoa física e não por interposta pessoa. E eles fizeram.

Acabaram com a Lava Jato, desmoralizaram o STF, deixaram a nação prostrada, semearam o desalento, expuseram a própria malícia e vão liberar geral, soltando milhares de presos - de pedófilos e estupradores a corruptos e corruptores.

Tudo em nome da “liberdade”, querendo significar lisa, total e eterna impunidade. Não pretenda agora o ministro, com o escândalo na rua, com o véu do templo rasgado, sair em defesa de uma dignidade que não mais defesa tem.

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* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

  

Percival Puggina

26/03/2018

 

 Se for verdade que a vida ensina, então nos enfiaram num curso de imersão, intensivo. De sol a sol, estamos assistindo o “mecanismo” em pleno funcionamento. Podemos observá-lo em diferentes estágios – o nacional, o venezuelano, o cubano, o norte-coreano. Todos têm devotos no Brasil. O mecanismo, quando ameaçado (Lava-Jato), sentindo esvair seu poder (impeachment) e perdendo substância popular (redes sociais), contra-ataca com todos os meios independentemente da reação. Não obedece lei, nem costume, nem limite. Não há sequer divergência entre suas facções. Mesmo aquela esquerda que posa como moça de bons costumes e oferece sua virgindade na praça eleitoral permaneceu em conivente silêncio ante o cambalacho promovido pelo “Pretório Excelso” (vê se eu aguento!). Não será preferível dizer Ínfima Caterva?

No mesmíssimo contexto se inscreve a universidade pública, outro importante espaço de poder que vem sendo metabolizado pela esquerda, usado para formação de intelectuais orgânicos desde antes da fundação do PT. O que constitui novidade, trazida a lume pela premência dos fatos, é a necessidade de incorporar a energia do ambiente acadêmico às táticas políticas de curtíssimo prazo para salvar o petismo na eleição de 2018. Isso ainda não fora visto.

Refiro-me às dezenas de cursos de extensão sobre o “golpe de 2016” que se propagam nas universidades brasileiras, incluindo disciplinas como “O lulismo e a promoção da paz social”, “O governo Dilma e a tentativa de repactuação lulista”, “A resistência popular e as eleições de 2018”, e por aí vai. Tais conteúdos, obviamente, são adequados às dependências de uma sede partidária e promovidos à custa da legenda interessada. É preciso haver subordinado o senso moral à causa e ideologizado cada neurônio para não perceber o quanto tais “cursos de extensão” ultrapassam os limites da decência no emprego que fazem de meios e títulos públicos.

Raciocinemos pelo viés oposto. Imaginemos, por exemplo, cursos sobre “A corrupção na Petrobras e a fraude financeira que favoreceu as vitórias eleitorais de 2006, 2010 e 2014”; “Objetivos totalitários da luta armada dos anos 60 e 70 no Brasil”; “A alternativa liberal-conservadora no pleito de 2018”. Não é difícil imaginar a reação que seria suscitada por qualquer desses temas. Contudo, em que pese o interesse por tais abordagens, a universidade não é para isso e a criação desses eventos incorreria em equívoco análogo ao que aqui critico. E mais: nenhuma aula dessas conseguiria ser ministrada ante a reação de alunos e professores. Ou não?

Valerem-se da autonomia universitária como blindagem para usar e abusar do que é público em benefício particular - seja ideológico, político ou partidário – é uma forma de corrupção que começa na mente e se expressa na práxis. A autonomia não é salvo-conduto para tropelias, nem é a universidade foro privilegiado onde o saber pode ser corrompido e nenhum abuso coibido.

Esses professores, ao mesmo tempo em que, tanto quanto os ministros do STF, envilecem seu poder, andam pelas respectivas universidades, transformada em casa-da-mãe-joana, reclamando da sobrecarga de aulas e da falta de verbas para as atividades acadêmicas. Mas os cursinhos de marotagem política têm tempo, disposição e meios.


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* Percival Puggina (73), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.