Percival Puggina

11/07/2017

 

Lembro-me perfeitamente da última atualização feita na planta de valores de Porto Alegre para lançamento do IPTU. Aconteceu em 1991, terceiro ano da administração Olívio Dutra, e causou sérios dramas. Nas zonas em que ocorreram maiores aumentos, os novos valores excediam a capacidade financeira de muitos munícipes, comumente idosos cuja renda andara em direção inversa à da valorização dos respectivos imóveis. A inadimplência explodiu. Embora o poder público muitas vezes o desconheça em si mesmo, esse limite existe, sim, na vida dos cidadãos.

Ninguém espera, nem interessa à comunidade, um órgão arrecadador de coração mole, disposto a perder dinheiro. No entanto, cabe perguntar: está a prefeitura “perdendo dinheiro” ao lançar o imposto, todo ano, com valor corrigido segundo a inflação ou algum índice de preços? Óbvio que não. É o mesmo dinheiro, em valor atualizado, mudando de bolso. Nos impostos que pagamos, acompanhando a alta dos preços de tudo que compramos, ele sai do nosso e vai para os entes federados como receitas correntes. Não, não é aí que mora o prejuízo. Se há vazamento, obviamente não é nos impostos pagos. Elementar regra de prudência recomendaria à União, aos estados e aos municípios que o aumento de suas despesas correntes não sobrepujasse esses mesmos índices.

Dê uma pesquisada no Google sobre o que aconteceu em recentes revisões de plantas de valores em municípios como Curitiba, Belo Horizonte e Guarulhos, entre outros. Verá casos que multiplicaram o tributo por 10 e até 20 vezes. A própria intenção de parcelar esse aumento ao longo de alguns anos mostra que o forte impacto da providência na economia das famílias é pressentida pelo fisco. O fatiamento da majoração, porém, não altera sua substância, nem sua inconveniência ou inoportunidade. Desconhecem, por acaso, o dano que a crise do setor público está produzindo na economia, nos empregos, no poder de compra das pessoas?

Alega-se, e é fato, que quem adquire um imóvel agora numa região valorizada estará pagando IPTU maior do que seu vizinho que ali reside há bom tempo. Mas é falso ver-se injustiça nisso. Quem compra imóvel paga preço e imposto conforme suas posses. Injusto , em vista disso, é onerar o vizinho que nada tem a ver com tal comércio. A imensa maioria dos imóveis residenciais só constitui um negócio na hora da transmissão. Depois, se converte em lar de alguém, parte importantíssima de um projeto de vida que não pode ficar sujeito a essas manipulações tributárias.

São surpreendentemente reais os problemas financeiros da prefeitura de Porto Alegre, 10ª capital brasileira em população. Eles ocorrem apesar de a população ser fortemente onerada. Segundo artigo publicado em ZH da última quarta-feira, dentre todas as capitais, nossa arrecadação per capita é a quinta em IPTU, a terceira em ISS e a primeira em ITBI. E repito: a capital gaúcha é apenas a 10ª em população. Mesmo assim, o dinheiro não basta, como nunca são bastantes as receitas do Estado e da União. Por quê? Porque o mais real conflito no Brasil de hoje, malgrado todas as manobras diversionistas que tentam focar questões de classe, raça, gênero, etc., se relaciona à opressão do público sobre o privado, do Estado sobre a nação. Somos reféns de um setor público que consorcia o patrimonialismo dos poderes políticos com o corporativismo da burocracia. E crescem juntos, de modo incontrolável, impondo à nação, muito além da capacidade que temos de sustentá-los, uma verdadeira ditadura de interesses minoritários. Como consequência, já não conseguem fazer sequer o mínimo que deles se espera.
 

Percival Puggina

07/07/2017

 

 A crise que jogou o Brasil na mais prolongada e perigosa depressão econômica e social de sua história não pode ser entendida sem que se conheça o peso do patrimonialismo, do corporativismo e do clientelismo na vida nacional. É pelo peso do patrimonialismo que o exercício do poder político se confunde com usufruto (quando não com a posse mesma) dos recursos nacionais. É pelo peso do corporativismo, cada vez mais entranhado e influente nas estruturas do Estado, que os bens e orçamentos públicos vêm sendo canibalizados desde dentro pelo estamento burocrático. É pelo peso do clientelismo que elites corruptas são legitimadas numa paródia de representação política, comprando votos da plebe com recursos tomados à nação.

 Na perspectiva do cidadão comum, o que resulta mais visível, lá no alto das manchetes e no pregão dos noticiários de rádio e TV, é o que vem sendo chamado de mecanismo, ou seja, o modo como, nos contratos de obras e serviços, o recurso público é desviado para alimentar fortunas pessoais, partidos políticos e campanhas eleitorais que, por sua vez, garantem, a todos, a continuidade dos respectivos negócios. Com efeito, esse é o topo da cadeia. É o que se poderia chamar de operação contábil que viabiliza e formaliza o patrimonialismo.

O corporativismo, de longa data, se configura como forma de poder exercido com muito sucesso e responde, ano após ano, pela crescente apropriação dos orçamentos públicos e dos recursos de empresas estatais pelas corporações funcionais. É uma versão intestina do velho patrimonialismo. Raymundo Faoro, a laudas tantas de "Os Donos do Poder", escreve sobre a centralização política ocorrida no Segundo Reinado e a singela constatação de que existem duas possibilidades: ou a nação será governada por um poder majoritário do povo ou por um poder minoritário. Era como exercício de poder minoritário que Faoro via o reinado de D. Pedro II. E o entendia à luz da teoria de Maurice Hariou, que fala de um poder formado "ao largo das idades aristocráticas, pelo exercício mesmo do direito de superioridade das minorias diretoras".

Maurice Hariou (1856-1929) reparte com Kelsen o apelido de Montesquieu do século XX. Na sua perspectiva, são as instituições que fundamentam o Direito, e não o contrário. Correspondem ao conceito, as organizações sociais subsistentes e autônomas nas quais se preservariam ideias, poder e consentimento. A isso, dava ele o nome de corporativismo. Após 127 anos de república, é comum vê-lo em pleno exercício quando representantes de outros poderes, de carreiras de Estado, e de seus servidores ocupam ruidosamente galerias dos plenários ou palmilham corredores onde operam os gabinetes parlamentares. Raramente saem frustrados em suas reivindicações. E assim, bocado a bocado, ampliam, além de toda possibilidade, a respectiva participação no bolo dos recursos públicos. Em muitos casos, a soma das fatias já ultrapassa os 360 graus.

Os ônus do corporativismo representam um prejuízo vitalício, que se perpetua através das gerações. Como tal, muito certamente, excede o conjunto das falcatruas operadas pelo mecanismo. O Estado brasileiro poderia ser menor, onerar menos a sociedade e enfrentar adequadamente o drama das camadas sociais miseráveis, carentes de consciência política. Por que iriam os operadores do mecanismo, os manipuladores da miséria e o estamento burocrático interessar-se em acabar com a ascendência que exercem sobre essas vulneráveis bases eleitorais? Os três juntos - patrimonialismo, corporativismo e clientelismo - põem a nação em xeque. Não sairemos dele se não identificarmos, acima e além dos partidos e seus personagens, estes outros adversários, intangíveis mas reais, que precisam ser vencidos.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

04/07/2017

 

No Brasil, a violência política se faz visível em dois níveis de radicalização. Num, há a perda da noção de limites; o discurso se exaspera, os poderes e seus membros se retaliam verbalmente, xingamentos agitam as redes sociais, a verdade apanha e a razão é posta à prova. Noutro, tem-se algo mais perigoso. Refiro-me à violência que nasce da ideologia, que não ocorre em assomos de indignação, nem se manifesta naqueles momentos em que o sangue ferve e as estribeiras são perdidas. Trata-se de algo fora dos parâmetros pelos quais se orientam pessoas normais.

Ao entender isso começa-se a compreender a razão pela qual, sem quê nem porquê, certos grupos passam a incendiar ônibus, a dar "voadoras" nas vitrinas e a disparar rojões contra a autoridade policial. Mauro Iasi citando Brecht, Guilherme Boulos e João Pedro Stédile com seus exércitos, falam por eles.

Em 1968, o general vienamita Vo Nguyen Giap, em artigo publicado em "El hombre y el arma", escreveu (tradução de Igor Dias): "... os revisionistas contemporâneos e os oportunistas de direita do movimento comunista e do movimento operário seguem vociferando sobre 'paz' e 'humanitarismo'; não se atrevem a mencionar a palavra 'violência'. Para estes, a violência é um tabu. Temem esta assim como a sanguessuga teme o cal. O fato é que negam a teoria marxista-leninista sobre o papel da violência na história". Mais adiante, lecionará o general: "Os comunistas expõem o papel histórico que cumpre a violência não porque sejam 'maníacos' por esta, mas sim porque é uma lei que rege o desenvolvimento social da humanidade. Não poderá triunfar nenhuma revolução e nenhum desenvolvimento da sociedade humana sem entender tal lei."

Para Marx a violência é a parteira de toda velha sociedade que leva em seu seio outra nova. Assim, ela acompanha a ação política de tantas referências da esquerda brasileira, começando, entre outros, pelos nossos patrícios Prestes, Marighela, Lamarca; e vai importando seus bandidos - Fidel Castro, Che Guevara, Tiro Fijo e por aí afora. Se há acusação que não se pode fazer a qualquer desses senhores é a de prezarem a democracia, seus valores e suas regras. Assim também se explicam 100 milhões de mortos com vistas ao tal "desenvolvimento social da humanidade". Fala-me de teus amores e te direi quem és.

Para pôr freio nesses desequilibrados e em seus desequilíbrios, a democracia se afirma, aos povos, no horizonte das possibilidades. “Mas não se faz democracia sem democratas”, disse alguém, com muita razão. A democracia é um sistema e uma filosofia. Uma boa democracia exige que ambos sejam bons e andem juntos. O sistema é definido pelas regras do jogo político, ou seja, pelo conjunto de normas que legitimam a representação popular, regem eleições, determinam atribuições aos poderes, e definem o modo segundo o qual as leis são elaboradas, aprovadas e aplicadas. A filosofia é marcada por um conjunto de princípios e valores elevados, honestamente buscados e socialmente ratificados.

Sem a filosofia, o sistema pode dar origem a toda sorte de abusos, entre eles a ditadura da maioria. Sem o sistema, a filosofia pode descambar para a anarquia, ou para a ditadura da minoria, posto que faltarão os instrumentos de legitimação conforme a vontade social. Defender insistentemente o constitucionalismo e promover os princípios e valores que inspiram o regime democrático é a melhor proteção contra as perversões que se expressam pela violência. Não chegamos lá, mas tudo pode piorar. A Venezuela existe e é logo ali. Cuidado, pois.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.



           

Percival Puggina

30/06/2017

 

 Inicialmente cabe perguntar: como pode ser "geral" uma greve sem apoio da população? Pelas siglas das bandeiras que agitam, os habituais construtores da confusão e suas massas de manobra acham muito bom o ambiente político promovido na Venezuela e os resultados colhidos em Cuba. Creem, então, ser de boa política demonstrar força parando o país na marra. O sucesso deles depende do fracasso de todos os demais.

 São pequenos grupos articulados nacionalmente. Param o transporte coletivo na base da pedrada e do "miguelito", mas não são, eles mesmos, motoristas de ônibus porque isso é muito trabalhoso. Bloqueiam rodovias e avenidas, incendiando pneus, mas não são, eles mesmos, transeuntes desses caminhos. Impedem os demais de trabalhar, mas são raros, raríssimos em tais grupos, os ativistas que ganham seu sustento com o suor do próprio rosto. Menor ainda é o número daqueles cuja atividade, por sua natureza, agrega algum valor à economia nacional. Querem é distância do mérito, da concorrência, do livre mercado. São nutridos por alguma teta política, pública, sindical ou familiar. São, estes últimos, filhinhos do papai entregues à sanha dos encolhedores de cabeças do sistema de ensino. É a geração nem-nem, mas com direito a mesada.

O que estou descrevendo aqui por intuição, os italianos diriam ser algo que "si sente col naso" (se percebe com o nariz). E bem mereceria ser objeto de uma pesquisa acadêmica. Conviria à sociedade conhecer o perfil dessas pessoas que volta e meia se congregam para infernizar a vida dos outros. No entanto, também com o nariz, posso intuir que a academia brasileira não teria o menor interesse em executar essa tarefa porque ela iria desmoralizar, politicamente, as seivas de que essa militância se nutre. E as grandes empresas de comunicação? Bem, pelo que tenho visto ao longo deste dia 30 de junho, tampouco elas, diante das depredações e da queimação de pneus, pronunciaram uma sílaba sequer que fosse além da mais cirúrgica narrativa dos fatos em curso. Tão lépidos em comentar tudo, entendam ou não dos assuntos, demonstram-se, hoje, absolutamente indispostos a qualquer análise do que está acontecendo. No entanto, há uma riqueza de conteúdo, tanto no que não aconteceu quanto no que aconteceu. Tudo por ser investigado.

Creio que só uma colaboração premiada poderia desvendar as entranhas dessas articulações político-ideológicas tão nocivas ao bem comum...

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

28/06/2017

 

 Há mais de meio século estudo e acompanho a política brasileira. Vivi, inclusive, períodos de participação ativa no final do século passado. Confesso que nunca observei algo que guarde analogia com o que estamos presenciando nestes desregrados anos. Tensões, conflitos, antagonismos são disponibilizados a quem participa da política com a mesma assiduidade com que o pão comparece à mesa do café da manhã. Esse serviço diário é proporcionado pela disputa do poder e encontra sua síntese nos alinhamentos de governo e oposição. Em países que se dizem democráticos, sem a hipocrisia dos hierarcas cubanos e venezuelanos, sempre há um governo e sempre há uma oposição livre. Os cidadãos, naquilo que lhes corresponde, reconhecem essa polarização identificando-se com algum dos lados.

O Brasil destes inusitados dias é curiosa exceção. Há governo, há oposição, mas ampla maioria da sociedade, se pudesse, botava os dois blocos no olho da rua. A polarização se tornou jogo meramente institucional, em cujos desdobramentos, inclusive, são rotineiros os momentos de convergência e recíproca proteção sempre que interesses escusos estão sob ameaça. Nestes casos, as ideologias são mandadas às favas e se estabelece, sólida, a sociedade dos celerados. A nação - militantes à parte porque formam uma categoria social distinta - percebe os fatos e se distancia dos polos políticos. É baile de cobra onde não se entra sem perneira. A rede com que se captura a confiança dos eleitores tem rombos pelos quais até baleias transitam.

Inusitado, também, o desalento nacional perante as estruturas do poder político. Insistentemente tenho escrito sobre a irracionalidade do nosso modelo institucional, sua fertilidade em gerar crises e incompetência para resolvê-las sem gravíssimas sequelas. Em linguagem farmacológica, nossos remédios institucionais são estranhos placebos, com paraefeitos que se agravam quando as sessões dos tribunais superiores são submetidas ao crivo da opinião pública. Definitivamente, eles não se ajudam quando metem os pés políticos pelas mãos jurídicas.

Além da tela do computador com o qual escrevo, além da touch screen do telefone celular, há um mundo nada virtual, bem real, clamando por ordem, justiça e atenção às suas necessidades básicas; há todo um setor produtivo carecendo de estabilidade, credibilidade e capacidade de investimento. Nosso país é um gigante geográfico e populacional onde solavancos políticos afetam a vida de milhões de pessoas. E nós estamos enfrentando terremotos. É desde essa perspectiva, tomado por desalento em relação às urgências nacionais, como as reformas ora em debate e as político-institucionais, que desejo registrar três convicções.

Primeira: não é tudo a mesma coisa. Ainda que a desonra venha a atingir equitativamente os blocos de governo e oposição, em quase tudo mais que importa há, entre eles, desigualdades muito relevantes sobre temas fundamentais. Refiro-me, por exemplo, a papéis do Estado, privatizações, corporativismos, equilíbrio fiscal, economia de mercado, direito de propriedade e violações a esse direito; educação, família, aborto e políticas de gênero; segurança pública, conflitos sociais e drogas. E por aí vai, que a lista é longa.

Segunda: a justiça tardará a chegar. A morosidade do sistema, que muitos de nossos ministros dos tribunais superiores consideram necessária à boa administração da justiça, não permitirá que esse poder de Estado, antes das próximas eleições, remova da cena política as organizações criminosas que envergonham a nação.

Terceira: a principal fase da operação Lava Jato será tarefa nossa. Ela ocorrerá em outubro do ano que vem, quando, num flash bissexto, o poder transitará pelas mãos do povo... (A íntegra do texto pode ser lida aqui)

 

 

Percival Puggina

26/06/2017

 

 Por não lhe haver sido disponibilizado o instituto da colaboração premiada, Marcos Valério acabou como grande pato da ação penal referente ao Mensalão. Segundo leio, o publicitário, tardiamente, vem procurando construir um acordo nesse sentido desde meados do ano passado. Foi no âmbito da posterior Lava Jato que esse instrumento processual chegou aos colarinhos brancos e evidenciou sua inequívoca utilidade para desbaratar organizações criminosas que atuam nas vísceras do Estado brasileiro.

 Quando as delações começaram a ser divulgadas, manifestou-se na opinião pública certa rejeição, considerando-as intoleráveis à luz dos ensinamentos morais comuns. Não é reverenciável, de fato, a conduta do dedo-duro, do alcaguete. Por isso, há advogados que se recusam a empregar tal expediente na defesa de seus clientes. No entanto, a Lava Jato jamais alcançaria a abrangência que alcançou não fosse o uso massivo que dele vem fazendo. Para que se tenha ideia do vulto que tomou, em março deste ano somavam-se 140 acordos de colaboração e, como não há reserva de mesa para tais celebrações, subsiste longa fila de espera.

Data de 2013 a Lei de Combate às Organizações Criminosas, que disciplina a matéria em nosso país. O crime organizado, dificilmente é desarticulado de alto a baixo e desfeito em peças que possam ser buscadas pela polícia, sem que alguém, desde dentro, entregue o serviço. A lei dá ao procedimento o nome de "colaboração premiada" e, convenhamos, é muito bem-vinda. Através dela, ironicamente, muitos congressistas membros da Orcrim acabaram fornecendo à justiça a corda com que, um dia, poderão ser "enforcados".

E o caso da JBS? Ou, mais especificamente, o caso do super prêmio concedido à colaboração de seus proprietários, que o STF acabou de sacramentar? Pois apesar da pragmática e burocrática decisão do Supremo, que se ateve aos aspectos formais da decisão do ministro Edson Facchin, seu exotismo dá margem a especulações. Se até o santo tem direito de desconfiar das esmolas excessivas, não podem ser menos legítimas as suspeitas dos pecadores. E bota excessivas nisso! O próprio tribunal não ficou alheio a essa excepcionalidade. É o que se depreende das manifestações de alguns ministros sobre o fato de que uma revisão desse acordo ensejaria uma enxurrada de pedidos semelhantes pelas defesas de outros réus.

Tudo, na verdade, chama a atenção: a presteza da operação; a concessão de absoluta anistia aos crimes praticados pelos Batista Brothers, malgrado a magnitude dos danos causados ao Erário e ao país nos âmbitos fiscal, previdenciário, político e econômico; a acolhida e a divulgação da gravação com Temer como prova maior (ao que se sabe), sem ter sido periciada; a estranha acolhida no âmbito da relatoria da Lava Jato (ministro Edson Fachin) de um acordo de colaboração que nada tem a ver com o caso do qual ele é relator; o evidente estrabismo dos colaboradores que receberam seus mais fabulosos bônus, em espécie, durante os governos petistas, mas desfecharam a integralidade de sua denúncia contra Michel Temer.

Por outro lado, permanece incompreensível ao meu entendimento o tal acerto pelo qual o presidente Temer, com 76 anos de idade, passaria a receber parcelas semanais (!) de R$ 500 mil ao longo de 20 anos, ou seja, até os 96 (!) num negócio com preço de gás. Quem neste país faz acordos por vinte anos? Quem se iria expor a carregar mala de dinheiro, toda semana, até 2037? Que influência pode exercer Temer sobre o CADE ou qualquer órgão público, que não se extinga, no máximo, em 18 meses? Muito, muito estranho!

Esclarecimento final: se repudiei a chapa Dilma/Temer em 2014; se sempre me pareceu que, tendo este último ocupado as posições que ocupou em seu partido e no governo, era impossível atribuir-lhe o desconhecimento dos fatos que aconteciam à sua volta; se, por isso, em nenhum momento me alinhei em sua defesa, não será agora que o farei. Este artigo é, apenas, um desabafo de minhas perplexidades.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

21/06/2017

 

 Em 1959, meus pais vieram morar em Porto Alegre. Aqui estavam as universidades e os melhores colégios públicos que para elas preparavam seus alunos. No topo da lista, o Colégio Estadual Júlio de Castilhos e seus excelentes professores. Por ali passaríamos os sete irmãos, cada um ao seu tempo. Era impossível, na efervescência intelecto-hormonal e no dinamismo da política estudantil dos anos 60, ficar imune aos debates e às disputas entre as distintas e "sólidas" convicções dos adolescentes às voltas com suas espinhas. Foi nesse ambiente que ouvi, pela primeira vez, afirmações que repercutiriam através de sucessivas gerações de brasileiros: nosso país, a exemplo de outros, era subdesenvolvido por causa do imperialismo norte-americano, do capitalismo, da ganância empresarial e da remessa de lucros para o estrangeiro. Desapropriação e nacionalização compunham palavras de ordem e o fogoso Leonel Brizola se encarregava de agitar a moçada com inflamados discursos a respeito.

 Para proporcionar ainda mais calor àquela lareira ideológica, Fidel Castro, montado num tanque, passara por cima dos supostos males causados pela burguesia e - dizia-se - colocava Cuba no limiar do paraíso terrestre. Derrubara uma ditadura e implantava o comunismo na ilha. Cá em Porto Alegre, nos corredores do Julinho, os mais eufóricos desfilavam entoando "Sabãozinho, sabãozinho, de burguês gordinho! Toda vil reação vai virar sabão!". A efervescência tinha, mesmo, incontidas causas hormonais.

Em meados de 2015, o New York Times publicou matéria repercutida pelo O Globo sobre as expropriações e nacionalizações promovidas pela revolução cubana em seus primeiros três anos. Menciona vários contenciosos que se prolongam desde então, envolvendo, entre outros, o governo espanhol, uma entidade representativa dos interesses dos cidadãos espanhóis, os Estados Unidos, bem como empresas e cidadãos norte-americanos e cubanos. Todos tiveram seus haveres confiscados, expropriados e, em muitos casos, surrupiados por agentes públicos. Ao todo, dois milhões de pessoas abandonaram a ilha, deixando para trás seus bens. Muitos, como a nonagenária Carmen Gómez Álvarez-Varcácel, que falou ao NYT por ocasião dessa reportagem, tiveram tomadas as joias de família que levavam no momento em que abandonavam o país. Segundo a justiça revolucionária, tudo era produto de lucro privado e merecia ser expropriado. Quem, sendo contra, escapasse ao paredón, já estava no lucro. Um estudo da Universidade de Creighton fala em perdas de US$ 6 bilhões por parte de cidadãos norte-americanos. As pretensões espanholas chegariam a US$ 20 bilhões.

No discurso da esquerda daqueles anos, e que se reproduz através das gerações, Cuba, tinha, então, o paraíso ao seu dispor. Sem necessidade de despender um centavo sequer, o Estado herdou todo o patrimônio produtivo, tecnológico e não produtivo de empresas privadas e de milhões de cidadãos. Libertou-se a ilha da dita exploração capitalista. O grande vilão ianque foi banido de seu território. Extinguira-se, de uma só vez e por completo, a remessa de lucros. A maldosa burguesia trocara os anéis pelos dedos.Tudo que o discurso exigia estava servido de modo expresso, simultâneo, no mesmo carrinho de chá.

Cuba, no entanto, mergulhou na miséria, no racionamento, na opressão da mais longa ditadura da América, na perseguição a homossexuais, na discriminação racial e na concessão a estrangeiros de direitos que, desde então, recusa ao seu povo. Por outro lado, enquanto, em nome da autonomia dos povos, brigava como Davi com bodoque soviético contra os Estados Unidos, treinava e subsidiava movimentos guerrilheiros centro e sul-americanos, e intervinha militarmente em países africanos a serviço da URSS.

O recente recuo político promovido por Trump nos entendimentos com a alta direção de Castro&Castro Cia. Ltda. leva em conta aspectos que foram desconsiderados por Obama e pelo Papa Francisco, tanto na política interna da ilha quanto nos contenciosos nascidos naqueles primeiros atos da revolução. Não posso ter certeza sobre quanto há de proteínas democráticas na corrente sanguínea de Trump animando essa decisão. Mas não tenho dúvida, porque recebo informações a respeito, que os milhões de cubanos na Flórida conhecem como ninguém a opressão política, a coletiva indigência, a generalizada escassez e a falta de alternativas que sombreia sucessivas gerações de seus parentes sob o jugo de uma revolução velha e velhaca, decrépita e rabugenta. E essa pressão política pesa muito por lá.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

20/06/2017

 

 

 Quando foi lançado o livro Bandidolatria e Democídio - Ensaios sobre garantismo penal e a criminalidade no Brasil, eu estava em viagem de férias e não pude comparecer, como tanto gostaria e como seria meu dever, distinguido que fora pelos autores com o privilégio de prefaciá-lo. Registro, então, o fato e o ato, publicando o texto que escrevi sobre minha leitura desta corajosa e importante obra. Bandidolatria e Democídio é uma co-produção das editoras Armada e Resistência Cultural e teve sessão de autógrafos na Livraria Cultura do Bourbon Shopping Country em Porto Alegre, dia 7 deste mês de junho.

 

 A obra que você tem em mãos, antes de ser um livro, é um acontecimento. Entendida assim, deveria ser manuseada como se o leitor participasse de um evento, desses que o acaso nos permite testemunhar e as compulsões da vida moderna fazem surgir o desejo de capturar em forma de imagem. Clic! Este livro, saiba, está na categoria dos atos heróicos. Há nele muito do destemor exigido para um salto ao fosso das ariranhas. Seus autores são membros do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, o que torna ainda mais relevante a corajosa determinação de, juntos, o produzirem.

O promotor de Justiça Diego Pessi, atua na comarca de Erechim e o promotor Leonardo Giardin de Souza exerce suas atividades em Taquara. Os dois trazem às páginas de Bandidolatria e Democídio - Ensaios sobre garantismo penal e a criminalidade no Brasil - vigorosas experiências de quem, no exercício de sua função institucional, conhece e atribui justíssimo valor às expectativas da sociedade em relação ao aparelho judicial. E sofre, com a sociedade, as dores de suas perdas ante a terrível expansão da criminalidade em nosso Estado e em nosso país. Dessa angústia nasce cada página desta obra, da qual me foi dado o privilégio da leitura prévia e o convite para prefaciá-la.

Há, aqui, alguns relatos sobre criminalidade, a guisa de ilustração, tomados ao acaso no farto provimento disponibilizado pelo cotidiano nacional. Na dose certa, eles servem como motivação para o que lhe é essencial: constatar e demonstrar que os avanços da criminalidade contam com inegável favorecimento proporcionado pelas elites políticas, pelas instituições do Estado brasileiro, por amplos segmentos do mundo acadêmico, por doutrinas em voga e moda no mundo jurídico, pela ideologia que imanta os adeptos da Teologia da Libertação e pela maior parte dos nossos formadores de opinião. Não por acaso, listei, quase à exaustão, a parcela da elite nacional de quem a sociedade espera a fração de bem comum que não seja de produção própria.

Os autores, com diferentes estilos e focos, vão desmontando as falácias que fornecem inspiração à maior parte dos textos que chegam ao grande público sobre o tema da sua própria insegurança. Eles demonstram que essas abordagens são desfocadas, ou erradas, ou mal-intencionadas, como bem evidenciam suas consequências na vida social.

O grande inimigo aqui combatido é, ao mesmo tempo, o grande amigo da criminalidade e causa eficiente do descontrole a que chegou entre nós. Leonardo Giardin de Souza, informa seu nome e sobrenome: é o "Garantismo Penal, filho bastardo do Marxismo Cultural, gestado no ventre de aluguel do Positivismo Jurídico".
Vai-se a obra, então, atrás dessas raízes, mostrando a perversidade da seiva que por elas flui, a envenenar, desde dentro, a árvore institucional brasileira, robustecendo todos os níveis do mundo do crime e debilitando a sociedade. Eis a esteira doutrinária pela qual se chega à "bandidolatria", prática corrente no ambiente jurídico e penal brasileiro, que transforma o criminoso em vítima de quem não se poderia exigir conduta distinta e a vítima em imperdoável beneficiário e coautor da desigualdade social que levaria ao crime. Sem a dolosa conduta de todas as vítimas - disso querem nos convencer os bandidólatras - viveríamos num mundo de amor, segurança e paz. Os autores sustentam diferentemente e, ao fazê-lo, confrontam poderes e poderosos. Não miram para o rés do chão, mas para as Torres de Marfim das elucubrações e para a insensível arrogância de tantos gabinetes.

Com fundamento em bons autores e em estudiosos da criminologia como ciência, afirmam que o criminoso é um agente consciente de seu poder, buscando realizar desejos, informado sobre o quanto lhe estão franqueados os meios de ação pela falta de reação e investido de autorização tácita expedida pela "intelectualidade" nacional. Sendo infinitamente maior o número de necessitados do que o número de criminosos e havendo tantos criminosos materialmente abastados, resulta óbvia a conclusão de Diego Pessi: não é a necessidade que leva ao crime, mas a submissão ao conjunto de paixões e pulsões, na ausência da alteridade. A inteligência do criminoso calcula riscos, avalia ganhos e benefícios, e toma decisões como qualquer empreendedor em relação a seus objetivos.

Há neste livro, que percebo como um acontecimento, absoluta honestidade intelectual e compromisso com o bem da sociedade. Citam-se sentenças judiciais que escandalizam consciências bem formadas. Inclusive sentenças colegiadas, de segundo grau, que, feliz e oportunamente, receberam severas revisões. Constituem exemplos clássicos do que os autores reputam importante combater. São expressão vultosa do inimigo doutrinário, cultural, ideológico e político a desmascarar e superar.

Sem necessidade de formação jurídica, a sociedade brasileira já deu claros sinais de haver entendido a quem servem aqueles que reservam à atividade policial apenas palavras de censura, advertência e condenação. Cumprem tarefa antissocial minuciosamente caracterizada nestas páginas. Seguem à risca a prescrição que determina marcar sua atuação como em defesa dos direitos humanos. São onipresentes para apontar o dedo acusador a alguma ação excessiva, mas desaparecem envoltos no próprio silêncio e omissão quando policiais morrem defendendo a sociedade. É importante a reflexão dos autores, com apuro técnico e verdadeiro humanismo, a respeito dos encargos que recaem sobre a categoria funcional dos policiais. No elevadíssimo nível de violência incidente em nosso país, os criminosos, protegidos pela bandidolatria, ampliam sem cessar seus confrontos com a sociedade e, especialmente, com a polícia. Esta constitui, portanto, a parcela mais exposta, mais confrontada de modo violento e é nela que, proporcionalmente, se contabiliza o maior número de vítimas de homicídio.

Fracassará irremediavelmente toda política de segurança pública que não incluir a ampliação dos contingentes policiais e a construção de estabelecimentos prisionais em números suficientes para atender a demanda. O mero controle de território e a simples pressão sobre tal ou qual atividade criminosa apenas fazem com que os agentes do crime migrem para outro local ou para outro ramo. Será infrutífera toda legislação que desconhecer o fato de que a cadeia é o lugar onde os bandidos devem estar. Carência absoluta de penitenciárias é o sonho sonhado por todo criminoso. A bandidolatria aposta no caos da segurança pública como berçário de sua utopia. Por isso, não hesita em reprimir a atividade policial, em ser a favor do desarmamento da população, contra a construção de novos presídios e hospitais psiquiátricos, contra a pena de prisão e contra a redução da maioridade penal, contra a prisão após condenação de segunda instância e tem verdadeira devoção pelo sistema recursal do nosso processo penal (CPP).

Não se chega a um nível de criminalidade geral em que meio milhão de veículos são roubados anualmente e o número de homicídios bate nos 60 mil anuais (caracteriza o que este livro denomina democídio), sem que os valores capazes de inspirar condutas retas tenham passado pelo moedor do relativismo moral. É a infeliz vingança do Adão pós-moderno. Ele expulsa Deus do seu peculiar "paraíso humanista", cuja primeira perda é a do fundamento conceitual da própria dignidade. Eis a gênese da displicência moral que se expande sem poupar a parte mais saudável da sociedade brasileira. Afinal, o que seria pecado, ao sul do Equador? Assim, enquanto, por um lado, as fanfarras do relativismo fazem evanescer as noções de certo e errado, bem e mal, verdade e mentira, por outro chega-se a tempos ainda mais assustadores, soturnos. A soleira da porta é local de perigo, espaço aberto aos predadores.

O garantismo jurídico que empolga teóricos da inação e da passividade togada é irmão gêmeo do desarmamento e das carpideiras de bandidos, olhos secos ao genocídio das pessoas de bem. São os mesmos que afirmam e reafirmam, para concluir que "prender não resolve", a falácia segundo a qual já temos presos em excesso. E são os mesmos, também, que veem nas páginas policiais relatos de guerrilha social, newsletters cotidianas de uma Sierra Maestra revolucionária, infinitamente mais violenta e menos sutil do que a original. São os mesmos, por fim, que fornecem aos malfeitores a porção de "ternura" - para não olvidar Che Guevara - em forma desse falso e desumano humanismo que resguarda o malfeitor e se desapieda de suas vítimas.

É nesse tempo e para esse tempo que escrevem Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza. Há em suas páginas angústia, sangue e dor, mas, também, valentia e esperança. E um suave perfume que me permito definir como amor ao Direito, à Justiça e ao bem da sociedade a que se comprometeram a servir no desempenho de sua missão institucional.

Percival Puggina


 

Percival Puggina

18/06/2017

 

 A transformação da lagarta em borboleta é de exemplar riqueza poética e estética. A lagarta é feia, a borboleta bonita; a lagarta se arrasta sobre o próprio ventre, a borboleta adeja livre; a lagarta se esconde, a borboleta domina o cenário com sua irrequieta presença. Mas a lagarta e a borboleta não têm escolha. Aquela não pode deixar de evoluir; esta não pode regredir. Se fosse dado as borboletas reverter seu destino, as que fizessem isso cumpririam um script corrupto, sombrio, insano.

Homem e mulher nascem como obras-primas do Criador, mas têm a faculdade de eleger para si mesmos o destino das lagartas. E creio que nunca como nestes tempos tais escolhas se fizeram de modo tão radical; jamais, para inteiro descrédito da borboleta, se exaltou tanto a lagarta que existe em nós!

Comecei estas linhas relendo uma crônica com o mesmo título, escrita há 20 anos. Pretendia escrever, de novo, sobre os males da droga, que encontra defensores de sua liberação, que é propagandeada por roqueiros de prestígio, que tem representação política e leva às ruas multidões em marchas pela maconha. É raro o dia em que a droga não está na mídia - e quase nunca para advertir contra seu uso. E ela vai chegando a toda parte, viciando, afetando cérebros, destruindo carreiras e famílias, convertendo escolas em centros de tráfico, diminuindo a percepção e a motivação, arrastando à marginalidade, matando e produzindo assassinos, corrompendo, calcinando afetos e transformando borboletas em lagartas que se arrastam no implacável e dilacerante casulo do vício. Inferno!

Pois era sobre isso que pretendia escrever quando me sentei diante do teclado, mas percebi que a questão é mais ampla. A opção pelo casulo e pela vida da lagarta é, sobretudo, uma sucessão de renúncias - à beleza, à bondade, à verdade, à virtude. Não deixa de ser curioso que tais repúdios se façam, quase sempre, em nome desse dom esplêndido que é a liberdade, tão perceptível no voo das borboletas.

Poucos autores penetraram tão profundamente quanto Dostoiewski nos meandros soturnos da mente e do agir humano. Mas esse mergulho nos casulos onde o mal opera insidiosas transformações era, ao mesmo tempo, uma convocação à beleza que aparece - tão nítida! - neste vaticínio proferido em O idiota: "A beleza transformará o mundo". O mal e suas forças sabem-no perfeitamente. Por isso, arrastando criaturas que não lhes pertenciam, rompem com toda harmonia; inspiram a negação do belo e, mais do que isso, buscam o hediondo; levam às esquinas e praças monumentos impossíveis de contemplar; produzem músicas inaudíveis; põem nas ruas multidões de detratores da beleza, pichando, vandalizando, enfeando as cidades; deformam fisionomias humanas com procedimentos mutiladores e se comprazem com exposições em que a arte não passa pela porta. Sobretudo, buscam apagar Deus da cultura, porque ele, sendo infinito Amor, é o belo absoluto.

Quando vejo tanta opção fundamental pelo vício, pela mentira, pela maldade, não posso deixar de pensar que tais seres nasceram borboletas e viveram, todos, aquele momento sublime em que os bebês contemplam o movimento das próprias mãos como o mover de borboletas chamando a um futuro de beleza.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.