É preciso reconhecer. A mitificação de Lula no nível que alcançou só poderia ocorrer mediante o invulgar conjunto de circunstâncias que alia características pessoais do líder; notáveis estratégias de poder e de comunicação social; circunstâncias internacionais favoráveis à economia brasileira; manutenção, durante boa parte de seu governo, das políticas de responsabilidade fiscal iniciadas com Itamar Franco; dotação de significativos recursos para o programa Bolsa Família; simpatia internacional ao perfil do operário no poder cuidando dos pobres. E por aí vai.
Oitenta e tantos por cento de aprovação no mercado interno, a condição de celebridade internacional e a louvação da mídia mundial compõem um irresistível quadro de mitificação que colocam Lula num altar onde só se pode depositar flores. Critique quem quiser no país, mas não faça isso com Lula. Pega muito mal e retira de você credibilidade para qualquer outra coisa que pretenda dizer. É inútil mostrar que o governo petista se encaminha para fechar uma década com o país ostentando os piores indicadores, seja entre os membros do BRIC, seja entre nossos vizinhos da América Ibérica: a economia que menos cresce, a maior taxa de juros, a menor taxa de investimento, a maior inflação e a maior carga tributária. E as funções essenciais do governo (Educação, Saúde, Segurança e Infraestrutura) numa precariedade que ninguém, em sã consciência, deixará de reconhecer. São afirmações inúteis. Tudo se passa como se, depois de oito anos no poder, Lula nada tivesse a ver com isso. A ele, apenas créditos.
No entanto, há débitos pesados na conta do lulismo instilado ao país. Em artigos anteriores, tenho afirmado que a política exige senso de realidade, que os bons estadistas são pessoas realistas, são pessoas afastadas de utopias e devaneios e interessadas em respostas corretas para duas interrogações essenciais: qual é o problema? qual é a solução? Nesse sentido, reconheça-se, ao romper com os delírios esquerdistas do PT, Lula conseguiu acertos e afastou-se de muitos erros. Mas na política, o realismo de Lula tornou-se cínico, desprovido de restrições de ordem moral. Abrigou à sombra do poder as piores figuras da política nacional. Não apenas as acolheu. Foi buscá-las para compor a base do governo. Entregou-lhes poder, cargos, fatias do orçamento e poderosas empresas estatais. Teve olhos cegos e ouvidos moucos para as patifarias que proliferaram do topo à base da pirâmide do governo. Seu partido, quando na oposição, brandia indignações morais, pedia CPI para carrocinha de cachorro quente e levantava suspeições sobre a honra de quem se interpusesse no seu caminho. No poder, foi o que se viu, o que ainda hoje se vê, e o quanto já veio à superfície nos primeiros meses da presidente Dilma, sob silêncio conivente das instrumentalizadas organizações sociais cuja boca foi emudecida por cargos e recursos públicos.
A corrupção, casada em união estável e comunhão de bens com a impunidade, alcançou níveis sem precedentes. Estudo da Fiesp adverte para o fato de que ela consome algo entre 1,4% a 2,3% do PIB e custa cerca de R$ 69 bilhões nas contas da gatunagem fechadas a cada réveillon. A nação chegou ao fastio e à náusea dos escândalos de cada dia. Há uma indignação silenciosa. Ensaiam-se mobilizações de repulsa à corrupção. Mas elas são escassas, pequenas e de utilidade duvidosa. Por quê? Porque a corrupção pode ter filiais até na mais miserável prefeitura do país, mas a matriz está onde está a grana grossa, no poder central da República, para onde convergem todos os cargos, todas as canetas pesadas, todas as decisões financeiras, todos os contratos realmente significativos. E 23% do PIB nacional. O resto é resto.
Mas não há como apontar o dedo nessa direção sem atingir em cheio o peito de quem, durante oito anos, desempenhou a mesma função de seus antecessores. E a estes, Lula, seu partido e fieis seguidores, sistematicamente, responsabilizavam por toda desonestidade existente no país. Quem quer que sentasse para governar, logo vinha o Fora Collor, o Fora Sarney, o Fora FHC. Alguém sabe me dizer por que, de repente, a corrupção não tem nome próprio nem governo definido? Eu sei. O lulismo amordaçou a moralidade nacional.
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* Percival Puggina (66) é titular do blog www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.