Transcrevo trecho da excelente resenha de meu livro, feita por João César de Melo para o IL.
Por que ainda falar da ditadura cubana? Porque as forças que mantém aquela ditadura de pé são as mesmas que mantém Lula, mesmo condenado e preso por corrupção, como o principal nome da política brasileira. A Cuba da “igualdade social sabotada pelos Estados Unidos” é produto da mesma máquina de propaganda que diz “Lula é inocente, perseguido por ter governado para os pobres”.
A ditadura em Cuba nos mostra até que ponto a esquerda pode chegar para impor seu projeto ideológico. Ninguém apoia um regime sem compartilhar a maioria de suas políticas, assim como só defende Lula quem pensa como ele.
Não existe militante de esquerda ignorante. Eles sabem muito bem o que defendem.
Ainda é importante falar sobre Cuba porque ainda existem muitas pessoas comuns, vítimas da propaganda da esquerda, que não sabem o que realmente acontece naquela ilha; e justamente por não saberem, não enxergam a profundidade da militância de pessoas como Gleisi Hoffmann, Fernando Haddad, Guiherme Boulos, Manuela D’Avila e Marcelo Freixo.
Sempre esteve disponível um considerável número de publicações sobre os horrores da ditadura cubana, mas faltava um olhar brasileiro in loco sobre aquele regime. Alguém de nós que esteve lá não apenas uma vez, mas diversas vezes, em épocas diferentes. Não falta mais.
O livro A Tragédia da Utopia, do intelectual gaúcho Percival Puggina, traz não apenas dados e fatos sobre o regime, mas também relatos das viagens que o autor fez à ilha, seus contatos com cidadãos comuns e com dissidentes que acabaram sendo presos.
Puggina ainda expõe a relação da esquerda brasileira com aquele regime, destacando o papel da imprensa e da elite cultural no esforço de desinformação.
Como bem coloca o autor, nenhum brasileiro apontaria o Brasil atual como modelo para o mundo, mas há um verdadeiro exército de artistas, professores, parlamentares e jornalistas que apontam a ditadura cubana como modelo a ser seguido por todos os outros países.
Enquanto a grande maioria dos países - incluindo os mais pobres - progride, Cuba permanece ancorada na década de 1960. Onze milhões de cubanos continuam na miséria, dependentes do governo para quase tudo, sem qualquer perspectiva de melhora porque seus algozes vivem imersos num projeto ideológico que só consegue se manter de pé por meio da força e do apoio que recebe nos palcos, nos cinemas, nas universidades, nos parlamentos, na imprensa e de organizações internacionais.
O livro A Tragédia da Utopia nos coloca mais perto do drama cotidiano de um povo escravizado há 60 anos. A escassez de produtos, as péssimas condições de moradia, a prostituição em troca de itens que são acessíveis até a favelados brasileiros, a patrulha ideológica de vizinhos, o estado policial, os desesperados que preferem enfrentar uma travessia oceânica entre tempestades e tubarões a continuar vivendo em seu país natal.
Leia mais, aqui: https://www.institutoliberal.org.br/blog/olhar-para-cuba-para-entender-o-pt/?
* Aquisições: editoraarmada.com.br/br
**Exemplares autografados: http://www.puggina.org/fale-com-ele/
Em lançamento recente do circuito hollywoodiano, a vida de Coringa, ou "Joker", estrelado por Joaquim Phoenix, é retratada como a verdadeira "saga" do vilão mais temido de Gotham City, o único capaz de tirar o sono do homem morcego. É mais uma estória que se constrói pela curiosidade suscitada em nossas mentes quando nos deparamos com frases como "toda história tem dois lados", ou "você sabe o que o levou a fazer isso?", ou "você teve a ´empatia´ suficiente para entender o que leva um ser humano a praticar tais coisas?".
Não que estas reflexões devam ser descartadas de plano. Não se trata da falta de interesse em ver os dois lados de uma moeda, ou insistir em "ter aquela velha opinião formada sobre tudo".
Mas quando nos deparamos com a ficção, devemos ter em conta que, em abstrato, as mensagens e valores expostos pela obra ficcional buscam encontrar acolhida no íntimo do público que consumirá o enredo.
Como Aristóteles e outros vários filósofos e pensadores identificaram, seja na era antiga ou na moderna, a poética constitui a porta de entrada para a formação do convencimento do ser humano, sendo capaz, inclusive, de modificar padrões comportamentais que, executados amiúde, modificam os próprios padrões culturais que nos guiam.
A poética é o primeiro passo que devemos utilizar na busca da verdade. Daí conseguimos extrair, por exemplo, o impacto que as belas lições deixadas por C.S.Lewis, J.R.R.Tolkien e G.K. Chesterton tiveram na formação daqueles que incessantemente buscam o caminho da verdade, e sofrem as agruras do enfrentamento da ressignificação dos valores, promovida pelo marxismo cultural.
A indústria cinematográfica vive deste poder e sabe, como ninguém, explorá-lo.
Então, o que a estória de Coringa (ou "Joker") nos ensina?
Nada!
Pelo menos, nada de novo pois, lembre-se, estamos no Brasil.
Infelizmente, ao ver a estória de um bandido contada de maneira épica, a sociedade brasileira enfrenta a dura realidade do espelho diante de si.
A retórica da criminologia sob o enfoque da visão do bandido é a nossa regra. Estamos cansados de escutar máximas como "você não tem empatia pela vida daquele que cometeu um erro?", ou mesmo a mais direta bravata "ele é vítima da sociedade!". E há cansaço nos dois sentidos do termo, pois ouvimos ininterruptamente estes discursos e estamos, de igual forma, cansados de seus resultados, apesar de sabermos que tais reflexos seriam abundantemente comemorados por Luigi Ferrajoli, como de fato o são pelos fofos garantistas gerados a partir de seus estudos.
Como fica a empatia pela vida que se perdeu em decorrência da violência de um bandido?
Bom. No contexto do filme, a identidade maligna de "Joker" é solenemente ignorada, dando-se importância única às dificuldades que o "pobre" palhaço mal compreendido teve no curso de sua formação, e na demência decorrente destas dificuldades. O argumento sai da figura do bandido e das consequências de seus atos, deslocando-se com velocidade imperceptível para a vitimização da figura do bandido.
Sem querer dar "spolier", a mensagem é bem clara: "Joker" não teve culpa! A culpa foi de todos - da mãe, da rejeição social, dos ricos, dos "mauricinhos", dos comediantes, dos psicólogos, dos psiquiatras, da polícia, do governo, do sistema - menos de "Joker".
A retórica bandidólatra consegue isso! Transforma um bandido em herói de resistência contra um "sistema opressor". Estes valores robustecem a formação de opinião e acabam sendo internalizados por nós todos, sem a menor cerimônia. Aliás, nem mesmo nos damos conta das modificações que nos ocorrem e, como num passe de mágica (ou de poética), acabamos tendo mais "empatia" pelo criminoso do que pela vítima.
Assim foi feito com a massa que defende "Joker". A massa que o transformou em ídolo e chefe político de Gotham City.
Imagino se "Joker" vivesse em um campo de concentração, sofrendo das mesmas mazelas experimentadas por Viktor Frankl. O que ocorreria com o desafortunado palhaço que nega o fato da vida ser uma somatória de sua própria existência aliada às circunstâncias que ele próprio vive? Por graça e obra divinas, Viktor Frankl utilizou as dificuldades como circunstâncias propícias para a busca da verdade, e hoje temos os estudos sobre logoterapia consolidados nos mostrando que, ao fim e ao cabo, as dificuldades são exatamente aquilo que nós permitimos que sejam em nossas vidas, podendo funcionar como uma corda atrelada a um balão de gás, segurada com toda força possível, ou uma pedra amarrada no calcanhar.
A cultura da vitimização mostrou seus resultados em "Joker", personagem que, por suas escolhas ou omissões, deixou-se acorrentado a uma pedra enorme, trazendo consigo muitos outros que preferem a covardia da vitimização do que o enfrentamento da realidade.
No Brasil, nada é diferente.
Na verdade, Gotham City é uma cidade fictícia, com personagens fictícios que estão aí para nos lembrar de um país detentor de uma taxa de homicídios superior a 60.000/ano; de um país sempre atento para a proteção do bandido, e que sofre de amnésia quando se tenta proteger a vítima; de um país que recentemente legalizou a perseguição das autoridades que, ao invés de terem independência necessária para a ultimar a proteção da sociedade, estarão agora ocupando os bancos dos réus, bastando para isso um simples estalar de dedos dos bandidos (refiro-me à Lei de Abuso de Autoridade); de um país onde a busca do bom, do belo e do verdadeiro cede espaço à busca do nada.
Diante disso, fiquem tranquilos!
"Joker" jamais sairá de Gotham para nos perturbar.
O Brasil é demais para ele.
*Harley Wanzeller é magistrado federal trabalhista, escritor, e membro do Movimento de Combate à Impunidade. (20.10.2019)
**Publicado originalmente no Estadão
A Constituição brasileira diz que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal. Ela não diz que não poderá haver prisão antes do transito em julgado. Mas como alguém pode ser preso antes de ser considerado culpado? Ocorre que já há um juízo, haurido após duas instâncias e materializado em acórdão, prolatado por juízo colegiado de desembargadores, de que o réu é culpado, apenas ainda não se trata de uma condenação definitiva. Não se nega ao réu o direito de recorrer (recurso aliás limitado às questões de direito, pois as questões fáticas sequer podem ser analisadas em terceiro grau) apenas que a presunção de inocência não mais lhe socorre.
Sabem a dificuldade que é flagrar ou esclarecer um crime, conduzir um inquérito policial, fazer a denúncia penal, instruir o processo, condenar em primeiro e depois em segundo grau? Isso tudo com o respeito ao princípio da ampla defesa e com observância de todas as formalidades do processo penal, sem incorrer em qualquer nulidade e nem deixar que a prescrição fulmine o processo? E ainda ao final disso tudo poder localizar o réu e conduzi-lo à prisão?
O que alguns “juristas” querem é que a prisão para ser válida tenha de ser determinada não por um ministro, mas quem sabe pelo pleno do STF, tornando-a absolutamente impossível. Gostaria que me dissessem um único país no mundo em que isso acontece. Somos uma população de 200 milhões de pessoas para 11 ministros.
E mais: com o atual congestionamento do sistema recursal brasileiro, só consegue fazer subir o recurso extraordinário o réu que contar com exímio advogado processualista. Resulta que a prisão somente após o aval do STF beneficiará especialmente os crimes do colarinho branco. Réus estes que foram já muito bem defendidos nos dois graus de jurisdição anteriores. Então não venham defender a mudança da jurisprudência em nome dos mais humildes, pois não é no interesse destes que a mudança está sendo urdida. E como após subir o recurso o réu só poderá ser preso após ter seu pleito julgado e improvido, basta ao mesmo exímio advogado obrar não para que o STF julgue e absolva o seu cliente, mas simplesmente para que jamais o julgue. Assim, mesmo sem ser definitivamente julgado, ele jamais poderá ser definitivamente considerado culpado.
Pela procrastinação que se via no STF quando a prisão só podia ocorrer após o transito em julgado, o maior empenho dos nobres penalistas não era de que seus clientes fossem celeremente julgados e absolvidos para retomarem a honra e reputação ilibada perante a sociedade, mas pelo contrário, para que nunca fossem julgados. O direito ao processo justo se converte assim em direito ao processo infindo e interminável. Culminando na impossibilidade total de funcionamento da justiça penal.
O tão propalado medo de uma prisão temporária injusta não pode ser pretexto para emascular, tornar impotente e inoperante todo o sistema penal do país. A propósito, condicionar a aplicação da lei à certeza de um julgamento perfeito e imune a erros é pretender que a justiça, criada e operada por homens, se iguale à justiça divina. Somente um néscio ou mal intencionado pode colocar as coisas nestes termos.
A propósito, alguém aqui pode me explicar qual o critério da Corte Excelsa para pautar ou deixar de pautar determinado julgamento? Sinceramente pergunto porque não sei mesmo, se alguém souber me informe.
Muito mais lógico do que deixar solto alguém que ja foi condenado após o duplo grau de jurisdição é fazer o STF julgar com prioridade os eventuais recursos dos condenados que se encontram presos. Mas no mundo jurídico brasileiro o que vale mesmo é o amor à retórica e aos princípios ginasianos da ampla defesa e ao amplo contraditório, a lógica nunca gozou de grande prestígio entre nós.
Alguns falsos puristas dizem: que se mude a Constituição, o que não se pode é atropelá-la. Argumento falacioso: não é preciso nenhuma mudança, basta interpretá-la corretamente, como o STF faz tão bem sempre que lhe interessa.
Por fim: se a condenação de um Tribunal estadual ou de um Tribunal regional federal padece de validade e legitimidade, então o sistema judicial inteiro não vale nada e não será a decisão de 11 sábios plenipotenciários que terá o condão de redimir todo o sistema.
O retorno da prisão somente após o transito em julgado da condenação penal fará o Brasil ser benchmark mundial em impunidade, tornando-o atrativo para todo o tipo de bandoleiro e fora da lei medianamente instruído e informado mundo afora.
O que surpreende é como setores supostamente tão alinhados ao combate da impunidade podem agora, por puro casuísmo, se bandearem para o outro lado da força, sem nem ao menos se enrubescerem, demonstrando explicitamente sua venalidade.
No Brasil os debates ocorrem de maneira torta. Na verdade não há debate algum. Apenas a utilização de falsa dialética e hermenêutica jurídica pseudamente complexa para justificar mais uma grande manipulação e presepada.
Nota do Editor: este artigo, estampado em verdade e fatos, é o que derrubou da Veja o melhor colunista do Brasil. Ele o disponibilizou em sua página no Facebook.
Um dos grandes amigos do Brasil e dos brasileiros de hoje é o calendário. Só ele, e mais nenhum outro instrumento à disposição da República, pode resolver um problema que jamais deveria ter se transformado em problema, pois sua função é justamente resolver problemas — o Supremo Tribunal Federal. O STF deu um cavalo de pau nos seus deveres e, com isso, conseguiu promover a si próprio à condição de calamidade pública, como essas que são trazidas por enchentes, vendavais ou terremotos de primeira linha. Aberrações malignas da natureza, como todo mundo sabe, podem ser resolvidas pela ação do Corpo de Bombeiros e demais serviços de salvamento. Mas o STF é outro bicho. Ali a chuva não para de cair, o vento não para de soprar e a terra não para de tremer — não enquanto os indivíduos que fabricam essas desgraças continuarem em ação. Eles são os onze ministros que formam a nossa “corte suprema”, e não podem ser demitidos nunca de seus cargos, nem que matem, fritem e comam a própria mãe no plenário. Só há uma maneira da população se livrar legalmente deles: esperar que completem 75 anos de idade. Aí, em compensação, não podem ser salvos nem por seus próprios decretos. Têm de ir embora, no ato, e não podem voltar nunca mais. Glória a Deus.
Demora? Demora, sem dúvida, e muita coisa realmente ruim pode acontecer enquanto o tempo não passa, mas há duas considerações básicas a se fazer antes de abandonar a alma ao desespero a cada vez que se reúne a apavorante “Segunda Turma” do STF — o símbolo, hoje, da maioria de ministros que transformou o Supremo, possivelmente, no pior tribunal superior em funcionamento em todo o mundo civilizado e em toda a nossa história. A primeira consideração é que não se pode eliminar o STF sem um golpe de Estado, e isso não é uma opção válida dos pontos de vista político, moral ou prático. A segunda é que o calendário não para. Anda na base das 24 horas a cada dia e dos 365 dias a cada ano, é verdade, mas não há força neste mundo capaz de impedir que ele continue a andar. Levará embora para sempre, um dia, Gilmar Mendes, Antônio Toffoli, Ricardo Lewandowski. Antes deles, já em novembro do ano que vem e em julho de 2021, irão para casa Celso Mello e Marco Aurélio — será a maior contribuição que terão dado ao país desde sua entrada no serviço público, como acontecerá no caso dos colegas citados acima. E assim, um por um, todos irão embora — os bons, os ruins e os horríveis.
Faz diferença, é claro. Só os dois que irão para a rua a curto prazo já ajudam a mudar o equilíbrio aritmético entre o pouco de bom e o muitíssimo de ruim que existe hoje no tribunal. Como é praticamente impossível que sejam nomeados dois ministros piores do que eles, o resultado é uma soma no polo positivo e uma subtração no polo negativo — o que vai acabar influindo na formação da maioria nas votações em plenário e nas “turmas”. Com mais algum tempo, em maio de 2023, o Brasil se livra de Lewandowski. A menos que o presidente da época seja Lula, ou coisa parecida, o ministro a ser nomeado para seu lugar tende a ser o seu exato contrário — e o STF, enfim, estará com uma cara bem diferente da que tem hoje. O fato, em suma, é que o calendário não perdoa. O ministro Gilmar Mendes pode, por exemplo, proibir que o filho do presidente da República seja investigado criminalmente, ou que provas ilegais, obtidas através da prática de crime, sejam válidas numa corte de justiça. Mas não pode obrigar ninguém a fazer aniversário por ele. Gilmar e os seus colegas podem rasgar a Constituição todos os dias, mas não podem fugir da velhice.
O Brasil que vem aí à frente, por esse único fato, será um país melhor. Se você tem menos de 25 ou 30 anos de idade, pode ter certeza de que vai viver numa sociedade com outro conceito do que é justiça. Não estará sujeito, como acontece hoje, à ditadura de um STF que inventa leis, censura órgãos de imprensa e assina despachos em favor de seus próprios membros. Se tiver mais do que isso, ainda pode pegar um bom período longe do pesadelo de insegurança, desordem e injustiça que existe hoje. Só não há jeito, mesmo, para quem já está na sala de espera da vida, aguardando a chamada para o último voo. Para estes, paciência. (Poderiam contar, no papel, com o Senado — o único instrumento capaz de encurtar a espera, já que só ele tem o poder de decretar o impeachment de ministros do STF. Mas isso não vai acontecer nunca; o Senado brasileiro é algo geneticamente programado para fazer o mal). Para a maioria, a vitória virá com a passagem do tempo.
*Publicado originalmente no Facebook do admirável autor.
É isso mesmo que você leu. Há quem pense que você, leitor, valha menos (e bem menos) que um cachorro.
Já adianto aos apressados portadores de retóricas fofas e politicamente corretas que a opinião que ora emito não atravessa a importância que se deve dar ao animal - um bem jurídico importante e, por isso mesmo, tutelado individual e coletivamente pelo direito.
A vida animal é corretamente tutelada, e deve ser preservada. Mas será que o mesmo ocorre com a vida humana?
Pois bem.
Na semana que passou, uma manifestação estarreceu muita gente que insiste em manter a sanidade nesse país de delírios diários. Em um documento oficial submetido ao Parlamento brasileiro, uma Procuradora Federal destacada (pasmem) para atuar na área de direitos dos cidadãos, defendeu uma tese que pode ser resumida na seguinte conclusão: "E, se o uso da força legítima é monopólio do Estado, certamente, por razões lógicas, a "autodefesa" não pode ser um direito."
É isso mesmo que você leu. Um ser humano que, diferentemente de um animal, é sujeito de direitos e obrigações, não teria direito à autodefesa legítima diante de uma agressão atual ou iminente, segundo a tese.
Claro que essa assertiva desconsidera totalmente a inteligência do art. 25 do Código Penal. Mas a antijuridicidade da tese "lacradora" não se resume ao enfrentamento legal, e sim a negativa da própria natureza humana que, nos anos 40, jamais seria questionada por pessoas ditas sãs.
A autodefesa não só encerra um direito fundamental como é, de fato, um direito natural. Quero dizer com isso que o direito à autodefesa e autopreservação é inerente à própria natureza animal, da qual o ser humano não pode ser dissociado.
Somos sim animais e políticos, segundo a própria filosofia aristotélica. E negar as nuances naturais que formam um animal seria o mesmo que negar a essência da natureza humana.
Portanto, valores como liberdade, igualdade, busca da felicidade, e muitos outros caros para a política jamais deveriam ser dissociados da essência natural identificada em um ser humano, individual e coletivamente considerado.
Trocando em miúdos, e para ser mais direto ao caro leitor, posso afirmar que negar o instinto de autopreservação e o direito de autodefesa ao ser humano significa, invariavelmente, retirar de todos nós a própria natureza humana.
Para exemplificar, compare a tese em análise com a simples experiência de retirar a tigela de ração de um cachorro enquanto se alimenta. O animal reagirá, em medida suficiente, para afastar o perigo atual e iminente que o cerca, protegendo sua comida. Portanto, na hipótese, negar o instinto de autodefesa seria acreditar piamente que o cão, diante dessa ameaça, não defenderia a sua existência.
O que nos difere do animal irracional, neste aspecto? Será que diante de uma agressão atual ou iminente, não poderá um ser humano valer-se daquilo que é intrínseco a sua natureza, defendendo, por exemplo, a própria vida, a vida de um filho, de um pai, ou mesmo de outro ser humano injustamente ameaçado?
Temos, sim, a atividade intelectual como outro fator inerente a nossa natureza. E por isso mesmo não somos, como os animais, bens jurídicos. Somos diversos. Somos todos seres que, pelo exercício da razão, ostentamos a condição de sujeitos de direitos e deveres. Assim, em nosso caso, tanto o agressor quanto o agredido devem responder, automaticamente, por seus atos diante das obrigações e direitos que lhes são acessíveis pelo exercício da razão.
Não seria demais afirmar, então, que retirar do ser humano o direito de autodefesa legítima significa não só negar-lhe os instintos de autopreservação, como retirar-lhe a condição racional que permite, a cada um de nós, avaliar os atos que devem ser executados para autopreservação, e responder pelas naturais consequências.
Assim, um ser humano vítima de qualquer atentado que ponha em risco sua incolumidade seria despido de defender-se. Conceberíamos, pela absurda proposição, que até mesmo a um bezerro amarrado no ato do sacrifício seria garantido o instinto natural de debater-se em clara reação ao mal iminente.
Mas ao ser humano, não.
Que morra sem ao menos reclamar, e que não cometa a "insanidade" de tentar preservar sua própria vida.
Não me valho da condição de magistrado ou escritor para comentar esta tese. De forma alguma. Que esta reflexão seja tida como um verdadeiro ato de legítima defesa de um ser humano, em franca preservação de sua própria natureza humana.
Por certo, a tese que falha ao deixar de apresentar qualquer lógica jurídica e revela-se pródiga ao lançar elemento claramente ideológico sobre o direito, ao que parece, não extingue ainda um direito que penso ter: o direito de pensar.
*Harley Wanzeller é magistrado federal trabalhista, escritor, e membro do Movimento de Combate à Impunidade. (11.10.2019)
**Publicado originalmente no Estadão.
Quando se vai assistir a uma partida de futebol da série A do campeonato brasileiro, a grande estrela é o VAR. Uma sala equipada com monitores de televisão por todos os lados, onde árbitros da CBF averiguam a legalidade e normalidade dos lances e dos gols.
Os comentaristas estão em estado de irritação e aborrecimento, porque gritam gol e depois de alguns minutos, com o árbitro postando a mão no ouvido, o lance é anulado e a torcida do time beneficiado pelo VAR vibra como se o tento tivesse sido marcado em seu favor. Jogadas dentro da área são revistas e pênaltis marcados de faltas passadas desapercebidas pela arbitragem.
Depois da entrada em vigor da Lei 13.869/2019 em janeiro de 2020, a legalidade das decisões e sentenças dos juízes ficarão aguardando a avaliação de um VAR simbólico representado pelas partes e pelo ministério público, para saber se o magistrado decretou a prisão ou condenou para prejudicar alguém, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
A lei não pretende punir a exceção, que realmente pode acontecer. A exemplo de um juiz por ter tido o seu veículo avariado por outro em um acidente de trânsito sem vítimas, manda prender o motorista do carro causador da batida. Isso é um abuso de autoridade e deve ser punido.
No entanto, a lei aprovada não deseja punir a exceção, mas a regra. A atividade cotidiana de todo juiz criminal é analisar prisões em flagrante realizadas pela Polícia e decretar prisões requeridas. Assim, todas as decisões ficarão à mercê de uma revisão pelas partes para saber se estão enquadradas ou não na Lei 13.869/2019. A exemplo das realizadas no campeonato brasileiro pelo VAR.
Quando o Tribunal de Apelação conceder o Habeas Corpus declarando que a prisão decretada pelo juiz não se justifica, então não há mais o que discutir, o juiz cometeu abuso de autoridade. É essa circunstância que está a angustiar a magistratura criminal brasileira.
Fico a me lembrar de um colega magistrado que condenou uma quadrilha de assaltantes de banco, com inúmeros latrocínios (homicídios para roubar) praticados. Perguntado pela reportagem qual o sentimento dele naquele momento em que o bando estava preso e condenado, respondeu que estava pessoalmente satisfeito.
Se fosse agora, incidiria nas penas do art. 9°, da Lei 13.869/2019 (Lei do Abuso de Autoridade), por estar satisfeito pessoalmente com a prisão e condenação dos acusados. O magistrado cumpridor do seu dever poderia ser condenado a uma pena semelhante a quem pratica o crime de furto, apropriação indébita e receptação.
Imagino a situação das magistradas e magistrados encarregados de processar e julgar os crimes de violência contra a mulher. Justamente no momento em que mais se precisa de medidas fortes e rápidas para coibir o aumento de feminicídios. Um tipo de crime que é praticado, na maioria dos casos, sem testemunhas. É querer um juiz Super-Homem ou uma juíza Mulher-Maravilha para decretar a prisão de um feminicida correndo o risco de responder a um processo criminal.
Por essa e outras razões, há a necessidade de o Supremo Tribunal Federal se manifestar sobre o alcance da lei aprovada. Pela reação ocorrida até o momento, com inúmeras decisões determinando a soltura de presos e não concedendo prisões provisórias, existe o risco de colapsar a Justiça criminal de 1° grau, justamente a responsável pela prestação jurisdicional de primeira hora no caso de crimes. É hora de pensar qual o Judiciário se deseja para o Brasil.
* Roberto Veloso foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE
** Publicado originalmente no Diário do Poder