Twitter: @percivalpuggina
O sujeito me parou na rua: Cadê os caras-pintadas? Cadê os caras-pintadas? A mão no meu peito parecia disposta a impedir qualquer possibilidade de que a pergunta ou o perguntador fossem driblados. Era preciso responder. Respondi: Você não está querendo sugerir que os caras-pintadas expressavam espontaneamente uma sentida revolta popular, está?. Ele me olhou surpreso: Como que não? Como que não?. Em sua indignação ele dizia tudo duas vezes. Acho que uma para si mesmo e outra para mim.
Tentarei resumir o que falei àquele meu interlocutor. Ele não sabia que contingentes expressivos de caras-pintadas saíram às ruas para derrubar o Collor, não só porque ele forneceu motivos, mas, principalmente, porque faziam parte de uma grande corrente aparelhada pelo PT e seus parceiros, ou foram por ela levados a pintar o rosto.
Há muitos anos, desde antes da nossa redemocratização, teve início um processo revolucionário, de ação gradual, mediante infiltração e ocupação de espaços para tomada do poder através da cultura. Não foi e não é um fenômeno apenas brasileiro ou latino-americano. Trata-se de algo que aconteceu e segue acontecendo em todo o Ocidente. O Foro de São Paulo organiza o trabalho na América Latina e no Caribe e o Brasil é um dos casos de sucesso. A revolução é cultural, mas o objetivo é político: a esquerda no poder, para ficar.
A melhor maneira de mostrar o que aconteceu é adotar como ponto de partida não uma sequência cronológica de fatos, mas exibir a obra já feita, o produto acabado, porque não há consequência sem causa. Não há laranja sem que tenha havido laranjeira. Não há corrente sem que elos sejam criados e unidos. Não há hegemonia sem construção de hegemonia.
Vamos, então, às laranjas. Recentemente, houve eleição para o sindicato dos professores do Rio Grande do Sul. Digladiaram-se três chapas, sendo duas encabeçadas por petistas. A eleição se travou no que deveria ser o pior período possível para essas duas chapas. O magistério estadual acabara de ver frustradas as expectativas de que o governo Tarso fosse atender as exigências que seu partido, em coro com as lideranças classistas, fazia aos que o antecederam no Piratini. Calote puro e simples. Não bastante isso, o PT estava, nesses mesmos dias, adicionalmente, elevando a alíquota de contribuição previdenciária de todos os servidores com vencimentos superiores a R$ 3,6 mil. Pois o pacote de maldades em nada afetou o alinhamento ideológico do magistério público. As duas chapas de esquerda perfizeram mais de 90% dos votos! Por quê? Porque para gente bem doutrinada o projeto político subordina tudo e todos.
Com raras, raríssimas exceções, quando contemplamos, em visão de conjunto, a educação nacional, pública ou privada, leiga ou religiosa, em todos os níveis, a situação é a mesma. Através da Educação e seus agentes, já nas salas de aula do ensino fundamental, a hegemonia vai subindo os degraus do sistema, envolvendo professores e alunos. Não é por acaso que a UNE vem sendo comandada pelo PCdoB desde quando o Aldo Rebelo era adolescente. A porta de entrada dos cursos de pós-graduação raramente não inclui uma banca com o poder de filtrar as ideias que ganharão assento nas salas de aula. Daí para o domínio das carreiras de Estado, dos concursos públicos, e até mesmo de suas provas, não vai mais do que um passo de dedo.
Assim, aos poucos, as teses da esquerda foram vestindo toga e chegaram aos tribunais. Primeiro, como vozes discordantes. Mais tarde, nas câmaras, os desembargadores comprometidos com a revolução pela cultura perdiam por 2 a 1. Depois, inverteram o placar. Aos poucos, passaram a controlar os Plenos. Chegaram aos tribunais superiores. Hoje dominam o STF.
Mais laranjas da mesma laranjeira podem ser contempladas na mídia. Os textos que saem das redações, as pautas, os enfoques, as análises servem notavelmente à revolução através da cultura. Direita não presta, conservador é nome feio, as religiões são culpadas por todos os males, católicos são seres desprezíveis. Pouco importa que a posição editorial seja diferente quando a informação, o comentário, o tópico mais lido, a manchete que resume a matéria, o tom de voz do locutor experiente, a imagem selecionada para ir à tela, afirmam num outro viés. Na televisão, a hegemonia da Rede Globo facilitou o projeto, mormente no que se relaciona com o enfraquecimento da instituição familiar, a lassidão dos costumes, a agenda gay, a ridicularização da religião e dos valores ainda apreciados pela sociedade.
Mesmo que escrutine os escaninhos da memória, não é de meu conhecimento instituição mais una do que a Igreja Católica, ao menos nos últimos cinco séculos. Pois esse baluarte foi rompido internamente por dissensos ideológicos promovidos pela mesmíssima revolução através da cultura. Não há o que os dois últimos pontífices tenham afirmado desde 1978 que seja capaz de afastar a CNBB, a maioria dos bispos, padres e seminaristas da herética Teologia da Libertação (TL). Nada nem ninguém prestou melhor serviço à hegemonia da esquerda do que a TL quando substituiu o pobre dos Evangelhos pelo excluído em nome do qual ela se proclama formulada. O pobre dos Evangelhos é objeto da caridade cristã, da virtude do amor ao próximo. O excluído da TL é parte ativa de um projeto revolucionário. Serviço feito.
Eu poderia prosseguir, apontando obviedades como a hegemonia exercida sobre os sindicatos e suas centrais, os movimentos sociais, a Justiça do Trabalho, a maior parte dos conselhos profissionais e suas confederações, as associações de bairro, e por aí afora. Mas não creio que seja mais necessário. Já provei o que queria. Note-se: tudo isso foi feito antes de Lula chegar lá.
Quando ele chegou, completou o serviço promovendo o encontro de todas essas estruturas - que o PT chama de sociedade civil organizada (por ele, claro) - com a brutal concentração de poderes que constitucionalmente convergem à pessoa do presidente e ao seu partido: chefia simultânea do Estado, do governo e da administração, das estatais e fundos de pensão; comando das principais fontes de financiamento interno (BB, BNDES, CEF), de 24% do PIB nacional, de poderosas e polpudas contas de publicidade capazes de excitar favoravelmente parcela expressiva da mídia; poderes para legislar por medida provisória, nomear ministros dos tribunais superiores, conceder e renovar concessões de emissoras de rádio e tevê, criar e distribuir cargos e favores.
Se o partido do governo detém tal poder e, simultaneamente, controla tudo que está organizado na sociedade, de onde, raios, poderão surgir os caras-pintadas? Das piedosas senhoras idosas da hora do Ângelus? Do clube de mães da vila Caiu-do-céu? O que podem eventuais organizações não alinhadas, dispersas e desprovidas de qualquer poder, contra quem coloca quatro milhões de militantes numa Parada Gay?
Nesse ponto, meu interlocutor já queria ir embora e era eu que o travava colocando a mão sobre seu peito. Mas ainda existe a oposição! Ainda existe a oposição!, bradou, por fim, em sua desesperada dose dupla de santa ira. Oposição? Não há oposição política no mundo capaz, neste momento, de sequer arranhar a teflon da máquina hegemônica petista. A blindagem não é do Palocci, da Erenice, do Lula ou do filho do Lula. O que está blindado é o projeto revolucionário, o projeto de poder. É de setores do próprio PT que surgem, eventualmente, problemas para o PT. E quando a oposição política mais forte leva o nome de dissidência, é porque está tudo dominado e o totalitarismo está instalado. Quod erat demonstrandum.
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* Percival Puggina (66) é titular do blog www.puggina.org, arquiteto, empresário e escritor, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.