Percival Puggina

17/05/2023

 

Percival Puggina

         Fiquei na dúvida sobre qual o melhor título. Por isso, vão os dois.

Sei e dou de barato que o poder seja sedutor e, nem sempre, bom conselheiro. A lógica determina, então, que lhe sejam impostos arreios e freios, como se faz com cavalos chucros. O pior erro que uma sociedade pode cometer é facilitar, pela tolerância, a vida do poder chucro. A uma força assim, voluntariosa, empenhada em impor supremacia, jamais faltarão razões ou criação de fantasmas para, por conta própria, impor arreios e freios à sociedade e a seus representantes. Sem freios nem contrapesos, tem-se o poste rebelado, se me faço entender.

Aprendi de pequeno que os poderes devem ser limitados. Acompanhei, primeiro em preto e branco e, depois, a cores e ao vivo, a história da segunda metade do século XX. Vi nascerem como criaturas de canteiro ditaduras e totalitarismos. Nossa! Há entre elas um traço de união: a imposição, que logo se converte em impostura, de um reitor de fatos, normas e limites que se aplicam a todos, exceto a si mesmo e aos seus. Não há ideologia nisso. A ideologia, quando se manifesta, funciona de modo instrumental, como meio. Raramente como causa ou fim.

Indivíduos assim (tomo Stalin por referência) impuseram medo à sociedade, submeteram o Estado, usaram o poder para proteger sua imagem, exibiram como trunfo a própria arrogância, perseguiram opositores e os submeteram a penas infamantes. Ser opositor era um ato doloso por definição. A nenhum faltou apoio de indivíduos cuja covardia, fraqueza ou ganância era inversamente proporcional à temeridade e ausência de compaixão do líder.

Nem todas as tiranias são iguais, claro, porque dependem de circunstâncias históricas, ou seja, de fatores causais e casuais. O que descrevi, porém, é recorrente, permitindo identificar a realidade pela conduta dos agentes. Apelarei ao depoimento de um stalinista convicto e reconhecido – Bertolt Brecht.

Quando estavam em curso os Processos de Moscou, nos quais eram julgados supostos inimigos de Stalin, os comunistas mundo afora discutiam os casos. Numa dessas conversas em que o teatrólogo alemão estava presente, alguém comentou que muitas daquelas pessoas seriam inocentes, ao que Brecht contestou com uma frase terrível: “Quanto mais inocentes são, mais merecem ser fuzilados”. O autor desse relato é o filósofo esloveno Slavoj Zizek num texto com o título: Brecht: a verdadeira grandeza do stalinismo. Para Brecht, na interpretação de Zizek, a inocência dos acusados era reflexo do seu fascismo.

Pense nisso.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

Percival Puggina

15/05/2023

 

Percival Puggina

         Ontem, Dia as Mães, assisti ao vídeo da audiência da Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados na última quinta-feira (aqui). Todo brasileiro deveria, no correr desta semana, tratar de assisti-lo. Isso se tornou imperioso. O vídeo tem pouco mais de três horas que serão usadas de modo importante para o bem de cada um, de sua família e do país. A vida nos colocou neste tempo e neste lugar quando e onde somos testemunhas de dias e de fatos que marcarão de modo indelével nossa existência. Não podemos virar às costas e sair da História, como se fôssemos um Coelho Relojoeiro que jogasse fora seu relógio e se recolhesse entre os sonhos de Alice sobre um país das maravilhas chamado Brasil.

O fato de ser Dia das Mães me aproximou muito do drama e da atitude missionária da principal depoente do evento, Bárbara Destefani (canal “Te atualizei”). Nem de longe dedicaria um cumprimento a qualquer de seus algozes, mas de bom grado viajaria para externar àquela jovem mãe minha profunda admiração. Talento e coragem, senso de humor e seriedade fizeram dela uma figura nacional, sujeita à dupla condição de martírio e assédio.

O silêncio das feministas é um libelo. O silêncio dos senadores sobre o descontrole do STF revira o estômago. O que fazem com Bárbara (que tomo com símbolo de tantos) é a maior evidência de que 1) estamos sob censura no Brasil; 2) a censura vem do topo do Poder Judiciário nacional; 3) tudo mais que se diga sobre o PL 2630 para lhe dar espaço na vitrina das intervenções do Estado é meramente decorativo, acessório. O assunto é censura, sim, num país onde se estabeleceu um poder que não aceita ser contradito. De contrariado, claro, nem se cogita.

Houve um tempo, e já vai longe, em que perante certos tratamentos desiguais, clamava-se contra “dois pesos e duas medidas”. Era o senso popular de justiça. Do mesmo modo, houve um tempo em que punir Chico cidadão comum, mané, pé-de-chinelo, implicava o dever de punir, por iguais motivos, o abonado e influente Francisco, em seus mocassins italianos.

Pois tudo isso ficou para trás, levado na voragem de uma justiça cujos olhos servem a uma visão particular de futuro. Por ser particular, essa visão perde as condições para ser imposta legitimamente a todos. Quais condições? A legitimação dada pelos constituintes à Constituição, pelos legisladores às leis e pelo povo aos parlamentares que elege para representá-lo. Aquele futuro que essa justiça vê (sua compreensão sobre o destino do mundo, da pessoa humana e da sociedade) é apenas um futuro dentre outros possíveis. Perante tal pluralismo, cabe aos parlamentos discernir! Não aos juízes. Não aos ministros. Fora disso, o que se tem é “golpe”, para usar o vocábulo da moda.

Na prática do tempo presente, o pau que bate em Chico só bate em Chico. E não há mais dois pesos e duas medidas. Há apenas um peso e uma singular medida. Ambos servem aos fins de determinada causa, vale dizer, à destruição de uma corrente política e de pensamento dentro da sociedade, cortando suas derradeiras possibilidades de comunicação. Esse prato da balança tem peso zero.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

14/05/2023

 

Percival Puggina

         Se não for em minha casa, enroladinhos e escondidinhos eu só engulo depois de examinar minuciosamente o conteúdo. Considero medida de prudência.

Por isso, analogamente, me espanta saber que congressistas assinam documentos que não leem e, depois, se obrigam a confessar que “discordam enfaticamente” daquilo que assinaram sem o menor senso de responsabilidade. Do mesmo modo, numa escala mais ampla, aprovam projetos em que foram incluídos dispositivos que se tornam leis federais nascidas de “jabotis” escondidinhos (que até apelido ganharam no longo convívio com o cotidiano dos parlamentos).

Perdi a conta das vezes que assisti pela tevê deputados protestando ao presidente dos trabalhos por estarem em votação atos legislativos de cujo conteúdo não lhes foram dadas condições de se inteirar. Quando isso ocorre, lembro-me de uma imposição que incide sobre todos os cidadãos: “Ninguém tem o direito de alegar desconhecimento da lei!”. Lindo isso, não é mesmo? Principalmente se aplicado à tia do Zap sentada diante do quartel pedindo socorro. Como pode o parlamentar desconhecer a lei que irá impor à sociedade?

Pois foi assim que a astúcia de alguns, entre os quais o deputado Arthur Lira, como presidente da Câmara dos Deputados, serviu ao plenário, enroladinho ou escondidinho, o pedido de urgência para votação do PL 2630, aquele da famigerada censura às redes sociais. Felizmente, pelo esclarecimento e esforço de alguns parlamentares e da sociedade, vazou o conteúdo que estava enrolado numa espécie de sigilo até a promulgação.

Nos bastidores, dinheiro da sociedade já enrola, sob a forma de emendas parlamentares liberadas à compra de apoios para aprovar o projeto como foi pensado na obscura e tenebrosa cozinha juspolítica que hoje governa o país. Descontentes pela intervenção dessa coisa imprestável chamada opinião pública, disparam ameaças de soltar os jabotis por conta própria.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

        

Percival Puggina

11/05/2023

 

Percival Puggina

         Leio na Constituição Cidadã de Ulysses Guimarães que “É livre a expressão do pensamento, vedado o anonimato”, mas sei que o texto constitucional foi capturado e está com tornozeleira eletrônica, custodiado pelo STF.

O ensino cristão – houve um tempo em que ele teve sua relevância – me levou a crer que Deus criou o ser humano para ser livre com Deus, sem Deus, e mesmo contra Deus (estou usando a imagem em sentido retórico, sem evocação a nenhuma Corte). A História me ensinou que peste alguma extinguiu mais vidas humanas do que a luta de indivíduos, povos, nações e alianças entre nações por Liberdade. Milhões foram às guerras e morreram por saber que a alternativa era servidão, ração e olhos no chão.

“Tudo no Estado, nada fora do Estado e nada contra o Estado”, exclamava o jovem Benito, o Mussolini, depois da Marcha sobre Roma. Sua emoção era sentir-se como um ícone, representando e significando a majestade estatal. Deve ser emocionante crer-se fonte de Direito e ter ao alcance da mão uma caneta com serventia para negar direitos. E “viva” Giovanni Gentile, filósofo do fascismo!

Lembro até hoje do que senti, lá pelos anos 50 quando o filme que iria assistir foi precedido, no cinema, por um documentário já antigo sobre os primeiros campos de concentração achados pelos Aliados ao entrarem na Alemanha derrotada. Covas rasas e farrapos humanos culpados de coisa alguma. E “viva” Carl Schmitt, o filósofo do nazismo!

Emoção muito forte me levou às lágrimas no dia 9 de novembro de 1989, vendo jovens alemães orientais dançando sobre o Muro de Berlim! Imagine a deles, depois de 28 anos ao longo dos quais a travessia dentro da própria cidade lhes foi interditada por um tipo de Direito que se deu o direito de confiná-los atrás de um muro.    

Em 1891, o papa Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum, profetizou, referindo-se ao comunismo:

“Mas, além da injustiça do seu sistema, veem-se bem todas as suas funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, da indigência e na miséria” (RN nº 9).

Note bem: Leão XIII escreveu “veem-se bem as funestas consequências”, embora a encíclica fosse publicada 26 anos antes de o comunismo se tornar realidade e servidão impostas ao povo russo. Cem anos mais tarde, o Kremlin teve que mobilizar-se para que Mikhail Gorbachev fosse recebido entre 17 e 19 de julho de 1991, na reunião do Grupo dos Sete (EUA, Reino Unido, Canadá, Japão, Alemanha, França e Itália) realizada em Londres e, ali, formulasse um apelo à ajuda internacional a seu país, ameaçado pelo inverno e pela fome. E "viva" Karl Marx (com quem, “vivas" a todo um inesgotável catálogo de filósofos do comunismo!).

Só posso lamentar que nossos dias nos remetam às páginas mais tristes do século passado, por decisiva influência, também, dos que, em outubro, resolveram não decidir. Trinta e sete milhões de brasileiros lavaram as mãos como se o fizessem numa torneira do cais em vez de embarcados com todos no convés do navio que se perdia.

São verdades sofridas. Prometo escrever alegremente quando, com a graça de Deus, tiver motivo para isso. Por enquanto, sou testemunha da longa noite da estupidez.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

Percival Puggina

09/05/2023

 

Percival Puggina

         Não é incomum que um “remédio” mal indicado mate o paciente. Isso também pode acontecer com as leis humanas. Lei errada pode produzir efeitos piores do que os males a combater.

Um verdadeiro mostruário disso está disponível no PL Nº 2630, mostrengo jurídico que recebeu nome glorioso: “Lei brasileira da liberdade, responsabilidade e transparência na internet”. Deveriam os tambores rufar, os sinos repicar e as clarinadas ressoar, mas o nome não colou. A esquerda já foi bem mais competente em batizar suas criaturas. O petismo 2023 não criou até um “Arcabouço fiscal”? Dividiram-se, então, os apelidos para a nova criatura, predominando “PL da censura”, na voz da oposição e “PL das Fake News”, na voz do governo.

Dizem por aí, bons e maus autores, que o parlamento é um espelho da sociedade. Ora, nós sabemos que no Brasil saído das urnas a sociedade é massa informe, contida, intimidada, receosa e submetida a prudente silêncio. Como poderia seu espelho refletir algo diferente? Sempre que se permitir a um poder, civil ou militar, o direito de mandar sem jamais ser contestado, sempre que não houver freios nem contrapesos, sempre que a Constituição for usada como lojinha de conveniência, o resto será exatamente isso: resto.

Felizmente, assim como na sociedade, há uma parcela de seu espelho que resiste com bravura e recebe eloquente louvor  dos representados. São congressistas pelos respectivos estados, mas se tornam nacionalmente conhecidos. Não obstante, nós e eles estamos reduzidos a uma condição minoritária.

Foi por estarem as coisas nesse pé, que a Câmara dos Deputados, a toque de caixa e por ampla maioria, aprovou regime de urgência para votação do empacotado e volumoso PL da Censura, recheado de jabotis. Quem pedisse tempo para lê-lo ouvia de seu líder “Não, não, não. Lê depois!”.

Por que deu chabu na hora de votar o pacote inteiro? A sociedade, percebendo que, a pretexto de impedir abusos, avultavam os meios de repressão e censura, gritou a seu espelho: “Espelho mágico, espelho meu, olha o que vais fazer!”. Verdade que as plataformas entraram na campanha, ajudaram a propagação, incomodaram os plantonistas do arbítrio, mas o pacote só retornará se aberto, esmiuçado, desossado. E o que mais incomoda os brutamontes empacotadores: fatiado, para que só as fatias aproveitáveis sejam utilizadas. Contanto que a sociedade faça sua parte e a magia do espelho funcione, claro.

Em meio a tanta notícia horrível, algo dissidente, diferente, deve ser saudado, estudado e aproveitado como experiência.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

 

 

 

 

 

 

Percival Puggina

08/05/2023

 

Percival Puggina

         Durante a cerimônia de coroação do rei Charles III pude observar em alguns relatos da imprensa brasileira comentários em tom depreciativo. Os narradores falavam como se contemplassem uma velharia reproduzida na época errada ou, melhor dito, uma erupção do passado no tempo presente. Um vistoso anacronismo.

A pergunta que imediatamente me vinha à mente diante dessas manifestações era a seguinte: que diabos, senhores, temos nós a ensinar aos britânicos sobre política e instituições de Estado? Que conselho lhes podemos dar nós, com nosso presidencialismo e nossas permanentes crises institucionais? Que temos de bom a lhes oferecer com Lula a nos constranger perante o mundo, com nosso governo das togas iradas e nosso Congresso onde se vendem maiorias no martelo, por lotes, como gado em leilão?

Perdemos a oportunidade de aprender algo quando a tradição desfilou diante de nossos olhos com o saber dos séculos. Na aparente fatuidade luxuosa daquele protocolo conta-se a preciosa história do povo suprimindo, gradualmente, o poder das mãos dos reis.

Tudo começou lá atrás, no século XI com os reis saxões e a gradual evolução da ordem política medieval para a institucionalização da representação parlamentar. No início do século XIII, quando João Sem Terra assinou a Magna Carta Libertatum, já estava na pauta o problema da governança. No final do século XIII estava consolidada a House of Lords à qual Henry II fez acrescentar uma representação das comunidades: dois cavaleiros para cada condado e dois burgueses das cidades mais importantes. Posteriormente, no início do século XIV esse parlamento se reparte, formando as duas casas que ainda hoje existem. Sua função original era deliberar sobre os tributos que todos deveriam pagar.

Em 1640, Charles I tenta impor o absolutismo monárquico vigente, então, na maior parte dos estados nacionais que se foram constituindo enquanto o feudalismo se extinguia. Isso provocou uma rebelião, comandada por Cromwell. Charles I foi preso e decapitado dando origem ao preciso ensinamento antiabsolutista: “Rei que governa perde a cabeça”, reiterado em Luiz XVI na Revolução Francesa. Avulsa a coroa, Cromwell instaurou uma ditadura republicana que morreu com ele. Em 1660, retorna a Casa dos Stuarts com Charles II.

A função legislativa só se consolida com a Revolução Gloriosa, em 1688. James II, filho de Charles II, não era protestante, mas católico e de tendência absolutista. Quando teve um filho, sinalizando para uma sucessão católica, começou a revolução que levou à deposição do rei com sua substituição por William de Orange que era casado com Mary, filha de James II, ambos protestantes). Com William e Mary nasce a Bill of Rights e o poder de legislar sai definitivamente das mãos do rei.

Já havia, então, dois poderes: o parlamento legisla e o rei com a corte e a chancelaria faz o resto. Avanços semelhantes vão ocorrendo no sentido de retirar das mãos do rei a função judiciária confiada a funcionários do Estado. Em fins do século XVIII se consolida o governo pela maioria parlamentar. Surgia, ali, a primeira monarquia constitucional, ou parlamentar.

Essa fórmula se reproduziu pelos reinos europeus ao longo do século XIX, suscitando revoluções. Entre elas, a Revolução do Porto, que acabou sendo a principal causa da nossa Independência. Aqui, após a Assembleia Constituinte do Império, que quis instituir uma monarquia parlamentar, D Pedro I outorgou uma constituição de viés absolutista que acabou por levá-lo à abdicação em 1831. Após a transição até a maioridade de D. Pedro II (1840), a governança do Brasil seguiu a tradição das monarquias constitucionais da época, num período de estabilidade política extinto com a proclamação da República.  

Infelizmente, não aprendemos da História, ou damos credibilidade a releituras empreendidas com o pior viés ideológico possível. Por isso, os atos de coroação e as monarquias constitucionais com seus vistosos protocolos, parecem velharias extemporâneas.

Os fatos, porém, ensinam diferente. O The Economist Democracy Index pesquisa, anualmente, a situação da democracia no mundo, analisando a situação em 167 países. Na lista de 2022, entre os 20 estados nacionais plenamente democráticos (full democracy), 10 são monarquias parlamentares. A saber, pela ordem: Noruega, Nova Zelândia, Suécia, Dinamarca, Holanda, Canadá, Luxemburgo, Austrália, Japão, Reino Unido. Outros seis são repúblicas parlamentares. E apenas três são repúblicas presidencialistas. O Brasil ocupa o 51º lugar, contado como democracia falha (flawed democracy).

Mesmo assim, governo e Tribunais Superiores esbanjam autoestima; o parlamento, salvo as minoritárias exceções, é como se sabe. E os três acham que a culpa de as coisas não irem bem é sua, leitor. Enquanto o rito de coroação de Charles III nos remete à longa história dos povos para domar o Estado, aqui no Brasil regredimos tanto que, agora, o Estado se empenha em domar a sociedade.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

 

 

Percival Puggina

06/05/2023


 

Percival Puggina       

         Há vinte e dois anos, embarquei num trepidante Tupolev da Cubana de Aviación e fui a Havana conhecer de perto a realidade do país mais declaradamente comunista da América. Naqueles dias, quase tudo que se ouvia a respeito era propaganda feita por dedicados camaradas tagarelas da esquerda patropi. O longo período de relações diplomáticas cortadas fizera de Cuba um destino de difícil acesso para brasileiros entre 1964 e 1986 e, mesmo depois, pouco atraente em meio às muitas alternativas caribenhas. No desconhecimento, a propaganda prosperava.

As experiências dessa viagem e minhas observações deram origem a outras visitas e às duas edições do livro A Tragédia da Utopia (2004 e 2019). Os relatos que fiz foram contundentes e refletem sentimentos que experimentei e testemunhei sendo vigiado e abertamente filmado pelo Estado após contato com dissidentes. Devo reconhecer, porém, que os fatos em nosso país, nos últimos cinco anos, me abrem novos ângulos para compreender a passividade conformista do povo cubano e os caminhos pelos quais andamos aqui no Brasil.

Nunca pensei que isso fosse acontecer! Ao contrário, sempre que embarquei num avião em Cuba para retornar ao Brasil, eu o fiz com alívio e comiseração por aquele povo. Era motivo de alegria voltar à minha terra, onde havia apreço à liberdade dos cidadãos.

Desgraçadamente, observando a realidade nacional, percebo hoje tanta semelhança com aquilo que vi e vivi em Cuba! Aos que temos apreço pela liberdade não nos falta qualquer daquelas sensações que tinha como tipicamente cubanas: medo do Estado e autocensura, descrédito e repulsa às instituições, insegurança em relação aos próprios direitos e garantias, ausência de alternativas. Aqui no Brasil, o Estado deixou de servir a sociedade para estabelecer sobre ela um senhorio que intoxicou a democracia. Bem ou mal tínhamos algo parecido com isso, mas ela foi destruída por hábitos que a corromperam moralmente.

Como em Cuba, nenhum crime real recebe tratamento tão brutal quanto os subjetivos “crimes” políticos. Muito mais do que em Cuba, aqui “o amor venceu” e a vingança está no ar. O parlamento cubano, como se sabe, só tem um partido, o do governo. Já em nosso Congresso há muitos partidos, mas, para desgraça da sociedade, está encaixado num quadrilátero. De um lado, opera o balcão onde o governo faz bilionárias ofertas públicas para obter votos; de outro, as exclusivas e legítimas competências legislativas do parlamento  são ameaçadas pelo STF e pelo governo; de outro, ainda, é marionete dos presidentes das duas casas, que usam e abusam de suas atribuições regimentais para prestígio próprio junto ao governo e ao STF; de outro, por fim, na comunicação com a sociedade, o Congresso convive com uma imprensa que, mediante silêncios e palavras, por vassalagem ou ideologia, serve aos outros dois poderes.  

Nunca imaginei que o jornalismo brasileiro, com seus poderosos veículos, fosse ficar, em sua essência, tão parecido com o Granma, o miserável pasquim do governo cubano! Ele e seu filho único, o folheto Juventud Rebelde (que Deus os perdoe pelo cinismo), cumprem a tarefa de dizer à sociedade o que Comitê Central do Partido Comunista quer que ela saiba e pense. Aqui temos muitos veículos de grande porte, mas é como se tivéssemos apenas um. Por isso, as redes sociais são tão importantes e há tal afã em silenciá-las.

Eis, pois, a essência permanente dos totalitarismos: estado impondo medo, punindo com intenção política e transpirando vingança; parlamento corrompido ou assustado (os bons e valentes em franca minoria); comunicação social controlada, comprada ou censurada. Nos totalitarismos, é desnecessário dizer, mas aí vai: sempre há um poder que nunca perde para que a sociedade jamais se imponha.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

Percival Puggina

04/05/2023

 

Percival Puggina

       Conheço bem a atividade parlamentar e poderia fazer um catálogo de manobras regimentais. Não obstante, nunca tinha visto pedido de urgência para um projeto de lei ser sucedido, sete dias depois, pela retirada de pauta por solicitação do autor.

Essa eu não conhecia. Gostem ou não os artífices da jogada, o fato é que se puseram má situação sob o ponto de vista ético. A urgência se revelou pressa de vendedor para enganar cliente. Quando algo assim ocorre no comércio privado, o assunto acaba em briga ou vai bater na porta dos órgãos de defesa do consumidor, ou do Ministério Público. Por isso, o constrangimento ficou estampado no rosto do presidente Arthur Lira, que se viu contribuindo para uma arapuca e sendo preso por ela junto com a base do governo.

A partir do momento em que a urgência foi aprovada, as pessoas trataram de ler a trapizonga que estava por virar lei. E o que se leu, deu no que se viu. Nem acenando com R$ 10 bilhões em emendas parlamentares aquilo iria passar! O mercado não se sensibiliza mais com essas cifras. Elas sobem por consequência da inflação e da taxa de juros, ou seja, por culpa do Bolsonaro e do Roberto Campos Neto. Você entende, não é mesmo?

Se é verdade que a Casa foi acordada pela opinião pública, pelo trabalho das redes sociais e dos bons deputados, também é verdade que a reação popular elevou a ira dos senhores da caneta e da força contra as redes sociais –caóticas e imprescindíveis à manifestação da opinião pública. São caóticas? Sim, são. Mas tenta viver num país sem elas, ou onde são tão controladas que nem para namorar servem.

Aborreceram-se os poderosos e os empoderados. Dois ministros do STF clamaram pela necessidade de regulamentar as redes sociais. Roberto Barroso disse que isso era indispensável; Alexandre de Moraes afirmou que ou sai pelo legislativo ou sai pelo judiciário. Em outras palavras, ou vai por bem, ou vai por mal. Por incrível que pareça, o argumento funciona. Aliás, foi o mais potente argumento lançado ao plenário da Câmara dos Deputados porque ali todos sabem para que lado corta o fio da espada de Themis.

Ao mesmo tempo, cá no arraial do povão, todos sabemos: sempre que o poder de legislar, de impor normas, foge das mãos do parlamento, aumenta o poder do Estado sobre a sociedade. E o poder de legislar, de impor normas, hoje é repartido por um sem número de agências oficiais, conselhos, órgãos de contas, Banco Central, etc. A seu modo, todos “legislam” e o STF já se apresenta como alternativa ao Congresso Nacional. Não criou até tipo penal por analogia?  Com consentimento de quem, mesmo?

Fazer lei, usar a espada e controlar a balança? Não vai dar certo. Se o Congresso não cuidar de si mesmo, se abdicar de seu poder, deputados e senadores se descobrirão, um dia, ocupados apenas com sessões solenes, laudatórios, votos de pesar e, claro, emendas parlamentares como brindes à negligência. Deputados! Não deixem esse assunto cair nas mãos do STF nem do governo. Liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição! Eu a quero até para as plataformas que restringem a minha.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

Percival Puggina

03/05/2023

 

Percival Puggina

         Muitas pessoas amam o Estado como uma forma de amor próprio. Encarnam o objeto de seu amor e, amando o Estado, amam a si mesmos. Os demais possuídos por essa volúpia pensam que o Estado lhes pertence e o amam como a um bem próprio.  Os dois grupos, por suas paixões, ferem o funcionamento das instituições.

A tragédia central dessa relação não é, de modo algum, o patrimonialismo nem a corrupção, nem a inanição fora do agasalho do Estado. A tragédia central é o controle da manifestação das opiniões, notadamente das opiniões políticas. Esse é sonho de consumo de quem, funcionalmente, se confunde e se funde com o Estado. Controlar o que os adversários podem dizer até a extinção total de seu sentido é o mecanismo preferido dos totalitarismos para se eternizarem no poder. Não é à toa que ditadura – usura do poder – rima com censura.

As ideias acima são pensamentos da noite de ontem (02/05) enquanto via defensores e opositores se digladiarem em prolongado contraditório. Os que a defendiam, não por acaso alinhados com a esquerda, viviam algo que para eles é o inferno da comunicação: não terem palavra ou chavão que lhes permitam controlar o discurso. Afinal, censura é censura e chamar uma lei de censura de “lei da liberdade, transparência e responsabilidade” dá um nó na língua e outro no cérebro. Sua rota de fuga era defender o combate à criminalidade: “Tem gente morrendo por falta dessa lei!”, diziam a todo instante, enquanto as máscaras caíam e eram pisoteadas no tapete do plenário.

Combate ao crime? Por parte de quem? Da turma do desencarceramento, do prender não resolve, do helicóptero devolvido ao André do Rap, da impunibilidade do “di menor”, do desarmamento, da liberação das drogas, do “polícia não sobe morro”, dos processos anulados por erro de CEP? Desde quando o combate ao crime virou prioridade de Estado num governo de esquerda? Quando foi que o topo do poder judiciário pisou no acelerador do combate à criminalidade objetiva com a energia e o dinamismo equivalentes aos usados para pôr tornezeleiras nas tias do zap e aos subjetivos “crimes” de fake news e discursos de ódio? Como podem punir o Google por defender editorialmente seus interesses “afetando a independência do Parlamento” e atravessar a rua e ir ao Congresso para ... fazer o quê, mesmo? E não perceberam a mesma conduta, pelo lado do governo, afetar a independência do Parlamento quando compra votos com emendas para tentar aprovar a Lei da Censura?

O que a sociedade tem visto, com louvores de muitos, sim, é a censura objetiva. Primeiro, já de longa data, como prática de direito uti possidetis esquerdista nos relevantes espaços da Educação e da Cultura, portas cerradas a toda divergência conservadora ou liberal, imediatamente rotulada de fascista e de extrema-direita. Depois, na diversidade de modos e casos testemunhados durante a recente campanha eleitoral.

Ontem, quiseram meus sentidos discernir um grito de independência ecoar no plenário da Câmara dos Deputados. Desconheço sua extensão, mas percebi no bulício do plenário um coro de fundo a entoar “Não passarão!”, palavras nem sempre decisivas, mas marcantes em momentos significativos da história do último século.

Espero que também as plataformas aprendam algo com a censura que quer agir contra elas. Algumas, com claro viés progressista, censuram com habitualidade seus usuários conservadores reduzindo-lhes a propagação ou jogando-os para detrás das cortinas do shadowban.

O PL 2630/2020 é PL da Censura, sim. Leis contra o crime são leis penais, de tipificação precisa, sem subjetividade e sem “veja bem, doutor”. Sua eficácia depende menos do rigor e muito mais da efetiva relação crime/aplicação da pena. O resto é censura, eterna volúpia dos amantes do Estado.  

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.