Percival Puggina

15/08/2023

 

Percival Puggina

 

         Volta e meia me deparo com textos em que o autor abraça a tese exposta por Ayn Rand no livro “A virtude do egoísmo”. Em síntese, segundo a obra, egoísmo é bom e faz bem.

Não caia nessa! O egoísmo não se confunde com o zelo pelo interesse próprio característico das pessoas prudentes. Consultórios de psicólogos e terapeutas estão lotados de pessoas egoístas, inaptas para o amor. E de suas vítimas.

Leão XIII, na profética Rerum Novarum (1891), deixa claro, quando condena o comunismo, que a ausência do interesse próprio levaria esse sistema ao fracasso por "privar de seus estímulos o talento e a habilidade” e, como consequência, “por estancar as riquezas em sua fonte”. Em seguida, aponta o inevitável resultado: “em lugar da igualdade tão sonhada, tem-se a igualdade na indigência e na miséria”. Isso foi escrito um quarto de século antes da Revolução Russa e de seu consequente fracasso! Ou seja, o Papa anteviu o que, décadas após, se tornaria óbvio para quem tem juízo.

Por outro lado, o amor ao próximo não envolve, necessariamente, um sentimento afetivo. Sua melhor expressão está na narrativa evangélica do Bom Samaritano, que socorre um viajante assaltado, ferido e jogado à beira da estrada. Alguns passaram por ali e nada fizeram, mas o samaritano agiu efetivamente em seu favor. Eis o sentido efetivo do amor ao próximo. O samaritano sequer conhecia a vítima do assalto. Numa situação como essa, quem só cuida do seu próprio interesse e julga realizar assim a perfeição do próprio ser, segue o exemplo do levita e do sacerdote que passaram pela pessoa ferida e seguiram adiante porque o problema dela não lhes dizia respeito.

Se o egoísmo fosse uma virtude, o Estado brasileiro seria o ente mais virtuoso sobre a face da terra porque este só cuida bem de si mesmo.

Vá à praça dos Três Poderes e dê uma olhada à sua volta. Ali vive a alma do absolutismo, a mesma essência presente em cidades imperiais como Viena, Praga, Budapest e São Peterburgo, por exemplo. Contudo, a substância política que nelas se percebe como algo que um dia foi e passou, em Brasília é tempo presente. Tudo feito para mostrar a grandeza do Estado, num entorno onde o cidadão é o exemplo vivo de uma impotência cada vez mais real.

Na Praça dos Três Poderes, o egoísmo está presente na forma e na substância. Presente na arquitetura monumental, escultórica; presente nas grifes que vestem a nudez de tantas insignificâncias; presente nos corporativismos e nas barganhas; presente nas vaidades, nos ambientes de confraria e no total desprezo ao sujeito a pé, olhando em volta, no centro da praça (ou aos milhões desde o nascer caídos à beira da estrada da vida).

Nos palácios do entorno da praça, as poucas dezenas ali animadas à conduta virtuosa têm um trabalho indispensável e quase impossível. Precisam do ânimo dos 300 de Esparta ou dos também 300 de Covadonga. Alguns a quem conheço sabem o quanto aquele ambiente faz rarear a virtude do espírito de serviço, que vai aparecer de modo muito mais visível no mundo dos negócios, onde o sucesso depende de bem servir ao próximo, que atende pelos nomes de cliente ou freguês.

Vejam que é bem ao contrário do que pensa uma parte da direita sobre o egoísmo e a totalidade da esquerda sobre o Estado.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

Percival Puggina

14/08/2023

 

Percival Puggina

 

         O sistema político brasileiro é uma panela de pressão. Como não há poder legítimo para resolver impasses, vive-se uma inquietude a gerar permanente instabilidade e insegurança. Os caminhos assinalados para o processo eleitoral, que seriam a saída por via democrática para uma trajetória de normalidade, só agravam o quadro pois, de modo sistemático, beneficiam a representação e não os representados. E esse é o problema principal do Brasil hoje. Uma democracia que lembra frango congelado, sem pé nem cabeça, onde o povo é visto como um mal perigoso e dispensável.

Friedrich Hayek, em Direito Legislação e Liberdade, adverte que o poder ilimitado dos organismos estatais representativos leva a uma democracia de negociações que se afasta das concepções comuns do eleitorado. Nessa trilogia escrita há cinquenta anos, o autor austríaco mostra que a necessidade de compor maiorias rompe o cordão umbilical que liga representantes e representados (no caso ele foca os parlamentos) e cria o novo absolutismo das conveniências comuns e seu corolário: arbitrariedade, discricionariedade, corrupção, ineficiência, parasitismo, irresponsabilidade e limitação da liberdade individual.

O problema apontado é antigo, bem antigo. Contudo, eu nunca vi nas instituições esse mesmo ânimo antipovo em períodos supostamente democráticos. Respeitava-se até o “povo” das invasões a propriedades públicas e privadas, o “povo” dos arrastões e o “povo” dos showmícios e grupelhos, comprados por lote ou cabeça, a dez reais, sanduíche e tubaína.

Que o Estado sempre faz o que bem lhe convém, a gente sabe. Nestes tempos taciturnos, sem cores nem sons, há uma alarmante novidade: dezenas de milhões de brasileiros estão conscientes de que sua posição política é malvista pelo Estado e seu chicote de sanções que vão da censura à prisão ou ao exílio, passando pela tornozeleira, apreensão de bens e bloqueio de contas.

Apenas 25 países do mundo têm uma população superior a esse contingente de 58 milhões de brasileiros cuja cidadania está contida e sob permanente inspeção. Suas convicções e opiniões, individualizadas ou compartilhadas, estão submetidas a uma campanha difamatória que já conta seis anos, comandada pelo jornalismo companheiro ou camarada.

Divergir tornou-se pecado. O que se observa no jornalismo, nas manifestações de ministros do combo STF/TSE, ou do ministro da Justiça, não é diferente do que acontece em ambiente de berreiro quando, nas universidades, se apresenta algum audacioso professor ou palestrante conservador ou liberal. Quem pensa fora da caixinha da esquerda ali não é admitido. Foi o que se observou durante a campanha eleitoral no tratamento dispensado aos grandes veículos de comunicação, em escancarada campanha contra Bolsonaro e citados como referência de credibilidade; ao mesmo tempo, via-se o cancelamento de canais digitais sob a acusação de uso de empresa privada em desfavor de Lula ou a favor de Bolsonaro.

Ou será que nesta democracia sem pé nem cabeça, sem povo nem ovo, só eu vi isso?  

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

Percival Puggina

12/08/2023

Percival Puggina

Não raro, petistas escrevem para me criticar, sem perceber que sugerem temas importantes. É o que fez o leitor que, comentando meu artigo “O silêncio de uma nação”, pediu:

Professor faça um texto com uma reflexão sobre as joias e o Cid e o general pai, enfim, as muambas que se desvendam diariamente. Este assunto que o sr. passa à margem não condiz com uma pessoa que se diz intelectual e de bem.

Muito mais importante do que responder ao leitor que não "me digo intelectual", por saber que não sou mais que mero aprendiz, é explicar como uma pessoa “de bem” se conduz, em sua comunicação social, perante casos como esse em que ele gostaria de colher apressada opinião.

Apenas uma vez na vida cometi o erro que o leitor deseja que eu repita. Há trinta anos, embarquei, ingenuamente, na campanha de difamação movida pelo PT contra Alceni Guerra, ministro da Saúde no governo de Collor de Mello. A mídia companheira triturava o governo, já em decadência rumo ao impeachment. Denúncias de corrupção pipocavam envolvendo a pessoa do presidente e o caso contra Alceni (superfaturamento na compra de bicicletas para agentes de saúde) era um prato cheio para minhas ironias e sarcasmos.

A vítima daquela difamação trilhou um longo caminho até o reconhecimento de sua inocência e restauração de sua vida como prefeito de sua cidade e como parlamentar honrado e respeitado. Passadas três décadas, esse caso pesa em minha consciência, deixando uma linha divisória que nunca mais ultrapassei: não conjeturar sobre a honra alheia e não verbalizar um conceito antes de decisão competente que o estabeleça. Jamais pelo noticiário da hora!

A vida me ensinou quanto são afobados, instrumentalizados e irresponsáveis os juízos prévios na vida pública. E como são hipócritas os espalhafatosos censores da conduta alheia. São hipócritas porque especulam sobre a honra dos adversários, mas votam em ladrões, se os ladrões forem companheiros.

Esclareço. Suponhamos que ao cabo das investigações, dos trabalhos de acusação e defesa, se acumulem contra o ex-presidente provas como as que levaram às condenações do atual presidente da República. Bolsonaro nunca mais terá meu voto. Então, e só então, me sentirei autorizado a emitir um juízo moral e verbalizar minha indignada decepção. Jamais gastarei meu pobre português para escrever textos como os do noticiário de hoje, nos quais, em meio às gravíssimas suspeitas investigadas, se entremeiam adjetivos como “supostos”, “possíveis”, etc., usados por salvaguarda de uma prudência habitualmente em falta no almoxarifado dos fatos.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

Percival Puggina

09/08/2023

 

Percival Puggina

         Prestem atenção, ouçam o silêncio. O Brasil emudeceu. Durante quatro anos, o povo foi sendo alertado sobre a própria irrelevância. Erguendo bandeiras que expressavam seu amor à pátria, ele ia às ruas e às praças de onde clamava inutilmente contra excessos de uns e omissões de outros. Aos tribunais superiores, os excessos; ao Congresso Nacional, as omissões. Quem como eu subiu em tantos carros de som ao longo de dez anos sabe do que fala ao afirmar que quanto mais se avantajava o “contramajoritário” poder das altas Cortes e se expandia o baixio dos interesses parlamentares, mais as instituições mostravam seu desdém à nação.

Por fim, o silêncio, a quietude de uma democracia deserta, sem povo. Muitas vezes penso que os senhores do poder se veem como representação política num deserto onde, aqui e ali, esqueletos cívicos testemunham a ação destruidora que os vitimou.

Só que não. A nova tirania, tirania é. Quem tem olhos de ver sabe o que vê. Tornozeleiras não inibem opiniões nem a percepção de injustiças e abusos. Consciências bem formadas doem e se condoem na dor alheia. Um sismógrafo que captasse emoções perceberia o ruído nesse subterrâneo dos sentimentos. A democracia relativa, contramajoritária, bem ao gosto das cortes e dos plenários, talvez não consiga captá-lo como tampouco o percebe um jornalista que me escreveu outro dia,

Ele é militante da tirania real combatendo os fantasmas das narrativas petistas.  Ele crê no que lhe dizem em detrimento do que os olhos capturam da realidade e por isso, após ler meu artigo “8 de janeiro, a narrativa e os fatos” (aqui), escreveu-me perguntando se não me envergonhava de afirmar o que afirmei. A seu modo, perante fantasmas ensinado a combater com lança-chamas retóricos, comentou cada parágrafo questionando os limites dessa minha falta de vergonha.

Constrangimento em forma explícita, que preferi não responder porque preferi tratar do assunto aos olhos e discernimento dos meus leitores.  Caríssimos, vergonha eu teria se calasse, se me sujeitasse, se conferisse meu silencioso consentimento àquilo que vejo. Aí sim, eu teria vergonha de mim! Jogo a democracia pela regra do jogo, não pelas regras dos tiranos e seus aprendizes. Nada há na Constituição de 1988 que iniba meu direito de opinar sobre os acontecimentos nacionais, os protagonistas de nossa política e as impropriedades de nosso modelo institucional.

Quando toda divergência for silenciada só se ouvirá o coro da tirania no velório da liberdade.

Como me disse certa feita em Havana um médico com quem conversei e me falou das dificuldades que a ditadura lhe impunha: “Solo el Señor es mi  señor”.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

 

        

Percival Puggina

07/08/2023

 

Percival Puggina

     Durante o governo Bolsonaro, sempre que surgia a necessidade de conter as despesas dentro dos limites da responsabilidade fiscal, a solução vinha do corte de verbas orçamentárias.

Amigo leitor, dê uma pesquisada no Google e verá o modo como isso era tratado pelos meios de comunicação, pelos setores atingidos e pela militância estudantil (quando a tesoura passava perto dos sensores nervosos da moçada). Ali estava servido o prato cheio para o trabalho de intriga e maledicência a que esse tipo de agente político se dedica de modo implacável.

Pois eis que o governo Lula cortou verbas orçamentárias do MEC! Foram R$ 332 milhões atingindo a totalidade dos recursos para o desenvolvimento da Alfabetização, segundo levantamento da Associação Contas Abertas com dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop). A tesoura também pegou a compra de veículos para transporte escolar e bolsas de pesquisa no ensino superior. Silêncio!

Pelo mesmo motivo – ajustar as despesas às disponibilidades do Tesouro – o governo cortou R$ 262 milhões do Auxílio Gás. Você provavelmente não sabe o que significa esse auxílio no orçamento das famílias mais pobres, às quais Lula da campanha eleitoral acenou com três refeições diárias, picanha e cervejinha. Como serão preparadas essas refeições sem gás? E mesmo assim, silêncio.

Por outro lado, em tempos de corte na educação, na pesquisa, no transporte escolar, no gás de cozinha, o dinheiro para emendas parlamentares, em cifras bilionárias, tem tratamento privilegiado.

O Brasil tornou-se o país do silêncio medroso e do silêncio cúmplice. O primeiro imposto a cadeia, multa e tornozeleira, e o segundo comprado mediante favorecimentos incompatíveis com a propalada responsabilidade fiscal.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

Percival Puggina

06/08/2023

 

Percival Puggina

       Do presidente ao sindicalista, do ministro ao barnabé, são antiliberais na política e na economia. São contra a propriedade privada (dos outros) e contra a expressão pública das crenças religiosas e das ideias não autorizadas pelo partido. Em outras palavras, são antiliberais onde a liberdade faz bem, mas usam argumentos liberais onde ela faz mal: aborto, questões de gênero e temática sexual nas escolas e, para ficar numa lista curta, maconha e outras drogas.

É destas últimas que quero tratar aqui. A dependência química, todos sabem, não afeta apenas o usuário. O dependente adoece sua família inteira e atinge todo seu círculo de relações. Ao seu redor, muitos padecem males físicos e psicológicos. A droga é socialmente destrutiva e a sociedade não pode assumir atitude passiva em relação a algo com tais características.

O que de melhor se pode fazer em relação a esse mal é adotar estratégias educativas e culturais que recomponham, na sociedade, valores, tradições, espiritualidade, disciplina.  Desenvolver hábitos de estudo, trabalho, prática esportiva e a vida de família. Como se sabe, porém, essa receita que robustece a virtude contra o vício é considerada intolerável e "politicamente incorreta" pelo poder hegemônico. Resta, então, ampliar o que já se faz, ou seja, mais rigor legal e penal contra o tráfico, mais campanhas de dissuasão ao consumo, mais atenção aos dependentes e às suas famílias, mais atenção à ciência e menos a palpiteiros, fumadores e cheiradores.

A relação direta de causa e efeito entre o consumo de drogas e a criminalidade impulsiona a ideia da legalização. Seus proponentes sustentam que se o consumo e o comércio forem liberados, os produtos serão formalmente disponibilizados, inviabilizando a atividade dos traficantes. Extinto o comércio clandestino, dizem, cessariam os lucros que alimentam o crime organizado e se reduziria o nível de insegurança em que vive a população. Muitos alegam ainda, como se fossem sinceramente liberais, do tipo laissez faire, que a atual repressão agride a liberdade e o livre arbítrio. Entendem que os indivíduos deveriam consumir o que bem entendessem, pagando por isso, e que os valores correspondentes a tal consumo deveriam ser tributados. A aparente lógica dos argumentos tem muito forte poder de sedução.

No entanto, quando se pensa em levar a teoria à prática surgem questões que não podem deixar de ser consideradas. Quem vai vender a droga? As farmácias? As mesmas que exigem receita para uma pomadinha antibiótica passarão a vender heroína sem receita? Haverá receita? Haverá postos de saúde para esse fim? Os usuários terão atendimento médico público e serão cadastrados para autorizações de compra? O Brasil produzirá drogas? Haverá uma cadeia produtiva da cocaína? Uma Câmara Setorial do Pó, da Pedra e da Erva? Ou haverá importação? De quem? De algum cartel colombiano? Os consumidores que ocultarem a dependência vão buscar suprimento onde? Tais clientes não restabelecerão, fora do mercado oficial, uma demanda que vai gerar tráfico? A liberação não aumentará o número de usuários e dependentes? Os de poucos recursos arrumarão dinheiro para o vício no crime organizado ou no desorganizado? Haverá bolsa para erva, fumo e pó?

"Qual a solução, então?", perguntou-me um amigo com quem falava sobre o tema. Respondi: “Quem pensa, meu caro, que todos os problemas sociais têm solução não conhece a humanidade”.

Alguém aí acredita que, legalizado o tráfico e vendidas as drogas em farmácia ou coffeeshops, todos os aparelhos criminosos estruturados no circuito das drogas se transmudarão para o mundo dos negócios honestos? Que seus chefões se tornarão CEOs de empresas com código de ética corporativa e políticas de compliance? Que os traficantes contribuirão para a previdência social e terão carteira assinada? Os líderes das facções cantarão nos corais das igrejas?

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

Percival Puggina

03/08/2023

 

Percival Puggina

 “Somos gratos ao Washington Post, ao New York Times, à Time Magazine e a outras grandes publicações cujos diretores participaram de nossas reuniões e respeitaram suas promessas de discrição por quase quarenta anos. Seria impossível desenvolvermos nosso plano para o mundo, se tivéssemos sido expostos à luz da publicidade durante esses anos”. David Rockfeller, na reunião do Bilderberg Group em 1991.

         Ao ler essas frases me vem à lembrança o discurso de Lula no ato de celebração dos 15 anos do Foro de São Paulo quando se referiu a ele como um espaço onde podiam “conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política”. Não, conspiração não é necessariamente teoria descartável.

Os impérios são expansionistas. Todos os movidos a ambição e poder também o são. Por isso, muitos descrentes da Criação, têm um projeto pessoal para recriar a sociedade humana noutros padrões. Forma sagaz de exercer domínio! Em suas manifestações atuais, requerem e propõem novos engenhos e artes tanto para a guerra (que é a política em sua expressão hard) quanto para a política (que é a guerra em sua expressão soft) como talvez dissesse hoje Clausewitz se integrasse a geração dos millenials.

         A experiência com o coronavírus serve ao caso. Ele universalizou o medo, mudou as rotinas dos povos, sustou as atividades produtivas, derrubou a economia mundial, estabeleceu novos protocolos de conduta civilizada, desacreditou a OMS, fez crescer enormemente o poder estatal sobre os cidadãos e restabeleceu a fé naquela “segurança que só o Estado pode lhe dar”. Em proporções que antes seriam inaceitáveis, cada homem, mulher e criança contemporânea percebe sua sujeição a imposições e a restrições de liberdade, com vistas à segurança coletiva. O vírus proporcionou um treino para a submissão aos rigores da burocracia. Levantamento recente revelou a edição, nesse específico tema, no Brasil, de 9455 leis e decretos municipais e 545 normas estaduais restringindo a liberdade dos cidadãos.

***

A história mostra uma lenta agregação, expansão e ampliação das formas de poder. Entre o caos que sucedeu à queda do Império Romano (476 d.C.) e o estágio atual do chamado globalismo medeiam 16 séculos, despendidos para irmos dos burgos fortificados aos atuais organismos internacionais e transnacionais.  No século passado, grandes empresas, após um formidável acúmulo de capital, começaram a criar fundações dedicadas a uma seleção de objetivos de larga escala para uma nova humanidade. Entre esses objetivos se inclui o financiamento de ações e projetos voltados ao aborto, práticas antinatalistas, ambientalismo, laicismo, aquecimento global, feminismo, questões de gênero, diversidade e multiculturalismo. Enquanto preparam o terreno para uma futura governança mundial, grandes fundações subsidiam, em todo o Ocidente, boa parte da publicidade e do discurso dito “progressista”. Muitos acontecimentos nacionais e internacionais dos últimos anos devem ser atribuídos ao poder outorgado por essas fontes de financiamento.

Fazer tábua rasa da cultura do Ocidente é a 1ª página do breviário globalista, cujo “plano para o mundo” precisa destruir fundamentos que procedam da filosofia grega, do direito romano e da tradição religiosa judaico-cristã.

Fingir que não vê, ou supor que orquestradas ações políticas mundiais como as mencionadas anteriormente, que invadem e saturam a mídia e os espaços de opinião, sejam apenas reflexos de um democrático livre pensar diferente, constitui terrível imprudência. Pergunto: como, num estalo de dedos, multidões enchem as ruas no mundo todo portando cartazes que são meras traduções dos que por aqui se leem? Ou vice-versa? Como explicar que os antifas exsurjam entre nós como movimento “pró-democracia”, sendo que historicamente abrigaram anarquistas, socialistas e comunistas? Sendo que, tanto quanto qualquer grupo de esquerda, chama fascistas e assume como adversários todos os defensores do livre mercado e da cultura do Ocidente?

Ao fim e ao cabo, numa perspectiva das ações concretas, estamos assistindo a intolerância de um modo contemplativo. Valores que são caros ao Ocidente estão sendo minados em nome de uma diversidade que faz exatamente o oposto dela, acentuando contornos, afirmando incompatibilidades e promovendo conflitos.

O fenômeno do globalismo, que internacionaliza essas pautas enquanto um jornalismo militante as aplaude e promove, não se confunde com a globalização, ou seja, com a integração econômica, social, cultural e a articulação política entre nações. É um sistema sutil de transferência de poder, um meio pelo qual a penthouse da elite mundial furta o poder político das nações transferindo-o para organismos tecnoburocráticos que lhes sejam próximos. Teremos, então, democracia para o que não importa e tecnoburocracia para tudo mais.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

Percival Puggina

02/08/2023

 

Percival Puggina      

         Se por um instante você deixar de ver os acontecimentos do dia 8 de janeiro como são narrados, para analisá-los como registrados pelos próprios olhos, notará enorme diferença.

Segundo as instituições, durante um par de horas, a nação periclitou frente ao abismo de uma ditadura fascista. No horizonte imediato, haveria fogo e ranger de dentes porque ali, a olhos vistos, transcorria o “pan demônio”, ou seja, a reunião de todos os demônios, do terrorismo ao golpismo. Felizmente, lhe dizem, a emergência foi debelada com os golpistas presos em ação fulminante e integrada dos bastiões da democracia, do estado de direito e das liberdades públicas.

Mil e quinhentas pessoas se envolveram na tal “intentona fascista”. Era uma ensolarada tarde de domingo. Sem banda, carro de som ou megafone, saíram do acampamento junto ao QG e marcharam em direção à Praça dos Três Poderes. Os homens, pela idade média, se militares, estariam quase todos na reserva; as mulheres eram intrépidas e ameaçadoras vovós e tias do Zap. Levavam cadeiras de praia, bandeiras, faixas. Enquanto a República vivia momentos tão decisivos, cantaram hinos, tiraram selfies, perambularam pela vastidão do despovoado local. Era uma praça sem garrafinhas de água e sem pipocas. Apenas um inesperado vendedor de algodão doce veio do nada com sua colorida mercadoria para adoçar o "golpe".

Em que pese tudo que se diz sobre os riscos de uma população armada, nenhuma pistolinha sequer foi vista e, menos ainda, ouvida. Cerca de 10% dos golpistas partiram para uma arremetida final contra a desguarnecida e vazia Bastilha brasiliense. Enquanto os demais, desde fora, gritavam “Não quebra! Não quebra!”, eles atacaram as vidraças republicanas e foram adiante, golpeando móveis e bens do patrimônio nacional. Dois dos três prédios invadidos já tinham sido objeto de tais crimes em outras ocasiões.

Enfim, pouco depois, um punhado de policiais militares do Distrito Federal surgiu e colocou todos a marchar de volta para a frente do QG onde, na manhã seguinte, embarcariam na segunda ratoeira de sua malsucedida "intentona".

A imensa maioria dos que foram à Praça dos Três Poderes era movida por temor. Temiam o braço pesado de um Estado que se agigantava assustadoramente sobre a nação. Acabaram comprovando nas suas vidas as razões do temor que sentiam.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

Percival Puggina

31/07/2023

 

Percival Puggina

         Henry David Thoreau inicia seu “Tratado sobre a desobediência civil” com as seguintes palavras (*):

Aceito com entusiasmo o lema “O melhor governo é o que menos governa” e gostaria que ele fosse aplicado de forma mais rápida e sistemática. Levado às últimas consequências, ele tem o seguinte significado: “O melhor governo é o que não governa de modo algum”, quando os homens estiverem preparados, será esse o governo que terão.

Concordo de bom grado com a primeira das duas afirmações, pois creio, e muito já escrevi a respeito, que todos os governos que queiram ser realmente bons para todos os seus cidadãos devem cuidar de se fazer tão desnecessários quanto possam. Não digo o mesmo da segunda assertiva, ou seja, quanto à dispensabilidade de qualquer governança, pois a frase aponta para uma utopia que chega à de Marx pelo viés oposto. Também o alemão antevia, na plenitude do comunismo, o fim do Estado. Pois sim!

Thoreau era um tipo incomum, individualista e minimalista nos limites da autossuficiência, pensou segundo o modo de vida que escolheu ou, vice-versa, assim pensou porque assim viveu. Eram os Estados Unidos do século XIX, ainda escravocrata (a Guerra da Secessão aconteceria 12 anos depois de haver escrito essa obra) e ele recusava submissão a um estado que fazia guerras de conquistas contra seus vizinhos e convivia com a escravidão. Afirma no livro: “Nem por um minuto posso considerar meu governo uma organização política que é, também, governo do escravo”.

Passados 174 anos, quanto mais pode um homem de consciência proclamar sobre submissão a tantos e tantos governos corruptos e tiranos!

Quer vejamos o Estado como um mal ou como um bem, tenho como certo que após o adjetivo estará presente a palavra “necessário”. É o que aprendi com um inglês anterior a Thoreau, que escreveu uma obra importantíssima sobre a Revolução Francesa enquanto ela transcorria. Edmond Burke, esse o nome dele, valeu-se daqueles desastres sanguinários para mostrar a importância das instituições. Não é por acaso que todos os 193 países reconhecidos na ONU têm governos e mesmo duas unidades não reconhecidas como países – Vaticano e Palestina – também têm uma forma de governo.

Nosso problema, como brasileiros, é um Estado como o que temos. Um Estado que devendo assumir como tarefa primordial a superação da pobreza, apodera-se dos recursos de toda a população, inclusive dos mais pobres entre os pobres, para cuidar bem de si mesmo. Escândalo!  Um Estado cuja elite se outorga ganhos milionários, cujo presidente critica os dois televisores da classe média, viaja como um sheik, hospeda-se em suítes reais e dá bolsa esmola aos mais pobres com fingida expressão de compaixão.

Cegueira extrema é discursar sobre injustiça e desigualdade entre as pessoas e não olhar para o que acontece entre o Estado e a sociedade. O Estado explorador do trabalho alheio, faz propaganda da luta de classe, mas não vê a si mesmo como provedor e painel visível de injustiças sem fim.

Realmente, submeter-se a um Estado assim é burrice e contradição. Não quero revoluções nem sangue, mas não podemos prescindir da inconformidade, da resistência, do ânimo de revolta, nem perder ocasião para proclamar indignação, odiando e combatendo politicamente o mal como é da natureza da virtude.

*        Tenho em mãos o excelente livro editado pela Avis Rara, que inclui o ensaio de Étienne de la Boétie sobre “A servidão voluntária”.