Percival Puggina

19/11/2017

 

Penso que avançaremos mais no combate à criminalidade se examinarmos a hipótese de estarmos, simultaneamente, sob os raios e os trovões de uma posição filosófica e de uma atitude política que a estimulam. Elas penduram a criminalidade num varal que tem uma ponta no capitalismo e outra na exclusão social. Na lógica da análise marxista, que faz da vítima um malfeitor, o ladrão é um justiceiro, pararrevolucionário que ainda não compreendeu bem sua trincheira. Ou, quem sabe, um neoliberal da revolução, assumindo na iniciativa privada aquilo que deveria ser socializado pelo coletivo. Aliás, é mais fácil combater o capitalismo com discurso do que vender o socialismo com exemplos.

Pensando sobre isso, lembrei-me de um artigo que escrevi para Zero Hora em 2 de fevereiro de 2001. À época, Tarso Genro era prefeito de Porto Alegre e Olívio Dutra governava o Rio Grande do Sul. Sim, sim, já passamos por isso. O referido texto tratava de um assalto ocorrido poucos dias antes na capital gaúcha e que, em vista de suas peculiaridades, ganhara destaque no noticiário.

Por azares da vida, no momento da abordagem, a vítima estava sendo entrevistada por um veículo da RBS, tornando possível a gravação, a transcrição e a divulgação da conversa que se travou entre o assaltado e o assaltante. Esse diálogo, absolutamente incomum, levou o episódio ao noticiário de Zero Hora e motivou o artigo que releio enquanto escrevo. Pasme, leitor: durante a abordagem, o assaltado afirmou e sublinhou, de maneira insistente, sua condição de pessoa conhecida, de dirigente petista presente nos noticiários daquele mesmo dia, de amigo do governador e do prefeito. Foram, ao todo, seis tentativas de trazer política à conversa com o assaltante.

Quem, na condição de assaltado, cuidaria de se apresentar como pessoa importante? Fazê-lo seria algo arriscado pois poderia aguçar a ganância do criminoso. Havia um intuito e uma estratégia naquela atitude. O assaltado tinha convicção de que produziria efeito positivo sobre o bandido. Intuía que sua posição estabeleceria uma conexão entre ambos. O assaltante, porém, não foi sensível. “Não quero saber do teu trabalho, né meu? Minha caminhada é uma, a tua é outra.”

Com essa frase, a política saiu da pauta do assalto. E o assalto entrou na pauta da política. Afinal, nossa insegurança tem a ver com ele. A vítima, ali, sabia que para a esquerda marxista brasileira tudo se resume a uma luta pelo poder, daí porque a palavra "luta" só deixa a frase do discurso para virar cartaz de passeata. Sabia, também, que toda ruptura da ordem serve à causa, quer seja uma invasão de escola por meia dúzia de adolescentes, quer seja a revolta de um presídio. Aprendeu que permissividade com o roubo abala o valor do direito de propriedade. Soube que para Foucault, guru da New Left, “As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta." Ou, como li outro dia num trabalho acadêmico: "O controle social institucionalizado, realizado pelo jus puniendi, com instrumentalização dada pelo Sistema Penal, carece, hodiernamente, de fundamentação teórica e filosófica que lhe dê sustentação, legitimidade."

É fácil entender o quanto essa concepção resulta aconchegante aos criminosos, desestimula a criação de vagas prisionais e tem oferecido aos fora da lei segurança e condenações sem qualquer eficácia.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

17/11/2017

 

 Novamente é quase três da madrugada na necrópole da República. Hora de cultos satânicos, quebrantos e esconjurações. Ágeis como drones, bruxas esvoejam entre lápides e ciprestes. Taumaturgos de colarinho branco presidem cerimônias.

 Quem ainda não percebeu, em breve será arrastado para as consequências destes dias. Neles se reproduz o ciclo repetitivo e funesto muito bem definido por Dilma em 14 de março de 2013. Antecipando, então, campanha eleitoral em João Pessoa, ela afirmou que "Nós podemos fazer o diabo quando é a hora da eleição, mas quando estamos no exercício do mandato, temos que nos respeitar". O público presente talvez tenha tomado a primeira oração como exagero e a segunda como compromisso. No entanto, o diabo foi feito e o desrespeito derrubou a casa. Um ano e pouco mais tarde, já com a disputa eleitoral em marcha, ante público de seu estado natal, Lula disse a Dilma: "Eles não sabem o que nós seremos capazes de fazê, democraticamente, pra fazê com que você seja a nossa presidenta por mais quatro anos neste país". Os meses seguintes contêm minuciosa narrativa daquilo que, de fato seria feito, "democraticamente", para assegurar mais quatro anos para a presidenta. É do diabo que estamos falando.

 Se há algo que sabemos sobre as potências das trevas é que elas não mudam de caráter nem de objetivo. O discurso de Lula aponta para a volta ao seu pior estilo, aquele anterior à carta ao povo brasileiro, com ódio exacerbado, afinação bolivariana e cheiro de enxofre.

 Cenários como os que se desenham para 2018 fazem parte da nossa tradição presidencialista. As "virtudes" tomadas em maior conta no recrutamento dos presidenciáveis jamais influiriam na escolha de executivo para uma pequena empresa que almeje sucesso. Mas, se é para presidir a república, tendo voto, qualquer um serve. Causa angústia saber que, periodicamente, apostamos o presente e o futuro do país num cassino eleitoral matreiro, desonesto, onde, em acréscimo a tudo mais, sequer as urnas são confiáveis.

Em menos de um ano saberemos quem dirigirá a república no quadriênio entre 2019 e 2022. Até lá, vamos para o mundo das trevas, onde tudo é incerto. A irracionalidade do sistema de governo e o vulto dos poderes em disputa, concentrados em uma única pessoa, levarão insegurança e instabilidade ao desempenho dos agentes econômicos. Dependendo do lado para onde for a carroça, cairá a Bolsa, subirá o dólar, cessarão os investimentos. Afinado com as bruxas, o parlamento só se interessará por doces (agrados e favores) e travessuras (contas ao pagador de impostos). Tudo virará moeda nas mãos de quem tocar o sino na hora do diabo.

A revista The Economist divulga um índice de democracia pelo qual 167 países são pontuados em relação a processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis. Entre os 20 primeiros lugares, apenas os dois últimos são presidencialistas. E nós estamos no 51º lugar. Um dia a ficha cai e exorcizamos esse modelo político.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

14/11/2017

 

 Pretendia contar o número de empresas, institutos e fundações estatais existentes no Brasil, considerando União, Estados e municípios. Comecei com determinação, mas desisti. Levei um susto! Quem quiser sentir a pujança do estatismo nacional vá à página da Wikipedia que tem a lista. Estamos falando de muitas centenas, senão de milhares desses entes. O Brasil é um país socialista, que muitos, sacudindo bandeiras vermelhas, se esforçam para tirar do armário. Armário cheio de esqueletos.

 A União tem 148 empresas estatais! Trinta por cento, segundo editorial de O Globo do dia 19 de agosto de 2016, criadas durante os governos petistas. Anos de gritaria contra privatizações e discursos de que "Estão vendendo tudo!" me levaram, ingenuamente, a crer que de fato estivessem. Mas era berreiro na sala, para distrair, enquanto a cozinha produzia novas iguarias para o cardápio político. A mesma matéria de O Globo conta que entre o fatídico ano de 2003 e 2015, esses filhotes do amor petista pelo Estado pagaram R$ 5,5 bi em salários e totalizaram um prejuízo de R$ 8 bi. A mais engenhosa das novas estatais foi concebida no PAC 2. É a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), que absorveria a tecnologia do trem-bala e executaria o projeto da ligação de alta velocidade entre Rio e São Paulo. A empresa, descarrilada desde sua criação em 2008, é totalmente dependente do Tesouro.

 O formidável e assustador conjunto das "nossas" estatais é parte ponderável dos problemas do Brasil. No entanto, o Instituto Paraná Pesquisas revelou, há três meses, que 61% dos brasileiros são contra privatizações feitas pelo setor privado. Pelo jeito, preferem as "privatizações" caseiras, as notórias apropriações, por partidos, sindicatos e líderes políticos, de tudo que for estatal. Se é para ser abusado que seja pelos de sempre. Trata-se de um vício do nosso presidencialismo. Quem governa comanda a administração e chefia o Estado, estendendo as mãos sobre o que puder alcançar em suas instituições.

É nos estofados desses grandes gabinetes, que a "privatização" do Estado proporciona os melhores orgasmos do poder. Em outras palavras: a experiência política e administrativa nos evidencia que empresas estatais realmente devotadas ao interesse público são fenômeno incomum. Como regra, resultam submetidas às conveniências privadas que descrevi acima. São nichos de usufruto e poder que pouco têm a ver com o bem nacional. Dentro desses domínios nascem as maiores reações a qualquer transferência que conduza ao desabrigo do Tesouro e às aflições do livre mercado. A ninguém entusiasma a ideia de remover o acento da poltrona e alinhá-lo à reta da competitividade.

A doutrinação socialista cumpre seu papel, ensinando que estatal é sinônimo de público, de social, e imune a interesses privados. Empresas estatais seriam como santuários de desprendimento e abnegação. Sim, claro. O Mensalão não existiu e a Lava Jato, você sabe, foi criada para impedir a alma mais honesta do Brasil de retornar à presidência.

E quando um partido sai, vem o outro para fazer a mesma coisa? - perguntará um leitor estrangeiro. Nem sempre, prezado visitante. Se o serviço for bem feito, a privatização partidária de um ente estatal pode ser anterior e se perpetuar além do governo desse partido. Quem duvida olhe para o Ministério de Educação e para as universidades públicas. Ali se educa a nação para amaldiçoar a iniciativa privada, amar o Estado, abrir o armário, e fornecer, nos ambicionados concursos públicos, respostas de acordo com o que pensa a banca.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

10/11/2017

 

 No último dia 2 de novembro, durante um show em Brasília, prenderam um homem com 29 celulares roubados. Carregava os objetos até dentro da cueca. Lavrado o flagrante, foi levado à presença de um juiz para audiência de custódia. O meritíssimo impôs fiança no valor de um salário mínimo e o devolveu às ruas para aguardar julgamento. Não duvido que à noite, ao repassar mentalmente sua atividade, o juiz se tenha considerado bom, justo e magnânimo. "Afinal, eram apenas bens materiais...", talvez tenha pensado. No entanto, desconsiderou: 1º) a segurança da sociedade que lhe paga os subsídios; 2º) as futuras vítimas das ações criminosas daquele meliante; 3º) a sensação de impunidade que, no mundo do crime, se inclui entre as mais eficazes causas da perpetuação desses mesmos atos; 4º) o crescente desrespeito, entre nós, ao direito de propriedade.

 Em vista do grande número e da frequência com que se verificam, são os crimes contra o patrimônio os que mais contribuem para o que deveríamos designar como real percepção da população sobre sua insegurança. Afinal, estamos falando de milhões de eventos anuais.

Os latrocínios são os crimes que mais apavoram a população. Embora, na prática, os 2514 casos ocorridos em 2016 representem apenas 4% dos homicídios, eles são uma ameaça presente em centenas de milhares de ações. Todo crime contra o patrimônio em saída de banco, estacionamento, porta de garagem, estabelecimento comercial aberto ao público é praticado sob a ameaça do gatilho ou da lâmina da faca, exibidos ou insinuados. Eis o grande terror. E a sociedade pressente que eventos dessa natureza podem acontecer a qualquer momento porque o número de ladrões em operação no país assumiu proporções demográficas.

Como chegamos a essa situação? Por um imprudente e ostensivo desrespeito legislativo, político e judicial ao direito de propriedade. Se quisermos restabelecer o respeito à lei, a ordem pública e a segurança da população, é importante recolocá-lo no devido lugar. O direito de propriedade não é uma coisa qualquer. Somente insidiosos motivos ideológicos podem explicar o crescente descaso para com ele dentro das nossas instituições. Ao privar alguém de algo, o ladrão está tomando produto do trabalho, meio de vida, material de estudo, conhecimento adquirido e rompendo gravemente a ordem! Quando a Justiça trata como irrelevantes os crimes contra o patrimônio está, simultaneamente, servindo injustiça aos cidadãos de bem e alimentando com liberdade de ação a cadeia produtiva do crime.

Por maligna que seja a ação do meliante, ele me é mais compreensível do que o juiz. Mais difícil ainda é entender aqueles tantos que, apenas por motivos ideológicos, não sendo uma coisa nem outra, defendem a ambos: o ladrão que vive dos bens alheios e o juiz que o devolve às ruas.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

09/11/2017

 


Cuba proporciona ao estudioso uma das histórias mais dramáticas na vida do continente. No período que vai do século XVI ao XIX, às causas usuais de debilidade econômica das colônias tropicais (extrativismo, monopólio da metrópole e uso intensivo de mão de obra escrava), somava-se, como complicador da cena interna cubana, a grande proximidade com os Estados Unidos.

Parte expressiva da elite local, olhos postos na prosperidade do gigantesco vizinho, foi seduzida pelo desejo de anexação. No entanto, também em relação a esse objetivo, o domínio espanhol se constituía em obstáculo. Por isso, tanto os que queriam a independência quanto os anexionistas precisavam livrar-se do jugo ibérico.
 

A despeito da enorme desproporção de forças, a Ilha foi palco de duas longas guerras contra a Espanha. A primeira durou de 1868 a 1878. A segunda começou em 1895 e se prolongou, sem sucesso, até que, no início de 1898, a explosão do navio USS Maine, que estava ancorado no porto de Havana, alterou o cenário do conflito. Identificado o caráter intencional do ato que matou 260 marinheiros enquanto dormiam, os norte-americanos desembarcaram em Cuba e, poucos meses depois, a Espanha entregava os anéis para preservar os dedos, firmando um tratado de paz que transferiu Cuba, Porto Rico e Filipinas para os Estados Unidos.

Assim, ao entrar no século XX, quando todas as outras colônias espanholas já estavam libertadas havia décadas, Cuba trocou de bandeira. Arriou a espanhola e desfraldou a norte-americana. E mesmo quando, três anos mais tarde, conseguiu estabelecer uma gestão cubana, seria extremamente contrário à verdade dos fatos afirmar que aquele autogoverno fosse suficiente para caracterizar um estado nacional soberano. O senhorio ianque era evidente e se manteve, com intervenções diretas e indiretas e sempre com forte presença econômica e política, situação que persistiu até cessar o apoio a Fulgêncio Batista em fins de 1958.

Embora a economia prosperasse, num cenário paradisíaco e ornado por belíssimas construções coloniais (hoje em ruínas), o fato é que Cuba, até a metade do século passado não era, ainda, uma nação independente. Por isso, o mundo saudou a vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra. Raiava, enfim, a liberdade sobre Cuba!

Qual o quê! Bastaram dois anos sem suporte americano para Fidel declarar-se comunista de carteirinha e entregar o país numa bandeja à União Soviética. Nas três décadas seguintes, em troca de vultosas vantagens comerciais, Cuba se converteu na principal fornecedora de infantaria combatente para guerrilhas comunistas em locais tão dispersos quanto Panamá, República Dominica, Haiti, El Salvador, Nicarágua, Guatemala, Colômbia, Peru, Bolívia, Honduras, Somália, Angola, Congo, Moçambique e Etiópia.

Como escrevi em “Cuba, a Tragédia da Utopia”, o sangue e a vida da juventude cubana foram arrendados a URSS por um ditador que gastava hectolitros de saliva para discorrer sobre autodeterminação dos povos. E enquanto se imiscuía com intuitos revolucionários em autonomias alheias, cedia a de seu próprio país aos russos. O fato é que até o desmoronamento da URSS em 1991, a bela ilha caribenha ainda não conhecera uma real independência. E quando essa situação se impôs no início dos anos 90, ela chegou sob a forma de um amargo abandono à própria sorte. A histórica pobreza da sociedade se converteu em miséria, tendo início o período que Fidel, eufemisticamente, denominou “Período Especial” e eu chamo "Caos econômico por falta de patrocinador".

Resumindo: ainda que nestes últimos anos, o Estado cubano esteja vivendo, pela primeira vez, como senhor de seu destino, o fato é que, para o povo, permanece a submissão que antes foi à Espanha, depois aos Estados Unidos, mais tarde aos interesses econômicos norte-americanos, posteriormente a Fidel e ao Partido Comunista Cubano. E dentro desse aziago período, três longas décadas de ingerência russa.

Quando se aproxima o 59º aniversário da revolução, se justifica plenamente a dúvida que me assiste desde a sucessão de Fidel por Raúl. O povo cubano vive sob uma monarquia comunista onde a transmissão do poder se faz por consanguineidade ou como empregado muito mal pago da firma Castro & Castro Cia. Ltda.?

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

06/11/2017

 

Se você ainda não está naquela fase da vida em que a gente começa a ser chamado de tio ou de tia, talvez não saiba o que vou lhe contar: o Brasil não era assim. É muito possível que professores lhe tenham dito que o Brasil é uma zona desde que os portugueses fizeram um loteamento no litoral brasileiro. Mas isso é falso. Nossa tragédia federal, estadual, municipal, fiscal, educacional, judicial, eleitoral, familial e moral não a herdamos de Portugal.

 O que você vê e denuncia é deliberada construção da corrente política que se assenhoreou da consciência do povo brasileiro. Para alcançar esse objetivo, incutiu-lhe o que de pior se pode coletar na filosofia e no pensamento político contemporâneo. Não, não se chega ao ponto em que estamos sem que isso seja produto de deliberadas ações políticas e culturais.

 Senão, vejamos. Estímulo a toda possibilidade de conflito entre classes sociais, entre masculino e feminino, entre brancos e negros, entre homossexuais e heterossexuais, entre filhos e pais. Deliberada confusão entre autoritarismo e exercício da autoridade. Contenção da polícia e proteção ao bandido; vitimização deste e culpabilização de sua vítima. Redução da autoridade paterna, demasias do ECA, diluição do sentido de família num caleidoscópio de variantes afetivas. Laicismo e interdição à religiosidade e à moral cristã. Incentivo político e tolerância judicial a ações violentas contra a propriedade privada. Desumanização do humano e "humanização" dos animais. Justa proteção à flora e à fauna, às reservas naturais, aos santuários de procriação e desova, em berrante paradoxo com o estímulo ao aborto. Recursos públicos para a marcha das vadias, parada gay e marcha pela maconha. Hipertrofia do Estado, corporativismo e aparelhamento da máquina pública. Escola com partido, kit gay, ideologia de gênero. Desvio de recursos das atividades essenciais do Estado para abastecer os fazedores de cabeças no ambiente cultural, tendo como resultado a degradação da arte e do senso estético. Combate sistemático ao bem e ao belo.

 O consequente crescimento da criminalidade, da insegurança e das muitas formas de lesão à vida e ao patrimônio das pessoas é respondido com desencarceramento, abrandamento das penas, abandono do sistema carcerário e desarmamento da população ordeira.

 Ter posição adversa aos itens listados acima é obrigação cívica, dever moral. É uma justificada repulsa que não atinge diretamente quem quer que seja, mas atitudes e condutas que, estas sim, afetam a vida das pessoas, suas famílias e a sociedade. Portanto, são males políticos e morais e, por motivos que saltam aos olhos de todo observador, provêm da mesma banda do leque ideológico. Qualquer exceção é ponto fora da curva e como tal deve ser vista. As naturezas são diversas, mas bebem água na mesma fonte.

 No entanto, se você os denunciar, se mostrar a malícia de sua natureza e a necessidade de mudar diretrizes na vida social e política, surgem os xingamentos: Discurso de ódio! Preconceito! Censura! Fascismo! Direita raivosa! Quem perambula, ainda que eventualmente, nas redes sociais, por certo se depara com esses adjetivos sendo despejados sobre aqueles que cumprem o dever cívico de rejeitar o intolerável.

A situação e os problemas descritos decorrem da sistemática destruição dos valores que a eles se opunham quando o Brasil não era assim. Para os destruir, investiu-se contra a família como instituição fundamental da sociedade e se combateu a Igreja até a anulação de sua influência.
 

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
 

Percival Puggina

03/11/2017

 


 A maioria dos brasileiros não sabe como funciona o Enem, o tal Exame Nacional do Ensino Médio. Nem imagina como um aluno possa prestar exame no Amazonas e ser qualificado para cursar Arte Dramática no Rio Grande do Sul. Menos ainda haverá de entender a lógica dessa perambulação acadêmica em meio à miscelânea das cotas, das linhas de corte e múltiplas escolhas (como se a opção por uma graduação universitária fosse questão de nota, da cor da pele e de onde se estudou antes, e não de vocação).

Pois eu também não consigo penetrar nesse emaranhado. Mas sei, a esse respeito, algo que todos deveriam saber. O Enem é um dos mais importantes instrumentos de concentração do poder político nas mãos de quem já o detém e nele se incrustou de modo quase irreversível. É parte de um projeto de hegemonia que já conta quase quatro décadas de planejamento e execução. Tudo se faz de modo solerte e gradual, para que a sociedade não perceba estar transferindo soberania e sendo politicamente manipulada. De fato, se não somos agentes desse projeto, se não compomos quaisquer dos grupos ideológicos e de interesse que se articulam para esse fim, tornamo-nos inocentes inúteis, cidadãos descartados de uma democracia a caminho da extinção por perda de poder popular e inanição do poder local.

É possível que o leitor destas linhas considere que estou delirando. Ou que não seja bem assim. Talvez diga que mudei de assunto e que o primeiro parágrafo acima nada tem a ver com o segundo, ou seja, que Enem nada tem a ver com poder. Pois saiba que tem, sim. Peço-lhe que observe a realidade do município onde vive. Qual o poder do seu prefeito, ou de sua Câmara Municipal? O que eles, efetivamente, podem realizar pela comunidade? Da ambulância ao asfaltamento da avenida, quais os sinais de progresso que acontecem aí sem que algo caia da mão dadivosa da União? Quais são as leis locais que você considera importante conhecer? E no Estado? Tanto o Legislativo quanto o Executivo constituem poderes cada vez mais vazios, que vivem de promessas e criação de expectativas, empurrando a letargia com a barriga e empanturrando a sociedade de palavras.

Observe que todas as políticas de Estado que podem fazer algum sentido na vida das pessoas são anunciadas no plano federal (que venham a acontecer é outra conversa). Por quê? Porque é lá que estão concentrados os recursos. O poder político que comanda o país conta muito com seu elenco de prerrogativas exclusivas. Mas o poder que tudo pode, como temos testemunhado à exaustão, pode até o que não deve poder. Esse monstrengo chamado Enem não é apenas uma fonte de colossais trapalhadas. É um instrumento de poder. Impõe a homogeneização de currículos. Regula visão de mundo, de história e de sociedade. Controla posições sobre pautas políticas e violenta a liberdade de opinião dos estudantes. Age contra as diversidades regionais ideologizando as múltiplas escolhas e transmitindo a sensação de que a Educação, o exame e o ingresso no ensino de terceiro grau são dádivas de um onisciente guru brasiliense que tem o gabarito de todas as provas. Estou descrevendo a ação abusiva de um gigante das sombras: o poder dos burocratas instalados no Ministério da Educação.

As cartilhas, os livros distribuídos às escolas, os muitos programas nacionais voltados ao famigerado "politicamente correto", a imposição da ideologia de gênero, tudo flui para o Enem e dele necessita. Ele serve aos oráculos de um projeto de poder, do único que de fato mobiliza energias políticas no país, de modo permanente, há quase quatro décadas.

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

  

Percival Puggina

01/11/2017

 

No mesmo dia em que o Senado Federal, por um triz, não acabou com os aplicativos de celular para o transporte privado de passageiros, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) divulgou estudo que os qualifica como benéficos ao consumidor por aumentarem a concorrência e possibilitarem a redução de falhas que ocorriam no mercado. Por isso, acrescenta o Cade, "regulamentações muito restritivas podem impactar negativamente o setor".

 É impressionante a capacidade do poder público brasileiro de jogar contra o interesse da sociedade! Os aplicativos criaram um vasto mercado consumidor, que, em grande parte, não era usuário de taxis. Esse novo mercado abriu oportunidades de trabalho, com a autonomia própria das atividades privadas, servindo como renda ou complementação de renda para milhares de operadores do modelo. Por outro lado, revolucionaram o transporte urbano, assegurando aos usuários o prévio conhecimento do preço, a possibilidade de avaliar o atendimento recebido, a estimativa do tempo de chegada do transporte e do tempo de rodagem até o destino, o débito automático em cartão de crédito, e um padrão de cortesia que modificou para melhor o atendimento prestado pelos taxistas lá no outro nicho do mercado de transporte urbano.

Estes últimos vinham, de longa data, abusando de uma reserva tutelada pelo poder público, que acabou transformando a licença para operar em uma forma de patrimônio com elevado valor comercial, dado ser a oferta inferior à demanda. Nas horas de maior solicitação, o taxi se tornava um serviço indisponível.

No estudo preliminar que divulgou, o Cade constata algo que os liberais sempre souberam: havendo competição, as falhas se corrigem sem necessidade de regulação. Em viés oposto, quando o governo começa a regulamentar, os preços tomam o elevador para cima e a qualidade desce rapidamente para o nível do chão.

Chega a ser irritante saber que os representantes do povo brasileiro na Câmara dos Deputados aprovaram e enviaram ao Senado um projeto que, na prática, tornaria irreconhecível um serviço ao qual a população dera tão efusivas boas-vindas.

É a velha compulsão para o retrocesso, que nos empurra do "Espírito das Leis" para as assombrações legislativas, sempre pronta a criar espantalhos, a complicar o que pode ser simples, a onerar o que pode custar barato e, de quebra, taxar, tributar, multar, controlar, autorizar ou não, liberar ou não, conferindo importância à burocracia às custas da criatividade e do trabalho alheio.  A sociedade dispensa esse tipo de zelo intrometido, abelhudo, do poder público.

Com as emendas aprovadas no Senado, o projeto volta para a Câmara. Esperemos que seja a câmara mortuária do arquivo.
 

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

30/10/2017

 

 O maior problema das nossas instituições é que elas funcionam. Seria melhor para o país se não funcionassem porque, então, o colapso provocaria as necessárias mudanças. Infelizmente não é assim.

Ao funcionar, elas fazem exatamente isso que se vê. Você acha que é fácil conseguir um Congresso Nacional com o perfil do nosso? Faz ideia de o quanto é trabalhosa uma construção institucional capaz de recrutar lideranças com esse perfil?

Só um modelo muito ruim produz o que vemos no Brasil

Não é qualquer modelo que consegue fazer de um Barroso, de um Toffoli, de um Facchin, de um Lewandowski ou Rosa Weber, ministros do STF. Não, meu caro. Você precisa de décadas de non sense constitucional, de tolice legislativa e de irracionalidade política para dar dois mandatos presidenciais a alguém como Lula. E vai necessitar do efeito corrosivo desses oito anos para atribuir outros dois mandatos a uma pessoa como Dilma Rousseff.

Assim como um bom automóvel precisa de muita tecnologia embarcada, um país precisa de muita burrice e criminalidade instaladas para compor governos como os que têm regido os destinos do nosso país (resguardadas, com indulgências, as honradas exceções).

Instituições são como sementes férteis. Uma vez plantadas em solo adequado germinam e fornecem seus bens conforme sua natureza. É tão impossível obter de um modelo institucional algo diferente daquilo que está em sua genética, quanto colher maçãs plantando semente de laranja, ou morangos de uma semente de pimenteira.

Instituições são pedagogas em vários sentidos

Por outro lado, elas, as instituições, não são a origem de todo o bem, nem de todo mal na vida dos povos. Inúmeros fatores também exercem influência. Poderíamos gastar páginas discorrendo sobre eles, e um bom espaço seria dedicado ao desenvolvimento social e aos valores morais da sociedade. Ambos são de longa maturação, mas a mudança institucional seria boa porta de entrada num jogo de ganha-ganha. As instituições são pedagogas, para o bem e para o mal; influenciam positiva ou negativamente na conduta moral da sociedade e um bom modelo serve melhor ao desenvolvimento social do que um mau modelo. Este último, exatamente por seu mau, sempre pode piorar com facilidade.

Vou exemplificar. Nossas sucessivas constituições republicanas insistem em adotar o presidencialismo e, com ele, entregam a uma mesma pessoa, eleita em pleito majoritário direto, a chefia do Estado, do governo e da administração. Com isso, partidariza o Estado (que é de todos e não deveria ter partido) e a administração (que serve a todos e, igualmente, deveria ser politicamente neutra). Como se faz para piorar isso? Dê tempo de rádio e TV, mais um milhão de reais por ano, a cada partido que se forme e compareça à mesa das barganhas; autorize aos parlamentares a dispor de um determinado valor em emendas parlamentares; estabeleça inusitadas prerrogativas financeiras e defina irrestritas e irremovíveis isonomias; conceda privilégios de foro. E por aí vá.

Um modelo melhor ou um príncipe encantado?

É de nosso hábito queixar-nos de tudo e a nada mudarmos, como se a cada diagnóstico disséssemos - "Está mal, mas não mexe!". E algo mais vai, aos poucos, apodrecendo. As principais mudanças institucionais que levariam o Brasil a um outro patamar de racionalidade política seriam a adoção do sistema parlamentar de governo, separando a chefia de governo da chefia de Estado; a eleição parlamentar por voto distrital puro ou misto; mandato de dez anos e escolha pela cúpula das carreiras jurídicas para os ministros do STF; privilégio de foro apenas para as chefias dos poderes.
Mas a nação continua pensando que as instituições "não funcionam" e que seja possível, então, a um príncipe encantado eleito em 2018, fazê-las funcionar. Como se de uma pimenteira se pudesse colher morangos...

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* Percival Puggina (72), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.