• Fernando Fabbrini
  • 12 Março 2020

 

Tal qual um assassino profissional, o marketing do entretenimento não perdoa: aponta para a cabeça do espectador e atira em rajadas

Quem nunca torceu pelo bandido num filme? Bons cineastas sabem transformar a plateia de inocentes comedores de pipoca em cúmplices fanáticos do sujeito que engana a Justiça, se dá bem e escapa no final. O clássico vilão não é novidade; desde Georges Méliès, os roteiristas usam e abusam dele. Porém, há algo de novo no ar.

Uma das séries recentes, o premiadíssimo “Breaking Bad”, conta a saga de um professor de química e de seu aluno que se enchem de dólares ao fabricarem metanfetamina e mergulharem no submundo das drogas. Aposto que ninguém torceu pelos agentes da DEA – Drug Enforcement Administration – no encalço dos dois. Outra série, “La Casa de Papel”, tornou-se febre mundial endeusando uma quadrilha que agia à Robin Hood – roubando dos ricos para dar aos pobres e denunciar “o sistema”. (Animados com o sucesso da “Casa”, os produtores investiram em novas temporadas – estrondoso fracasso de audiência. Quem explica?).

É fácil criar personagens criminosos e ganhar a simpatia do espectador. Basta dar ênfase aos seus traços humanos, problemas íntimos, afetos, dramas de consciência – e pronto: construímos mais um herói. Essa linha criativa está virando tendência. O cinema, os canais de streaming e a televisão brasileira adotaram a marginalidade como matéria-prima preferencial de novelas, filmes, documentários. Vivemos o momento de glória do crime.

Tal qual um assassino profissional, o marketing do entretenimento não perdoa: aponta para a cabeça do espectador e atira em rajadas. “Narcos”, “O Sucessor”, “Narcos México”, “El Chapo”, “Suburra”, “Impuros”, “Orange Is the New Black”, “A Rainha do Sul”, “Escobar” são algumas produções impregnadas de cocaína, heroína, marijuana e chefões do tráfico. As narrativas privilegiam o ponto de vista dos bandidos. A lei, a ordem, a justiça, os direitos do cidadão honesto aparecem como meras chateações que perturbam a vida dos narcotraficantes, essas pobres vítimas da sociedade.

Se é um fenômeno mundial, parece que no Brasil encontrou repercussão ainda mais ampla. Compreensível: historicamente, desde o velho malandro carioca até os políticos corruptos que esculhambaram o país, somos mestres do perigoso flerte com as safadezas. Burlar o radar da rodovia, estacionar em vaga de pessoas com deficiência, levar vantagem no descuido alheio – pequenos delitos ocultam a vocação para tretas maiores.

Nesta semana o noticiário do coronavírus quase foi eclipsado pelo abraço do dr. Drauzio a um presidiário. No centro da briga, a questão delicada: estaria o médico (do qual tenho boa imagem) apenas exercendo caridosamente sua profissão, como ele se defendeu? Ou participava do show business midiático e tendencioso no qual se transformou parte do jornalismo nacional?

Na reportagem (ou no drama novelístico) os editores omitiram o bárbaro crime que levou o protagonista Rafael Tadeu de Oliveira dos Santos à prisão – estupro e estrangulamento de uma criança de 9 anos. Mencionaram, de passagem, apenas outra condenação por furto. Surpreendente é que o crime mais grave só foi revelado depois e pelas redes sociais, enquanto a mídia tradicional se calava, talvez pelo fato de o condenado ser transexual. Atitude semelhante foi percebida quando um casal homossexual executou o menino Rhuan com horripilante selvageria, em Goiás. Indignação seletiva pega mal. No cinema, na ficção, vá lá. Entretanto, um jornalista honesto não pode contar só uma parte da vida real.

O crime, o vício, a bandidagem, os marginais e a violência estão em pauta e na moda; paciência. Difícil é aturar que cada narrador use-os como suporte de causas próprias, transformando os conceitos universais de “bem”, “mal” e “justiça” em coisas frágeis e passíveis de discussão. Aí não tem plateia que engula a trama.

*Publicado originalmente em O Tempo: https://www.otempo.com.br/opiniao/fernando-fabbrini/o-fantastico-show-do-crime-1.2309473
 

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  • Camila Acosta
  • 12 Março 2020

 

Havana, Cuba ( 11/03/2020). Usurpação de funções públicas, violação do Decreto-Lei 370, permanência ilegal em Havana, deportação para a Ilha da Juventude, acompanhamento por nove meses por "não trabalhar" e ser uma pessoa de interesse policial; o repressor Alejandro listou os "crimes" nos quais eu supostamente havia incorrido. Segundo ele, a lei estava sendo aplicada a mim.

“Você precisará ir mensalmente para se registrar no setor policial e, se nesses nove meses, continuares a te comportar como até agora, aplicaremos a você a periculosidade pré-criminal; Mas você não irá para a cadeia, porque queremos limpar as prisões; o que você precisará fazer é trabalho social sem internação, no que é mais necessário: limpar pisos ou áreas comuns”, acrescentou.

Ao ouvi-lo, pensei que ele estava certo: eles fizeram a lei em Cuba de tal maneira que aqueles que detêm o poder podem esmagar os cidadãos sempre que quiserem e com a maior impunidade.

Eu havia sido presa no mesmo dia, segunda-feira, 9 de março, quando estava cobrindo um protesto cívico pela liberdade do artista Luis Manuel Otero Alcántara, no cruzamento das ruas 23 e 12 do Vedado de Havana. Mal pode iniciar a apresentação porque os agentes das Brigadas de Segurança do Estado (SE) e de resposta rápida estavam estacionados no local, talvez já alertados para a iniciativa, e tentaram nos silenciar. Alguns se tornaram violentos, enquanto a maioria da população assistia e filmava, com certa prudência e medo, mas ao mesmo tempo consciente e admirada da bravura daqueles poucos conterrâneos. Vários até perguntaram quem era Luis Manuel Otero Alcántara.

Éramos apenas quatro pessoas, pois o resto não podia contornar as operações policiais para chegar ao compromisso: quatro pessoas armadas com pôsteres, nossas vozes pacíficas e nossos telefones: como capturar as evidências.

Pouco depois, quando nos retiramos do local, às 21 e 10, várias patrulhas policiais nos pararam. Abu Duyanah Tamayo, Omara Ruíz Urquiola e eu fomos presos. Iliana Hernández seria presa logo depois.

Uma vez na delegacia de Zapata e C, o de sempre: a busca, a masmorra e os interrogatórios. Embora seja necessário reconhecer que a polícia nos tratou com respeito e com óbvio desconforto; Eles sabiam que não éramos criminosos e que estavam negligenciando suas reais funções.

Conheci o major Alejandro por referência, pois, nos últimos meses, ele esteve na vanguarda da repressão às mulheres ativistas, principalmente em Havana. Uma vez na sala de interrogatório, ele reconheceu que. Há longo tempo queria me encontrar e que conseguiria o que os outros agentes não haviam conseguido anteriormente porque ninguém suportaria o assédio que estava disposto a aplicar.

“Não vou oferecer-te para colaborar conosco. Comigo você tem apenas duas opções: ou você se manda ou sai - ele retrucou. Subitamente, ofereceu-me um emprego no ICRT (Instituto Cubano de Rádio e Televisão); e "ah, quem mexe com Camila Acosta", nem mesmo o presidente do ICRT se atreverá a fazê-lo, disse ele. Caso contrário, "vou me tornar seu pior pesadelo".

O major Alejandro passou vários dias me localizando em Havana. Desde que fui expulsa da casa em que morava - devido às pressões do SE para os proprietários - em 20 de fevereiro, meu paradeiro era desconhecido. Nesta segunda-feira, começando pela manhã, eles até montaram uma grande operação policial para me prender. Eles queriam impedir-me de atender a um convite de Mara Tekach, encarregada de negócios dos Estados Unidos em Cuba, para comemorar o Dia Internacional da Mulher em sua residência.

Emtre Línea e 12, exatamente no ponto em que eu deveria encontrar Ángel Santiesteban, ele foi detido, mas deu-lhe tempo para me alertar para que me desviasse. Eles nem sequer o questionaram: "Até Camila não aparecer, não vamos deixar você ir." Horas depois, para surpresa do repressor, me detiveram.

Alejandro mostrou aborrecimento evidente durante seu interrogatório, embora fosse um monólogo, já que eu mal respondi ou até o atendi. Ele se alegrava com suas ameaças, com um cinismo arrepiante: "Tudo isso que vou aplicar a você a partir de agora é porque você está fazendo seu trabalho não apenas bem, mas muito bem seu trabalho" e "Estou louco para ver sobre o que você escreverá sobre isto ”.

Contraditório, ele esclareceu que eu estava cometendo o crime de "usurpação de funções públicas" porque o jornalismo independente não é reconhecido por nenhuma lei ou mesmo na Constituição. "E eu vou deportá-la para a Ilha da Juventude, porque você é ilegal em Havana", ele ameaçou constantemente. Eu tenho um endereço em Havana, moro aqui há mais de dez anos, mas isso não importava para ele: "você não mora no endereço que seu cartão de identidade diz e seu registro civil diz que você é da ilha". Claro, eu nasci lá. "Além disso, por qualquer motivo, eu vou deportar você, essa é a medida que você irá levar", disse ele, como se eu não fosse fazer jornalismo em lugar algum.

O capanga nem sequer hesitou em ameaçar minha família e que, é claro, tudo o que acontecesse seria minha culpa. Nas duas horas e meia que fiquei trancada na sala de interrogatório, senti medo, reconheço, mas, acima de tudo, senti raiva, desamparo.

Obviamente, eles farão qualquer coisa para me impedir de praticar jornalismo independente. Se uma coisa o repressor deixou claro, foi isso; eles também me temem, temem meu trabalho e os danos que jornalistas independentes estão causando à ditadura. Claro, para ele, só fazemos isso por dinheiro. Não conheço os outros, mas o faria de graça, apenas pela satisfação de me sentir realmente útil, orgulhosa da minha profissão, pelo prazer de exercer liberdade de expressão e opinião. Mas isso é algo que sua mediocridade impede de entender.

No final da noite, fui libertada, mas não antes de confiscarem meu telefone celular. Eles me deixaram em um corredor onde um oficial me disse que eu não podia estar, que eles já haviam terminado comigo e que eu poderia sair; Dito isto, me acompanhou até a saída.

Eu sabia que eles me seguiriam para saber onde eu estava hospedada, sabia que a melhor maneira de enganá-los era desaparecer de seus radares novamente. Tão rapidamente desapareci que eles me perderam de vista. Isso deve ter deixado Alexander muito desconfortável e talvez tenha merecido uma grande repreensão de seus superiores. Desde então, talvez tentando "salvar" sua posição e demonstrar sua "eficiência", ele liga para familiares e amigos, ameaçando "me explodir" e me condenar a um a três anos de prisão por "evasão". Segundo ele, fugi da delegacia. Como é possível escapar sozinho e desarmado de um quartel cheio de policiais? Deixar esse é algo que deve ser feito com uma permissão ou em companhia der um oficial.

Hoje, quarta-feira, 11 de março, irei à unidade policial para que possam ser cruéis comigo novamente, para enfrentar o "pesadelo".

Recuso-me a deixar de fazer jornalismo independente ou a deixar meu país; Mas se a comunidade internacional e o exílio cubano continuarem permitindo que a ditadura nos esmague com total impunidade, se não houver maior apoio à oposição interna cubana, em breve as vozes dissidentes dentro da ilha perecerão.

Se você tem parentes em Cuba, compartilhe com eles este link (faça o download do Psiphon), a VPN através da qual eles terão acesso a todas as informações da CubaNet. Você também pode assinar nossa Newsletter clicando aqui.

* Camila Acosta é uma jornalista independente . Atua em Havana.

** Publicado originalmente em https://www.cubanet.org/destacados/cuba-quitas-te-vas-del-pais-o-me-convierto-en-tu-peor-pesadilla/

*** Traduzido para o português por Percival Puggina.

 

COMENTÁRIO DO EDITOR DO BLOG

Todo dissidente cubano, como descrevi em A tragédia da Utopia, está exposto a esse tipo de perseguição por vezes branda, por vezes verdadeiros pesadelos incidindo sobre a pessoa e seus familiares. Há muita gente no Brasil que considera tudo isso muito comum desde que seja para autoproteção de bandos comunistas no poder. 
 

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  • Gilberto Simões Pires em Ponto Crítico
  • 11 Março 2020

ALEGAÇÃO INFUNDADA

Dias atrás, os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, sentindo-se pressionados pela megamanifestação programada para o dia 15 de março, tentaram sair pela tangente alegando que o responsável pelo atraso na análise e tramitação das REFORMAS - TRIBUTÁRIA, ADMINISTRATIVA E PEC EMERGENCIAL é o presidente da República, Jair Bolsonaro, que até agora não encaminhou as referidas PECs ao Congresso Nacional.

MEDIDAS INFRACONSTITUCIONAIS

Contando com o imenso e nojento apoio da mídia, que de forma frontal, constante e declarada se manifesta contra tudo que o governo Bolsonaro propõe para melhorar a economia e, por consequência, a vida do povo brasileiro, Maia e Alcolumbre deram a entender, com total clareza, que o Congresso não tem compromisso nem interesse em analisar as várias medidas INFRACONSTITUCIONAIS que estão mofando no Legislativo. Isto sem falar nas importantes MPs que já caducaram, de forma odiosa, prejudicando ainda mais os pagadores de impostos.

SINTOMAS

Diante deste quadro dantesco, enquanto o SINTOMA da infecciosa doença respiratória -CORONAVÍRUS- se apresenta, nos seres humanos infectados, através da FEBRE, TOSSE E FALTA DE AR, no ambiente ECONÔMICO, através da paralisação e/ou redução de muitas atividades, o SINTOMA da doença se apresenta em forma de RECESSÃO.

TEMPO

Pois, pelo que foi contabilizado até o presente momento, quem está levando a pior, de forma inquestionável, é a ECONOMIA MUNDIAL, que já garantiu que a RECESSÃO é inevitável. O que ninguém sabe, por ora, é o TEMPO que levará até a superação do grave e sério problema. Isto, por pressuposto, inclui o nosso empobrecido Brasil no rol dos países que vão experimentar esta conhecida encrenca.  

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  • Alex Pipkin, PhD
  • 11 Março 2020

 

O sistema das trocas livres e voluntárias no mercado, da liberdade de escolha, da liberdade individual e da livre mobilização e manifestação não pode parar.

Quando efetivamente livre ele não cessa de gerar, pelo processo de destruição criativa, novas ideias, conceitos, inovações e soluções melhores, mais criativas, mais baratas e mais ajustadas aos cidadãos consumidores em suas épocas e em suas comunidades.

Novas tecnologias disruptivas, fruto de tais inovações no livre mercado, estão e irão transformar em muito à vida política, econômica e social em todos os lugares e cantos.

Tais inovações, em nível de possibilidades de comunicação, assim como o surgimento da escrita e da impressão, alteraram radicalmente o tecido social, e agora trazem no seu bojo forças ainda mais poderosas.
Por isso mesmo, só se fala naquilo: digitalização, algoritmos, Revolução 4.0, mobilidade, economia digital, economia inclusiva, redes sociais, enfim, o mundo se encurtou e acelerou-se.

Globo, certos cientistas políticos e intelectuais, jornalistas, acadêmicos e políticos também enaltecem os efeitos e as consequências de tais inovações tecnológicas.

Entretanto, em seus processos, análises e falas, muitos ainda operam e vivem cotidianamente na “velha” economia analógica!

Pelo efeito de tais inovações, flui como um raio de luz, a livre expressão, as visões de mundo, as preferências individuais e de grupos, as tendências de modos de vida cambiantes e, claramente, “verdades” e mentiras.

Por óbvio, pela natural característica humana, as mentiras propagam-se em maior quantidade e com intensa velocidade.

Pôde-se falar o que se pensa, mas deve-se responsabilizar-se, indiscutivelmente, por aquilo que é dito! Liberdade de expressão não pode ser licença para injuriar e mentir grosseiramente! Não há o tão venerado “Estado de Direito”?!

Tudo, absolutamente tudo, é dito e espraia-se no mar das paixões e, similarmente, da razão.

Pela ordem espontânea, o próprio mercado, pelo seu crivo e julgamento popular e democrático, dá conta de purificar e a trazer a razão à tona.
A expressão popular legítima e livre tem jogado no lixo - mas não no da história - visões míopes, análises apaixonadas e/ou burras, óticas partidárias, e interesses individuais e corporativos.

O próprio mercado vai ajustando-se, com mais oferta e competição, exigindo que as próprias “comunicadoras” façam um julgamento muito mais refinado e exaustivo daquilo que é a “verdade”; e terá que ser assim... (atente-se aqui para o necessário papel regulador do Estado).

Foi exatamente por isso, que num gestão inesperado para muitos, a corpulenta Rede Globo, tardiamente, desculpou-se, destilando a singela e a pura verdade dos fatos do caso “Suzy”!

Esplendoroso resultado da Democracia, com d maiúsculo, da mobilização e da real capacidade e do juízo popular!

Notem bem! No mercado livre, o indivíduo é o ator protagonista no show da vida social e econômica, realizando por suas escolhas mais racionais e inteligentes, aqueles que devem ganhar e lucrar, e aqueles que devem perder, aprender e evoluir, ou deixar o respectivo negócio!

Tenho sido exaustivo em afirmar que a arma letal democrática, popular, é a participação e a mobilização social para trazer a tão esperada transformação das adoecidas instituições nacionais - muitas a tempos na UTI -, a fim de colocar definitivamente o país na trilha do desenvolvimento e do real crescimento econômico e social.

Não, os intelectuais e os especialistas, contemplando uma legião de apedeutas interesseiros, não podem tudo!

Não adianta espernear, a ordem espontânea, por vezes, e mesmo que com distintas velocidades, gera mobilizações saudáveis e produtivas muito mais do que somente espontâneas!

Fantástico! Esse é o show da vida, das liberdades individual e econômica!
 

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  • Lucas Gandolfe (2)
  • 09 Março 2020

 


O livro 1984 (3) retrata uma sociedade que chegou ao ponto de igualar termos associados à positividade, como paz, liberdade e força, a termos associados à negatividade, como guerra, escravidão e ignorância, ou seja, o livro propõe um futuro decadente, totalitarista, que fecha, sufoca e massacra o ser humano (4). 

É a representação mais clara do homem artificial que se vê desprovido de sentido e caminhando para a morte. A morte espiritual.

A mutabilidade do passado, o duplipensamento e a novilíngua são as bases do novo estado totalitário, relegando ao esquecimento a História e reconstruindo um novo mundo, ou, segundo Huxley, um admirável mundo novo. Um mundo de ausência de critério para distinguir o real do ilusório, o provável do improvável, o verossímil do inverossímil, o verdadeiro do mentiroso.

O histórico de depredações e vandalismos contra símbolos e representações cristãs é longo. No Município de Sorocaba, o totem com os dizeres “Sorocaba é do Senhor Jesus Cristo” já sofreu dezenas deles. Em 2013, por exemplo, a placa recebeu pichações com o dizer “Estado Laico”. Outro fato ocorreu no campus da UFCG, onde alunos e professores passaram a criticar um grupo de oração universitário, tendo por nome “Santa Terezinha de Jesus”, fundamentando-se na “ameaça quanto a laicidade do Estado”.

Mas o que significa Estado Laico? A novilíngua vem sendo praticada no Brasil há décadas, manipulando diuturnamente a linguagem e o pensar do brasileiro, instituindo a repetição reiterada de um falso conceito.

O Estado Laico não é obra da sangrenta e laicista Revolução Francesa (5) e sim, principalmente, do Cristianismo, através do Édito de Tolerância de Galério (311 d.C.); do Édito de Milão de Constantino (313 d.C.); da Epístola Duo Sunt do Papa Gelásio I (494 d.C.), inspirado na obra De Civitate Dei (A Cidade de Deus) de Sto. Agostinho e; da bula Sicut universitatis do Papa Inocêncio III (1198 d.C.), que criou a alegoria do “papa-Sol e do rei-Lua”. Isso sem contar a Reforma Protestante.

Ora, desde a alta idade média já existia a distinção entre poderes temporal e espiritual. Todos conheciam ambas as esferas de poder e sabiam distingui-las. No século XVI, com o Estado Moderno, surgiu apenas a necessidade de impedir a interferência do poder temporal no espiritual e vice-versa.

Podemos, assim, com tranquilidade afirmar que Estado Laico não significa Estado Ateu (o Estado Laico protege a liberdade de crença e o exercício de culto, e o Estado Ateu impõe a crença do ateísmo) (6) , como nos quer fazer crer a construção materialista-marxista, cujo fim é padronizar e controlar os indivíduos, subjugando-os a uma fluida e imprecisa coletividade.

A laicidade não significa a adoção pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou contrária à religiosidade, caso contrário o nosso Estado seria considerado ateu ou até antirreligioso. Não é a essa a exigência da Constituição Federal, esta, aliás, promulgada sob a proteção de Deus (7).

O Estado Laico Constitucional (art. 19 da CRFB) se expressa no art. 5º, VI, da CRFB, que fixa a inviolabilidade da liberdade de crença e do livre exercício de culto. Decididamente o Estado brasileiro, embora laico, não despreza a importância da religião.

O Estado Laico brasileiro é colaborador da fé, da crença, da religião, do transcendental (art. 19, I, da CF) (8). Ele reconhece que a dimensão espiritual é de extrema importância para a formação do homem e dos seus valores, devendo, através das inúmeras previsões constitucionais, colaborar com o religioso. Ou seja, a Igreja não é subserviente ao Estado, posicionando-se, isto sim, lado a lado com o Leviatã hobbesiano (9).

O professor Thiago Rafael Vieira muito bem arremata esta questão: “O Estado Laico Brasileiro, constituído como Estado Democrático de Direito (art. 1º da CRFB/88), assentado num Estado Constitucional estabelecido em nome de Deus (Preâmbulo Constitucional) e com fundamento na Dignidade da Pessoa Humana, assegura a liberdade religiosa e reconhece o fenômeno religioso, inclusive ao permitir o ensino religioso em escolas públicas, não de modo confessional, mas como ato de reconhecimento da existência do fenômeno religioso e sua transcendência, e que o homem, como detentor de alma, não prescinde do espiritual, bem como a persecução do mesmo fim do Estado e da religião, o bem comum”.

Tanto o Estado quanto a Igreja devem colaborar para o bem comum, materializando, assim, as Cartas-Encíclicas do Papa João XXIII, denominada Pacem in Terris (Paz na Terra), que busca a paz de todos os povos na base da Verdade, Justiça, Caridade e Liberdade, e Rerum Novarum, do Papa Leão XIII.

Nesse diapasão, o Estado ser considerado laico não significa rejeitar a religião e sim respeitar todas as liturgias, porém, todavia, também tem o dever de garantir a religiosidade adotada historicamente por nossa sociedade (dever de prezar pela cultura e tradição nacional).

A nação brasileira foi forjada a partir de padrões da cultura ocidental, que tem entre seus pilares concepções religiosas judaico-cristãs. Por isso a neutralidade estatal em matéria religiosa não pode se confundir com indiferença ou até contrariedade, como querem alguns.

A questão é muito mais cultural do que religiosa. O Brasil foi oficialmente católico por mais de 300 anos e atualmente possui imensa maioria ligada ao credo judaico-cristão. Nossas leis, cidades, turismo, datas festivas e feriados, simbologias, cédula real, até nossos próprios nomes, são influenciados pelo cristianismo. É, portanto, dever do Estado atuar sem perder de vista essa importância.

O povo brasileiro é, em sua origem histórica, cristão. A só menção, portanto, do nome de Nosso Senhor Jesus Cristo ou a colocação da Cruz Cristã em espaços públicos, dentre outros, é uma referência histórico-cultural, devendo ser, sim, realizada pelo Estado.

Assim, quando o Estado dedica-se para construção de símbolos e mensagens cristãs, apenas está cumprindo seu dever como representante da sociedade e colaborador do transcendente, preservando os valores ocidentais e brasileiros nos espaços públicos.

 (1)  O presente artigo tem por inspiração o curso oferecido pelo “Burke: Instituto Conservador”, denominado “Estado Laico e a Manipulação da Linguagem”, coordenado e apresentado pelo prof. Thiago Rafael Vieira. 
 (2) Advogado e Jornalista.
 (3) ORWELL, George. 1984. 23.ed. São Paulo: Nacional, 1996. 
(4) GAGLIARDI, Ana Paula Denadai. 1984: Uma metáfora Totalitária.

 (5) Como nos ensina Thiago Rafael Vieira: modelo de laicidade de combate praticado em países como a França, Bélgica e Canadá, que resulta em verdadeira afronta à liberdade religiosa e à liberdade de expressão. Esse modelo impõe aos cidadãos de um país que a expressão de fé deve se restringir à vida privada, inclusive a liberdade de anunciar aos outros sua fé e o seu direito de expressá-la, ferindo de morte a religião.
  (6) O Estado comunista da União Soviética era ateu. Nele existia a “Liga dos Ateus Militantes” que objetivava impor a fé ateísta aos russos, exterminando a religião em todas as suas formas de manifestações. Seu slogan era "a luta contra a religião é uma luta pelo socialismo”. O Estado Soviético estava comprometido com a destruição da religião e demolição de igrejas, mesquitas e sinagogas. Ridicularizou, perseguiu, encarcerou e executou líderes religiosos, inundou as escolas e meios de comunicação com ensinamentos ateus, e promovia o ateísmo como uma verdade que
deveria ser socialmente aceita. O número total de vítimas cristãs das políticas atéias foi estimado na faixa de milhões.
 (7) Disponível em: http://www.puggina.org/artigo/outrosAutores/deixem-nossa-historia-e-cultura-em-paz/16894. Acessado em: 07/03/20.
 (8)Jacques Maritain, décadas antes, já protestava contra o modelo francês: Pois a vida humana tem dois fins últimos, sendo um subordinado ao outro: um fim último em uma determinada ordem, que é o bem comum terreno ou o bonum vitae civilis, assim com um fim último absoluto, que é o bem comum transcendente e eterno.
(9)  Remeto o leitor para o artigo “A maior das perseguições e o maior dos genocídios”, publicado no Jornal O Livre de Cuiabá-MS. Nele, apresento como as crenças materialistas e da natureza vêm ganhando grande espaço através do Estado Moderno, em detrimento do Cristianismo. 



 
 

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  • Marcelo Rocha Monteiro
  • 08 Março 2020

 


O pequeno Fábio tinha apenas 9 anos de idade, mas era bem conhecido no bairro onde morava (União de Vila Nova, Zona Leste da cidade de São Paulo). Todos o adoravam. “Aqui ele era um filho para todo mundo, não só para mim. Ele via uma senhora com sacola e perguntava: quer ajuda?”, lembra seu pai, Emerson.

Numa segunda-feira do mês de maio de 2010, um vizinho da família de Fábio, de nome Rafael Tadeu de Oliveira Santos, na faixa dos vinte anos de idade, abusou sexualmente do menino, praticando sexo oral e anal com ele. Em seguida, para assegurar sua impunidade, Rafael matou Fábio, estrangulando-o, e escondeu o corpo do menino em sua própria casa. Passados dois dias, com o corpo em decomposição, o assassino decidiu abandonar o cadáver em um terreno quase em frente à residência dos pais de Fábio, a essa altura já desesperados com o desaparecimento do filho. Cinicamente, Rafael foi informar à mãe de Fábio que havia “encontrado” um cadáver ali perto.

Desmontada a farsa pela investigação da polícia, Rafael foi processado por estupro e homicídio triplamente qualificado, sendo afinal condenado a 36 anos de prisão (sentença transitada em julgado).

E que tipo de pessoa era Rafael Tadeu? Sua tia, Carlita, prestou depoimento no processo e disse que seu sobrinho “roubava, mentia (...) depois dos 12 anos começou a roubar com arma, usava maconha (...) foi acusado de estar abusando de uma criança de três anos, e os parentes da criança foram na minha casa atrás dele, querendo matar ele (...) foi passar férias na casa do irmão e tentou estuprar o sobrinho de cinco anos (...) na escola era acusado de roubar os professores, de estupro (...)”.

Na semana passada, o programa Fantástico, da Rede Globo, fez uma reportagem na qual o médico Drauzio Varela entrevistou Rafael Tadeu, que se apresenta como Suzy. O doutor Drauzio não fez qualquer pergunta sobre o estupro e a morte do pequeno Fábio - aliás, os telespectadores sequer ficaram sabendo, na ocasião, por que tipo de crime Suzy estava cumprindo pena.

O objetivo do doutor Drauzio e da Rede Globo com a matéria jornalística era mostrar “a solidão dos transexuais” nas prisões brasileiras. Quando Suzy lhe informou que há oito anos não recebe visitas nem cartas, o doutor Drauzio ficou tão emocionado que lhe deu um abraço (mostrado nas redes sociais pelo programa Fantástico, conforme imagem abaixo).

Quem também ficou emocionada foi uma professora de Educação Infantil de uma escola de São Paulo - tão emocionada que fez seus aluninhos (crianças como o pequeno Fábio, morto por Suzy) escreverem cartinhas de solidariedade ao assassino com “lindos desenhos e mensagens” (clique na segunda imagem abaixo). Sobre a barbaridade do crime ela não disse nada - ao que tudo indica, nem quis saber.

Quanto à solidão, o vazio e a tristeza que a morte do pequeno Fábio deixaram na vida do Seu Emerson (pai do menino), o doutor Drauzio nada tem a declarar - e a professora de São Paulo não vai encorajar seus pequenos alunos a escrever carta alguma para a mãe de Fábio.

Se restar alguma dignidade ao doutor Drauzio, agora que o Brasil inteiro já sabe o que ele e a Rede Globo omitiram no programa Fantástico, o mínimo que se espera é que ele procure os pais de Fábio e ofereça um abraço de solidariedade.

Assim como o mínimo que se espera da escola de São Paulo (não sei o nome) é que demita a professora que deseduca as crianças, “ensinando-as” a inverter valores.

A verdadeira guerra é cultural, é de valores.

Um amigo meu diz que quando ouve a frase acima não consegue entender direito, porque a acha “muito abstrata”.

Hoje ele entendeu. Obrigado pela ajuda (involuntária), doutor Drauzio.

*O autor é Procurador de Justiça no MP/RJ

 

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