Percival Puggina
17/06/2019Não passa um dia sem que editoriais, artigos e comentários em rádio e TV, se disponham a lecionar o público sobre o caráter negocial da democracia e sobre a impropriedade das mobilizações populares. Neste domingo (16/06), o Estadão volta ao assunto: “O alarido não é bom conselheiro. Decisões de Estado tomadas ao sabor da gritaria das redes sociais, como se tem tornado perigosamente comum, carecem dos elementos básicos de uma política madura”. E por aí vai o texto lastimando a circulação de informações por esses canais, o passeio das versões e das versões de versões, tudo em tempo real, impossibilitando a necessária reflexão.
Se o leitor destas linhas é, também, leitor de alguns dos mais destacados meios de comunicação do país, deve ter visto muito disso por aí. São afirmações que refletem saudosismo dos velhos tempos em que uns poucos iluminados opinavam e influenciavam a opinião pública. Esse tempo, felizmente, passou.
O ganho proporcionado pelo surgimento das redes sociais é imenso! A hegemonia esquerdista fora, até então, produto acabado, finalizado e desastrado desse monopólio. As redes sociais, apesar de sua natureza babélica e caótica, mudaram o país, desfizeram mitos, denunciaram mentiras e seus autores, protegeram a Lava Jato, impulsionaram o impeachment e trouxeram ao debate ideias relegadas às catacumbas. Libertaram os ideários conservador e liberal das desqualificações que os mantinham no anonimato das prateleiras inacessíveis.
Numa sociedade conduzida durante décadas, como manada, por políticos, economistas, professores, sindicalistas, autores, artistas e atores, de esquerda, descolados, moderninhos e revolucionários, de onde vinha “a voz do povo”? Vinha das massas de manobra. Portava bandeiras vermelhas e era mobilizada a favores de Estado, ônibus de sindicato e sanduíches de mortadela. Durante esses longos anos, dezenas de milhões de brasileiros viveram uma cidadania aleijada, hipossuficiente, sem direito a vaga no parking das opiniões, apartados que eram pela pretensa “superioridade moral” da esquerda. Deu no que se viu e nunca foi diferente.
Seria essa a “política madura”? Se o alarido não é bom conselheiro, presume-se que quem pensa diferente deva se sujeitar a um silêncio obsequioso. Espera-se que a nação creia que tudo andará bem se todos fecharem os olhos, deixarem as instituições “cumprirem seu papel” e a formação das opiniões retornar às antigas vozes?
Não! Impressiona que tantos profissionais da comunicação não percebam o imenso desalento dos brasileiros em relação às instituições do país! É por causa delas que tantos vão às ruas. Cobrar dos cidadãos que entrem em recesso para que a paz volte a reinar é propor um contrato entre ovelhas e lobos. É voltar à cidadania quadrienal, exercida apenas no dia da eleição. E é restaurar o ancien régime da corrupção. Foram as redes sociais e as mobilizações pacíficas dos cidadãos que influenciaram de modo decisivo todas as transformações positivas pelas quais o país passou desde 2014.
Querem ajudar realmente o Brasil? Querem tornar desnecessárias as mobilizações sociais? Ótimo! Ajudem a mudar as instituições. Exerçam nesse sentido o poder que ainda têm. As instituições que temos estimulam condutas irresponsáveis, exigem sociedade em estado de alerta porque fabricam crises com assiduidade e desenvoltura que, mesmo aos 74 anos, não cessam de me estarrecer.
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
15/06/2019
O Brasil não parou. A presidente do PT sonhava com cidades fantasmas e praças tomadas por candentes manifestações “contra tudo isso que está aí”. E “Lula livre!”, claro. Que modo melhor de exibir força, do que parando o país? Para mostrar musculatura, uma greve geral é mais eficiente do que camiseta cavada.
Quando uma paralização é anunciada, o trabalhador que insiste em ir trabalhar é acusado de furar a greve. Pois a greve do PT e seus satélites foi um fracasso que inverteu a situação. O que se viu foram grevistas furando um dia normal de trabalho. Dado da realidade: o Brasil não parou.
Foi uma lição de maturidade proporcionada aos imaturos, que não apenas desprezam as lições do passado e nada aprendem com o que acontece diante de seus olhos no momento presente, como ainda almejam uma volta ao passado. Querem cometer todos os erros uma vez mais.
É a política, dirão alguns. A vida é assim, há governo e há oposição, dirão outros. Sim, é verdade. Mas a ideia da greve geral, desde que a esquerda se organizou no país, acrescenta um ingrediente abusivo e totalitário com o intuito de impedir o acesso das pessoas aos locais de trabalho. Isso se obtém com a instrumentalização, o aparelhamento dos sindicatos que respondem pela mobilidade no meio urbano. Mobilidade de pessoas, mercadorias e dinheiro.
O que se viu no dia 14 foi que nem isso deu certo. A greve obteve uma adesão pífia e onde algum reflexo foi sentido, ele esteve longe de expressar adesão política. Foi mero produto do constrangimento. Deveria ser desnecessário dizer, mas, em todo caso, vá lá: quem não conseguiu chegar a seu posto de trabalho porque tal ou qual sindicato impediu a saída dos ônibus ou dos trens, ou porque alguns brutamontes se postaram diante da porta da agência ou da repartição, estava em oposição à greve geral. Provavelmente foi chamado fascista e seu olhar de reprovação deve ter sido interpretado como discurso de ódio.
Num país que precisa trabalhar para, com esse trabalho, gerar poupança necessária à abertura de novos postos de trabalho, parar o Brasil é irresponsabilidade em grau máximo. Por incrível que pareça, há forças políticas que ainda acreditam em sua capacidade de vender ilusões a um mercado onde perderam o crédito. E para isso se valem de grupos sociais com muito amor à remuneração e aos direitos e pouco amor ao trabalho e aos deveres.
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
14/06/2019A rigor, hoje, uma sirene deveria estar ressoando em todo o território nacional, advertindo que o STF avançou a linha amarela e invadiu competência do Poder Legislativo sob débil alegação – “Já que o Congresso não decide...”. Ante a “omissão” do Legislativo, o STF ultrapassou a linha amarela e criou um tipo penal aplicável a condutas homofóbicas por analogia ao racismo.
A sirene deveria estar soando porque essa, digamos assim, invasão do espaço aéreo do outro poder, na minha convicção, é sinal claro de mentalidades totalitárias, que em nome de suas convicções pessoais, desconhecem limites à própria ação e firmam decisões em palanque de banhado.
O fato de haver votos divergentes entre os ministros reforça a legitimidade dos entendimentos discordantes. Os três ministros que se posicionaram contra a decisão majoritária alegaram exatamente a invasão de competência privativa do Parlamento nacional. Só a ele cabe criar tipos penais. Não há na convicção dos ministros Marco Aurélio, Toffoli e Lewandowski qualquer resquício de preconceito ou homofobia. Apenas respeito às fronteiras entre os poderes de Estado.
Ao alegar “omissão” do Legislativo, a maioria do STF subscreveu tese perigosíssima. Segundo ela, se o Congresso não vota determinado projeto por não ter maioria para aprovação, seu autor, se a tese for do gosto de alguns senhores ministros, pode atravessar a rua e buscar apoio de meia dúzia deles. Não era esse o sentimento que transbordava de cada palavra do ministro Celso de Mello, ao ler as 155 páginas de seu voto em fevereiro deste ano? Não retirou ele do bolso da toga a acusação de que o Congresso estava “em mora” com um dever constitucional? Não entendia ele, então, que a Constituição impunha ao Parlamento o dever de deliberar e não ficava explícito, ali, o único conteúdo aceitável dessa “deliberação”? Nesse caso, como deve o Legislativo acolher a indicação que o STF lhe faz de que legisle a respeito? Faz um convênio e encomenda uma minuta de projeto ao outro lado da rua?
Nunca é demais lembrar: raramente, muito raramente, as casas do Congresso rejeitam projetos de parlamentares, pois estes só submetem suas proposições ao plenário quando têm certeza de contar com apoio suficiente. Portanto, o que a maioria do STF entendeu como “omissão” ou “mora” é falta de consenso ou de suficiente apoio. E também isso é deliberação. O projeto agora em discussão na Câmara dos Deputados, por exemplo, é aquele que limita o antagonismo à introdução da ideologia de gênero nos currículos escolares.
Por isso, o projeto patina. Uma coisa é defender a dignidade da pessoa humana e seu direito de definir e não ser discriminada em vista de sua identidade sexual. Outra é dar um salto com vara sobre o conhecimento científico para afirmar, lá do outro lado, já no terreno da mera ideologia, que essa identidade é uma construção social. E colocar isso na cabeça das crianças.
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
11/06/2019
É paradoxal, para dizer o mínimo. As pessoas que mais apaixonadamente defendem a “universidade pública, de qualidade, para todos”, são as que, de modo mais descarado, dela se apropriam para fazê-la coisa sua e colocá-la a seu serviço. É o que chamo privatização político-ideológica da universidade pública.
A dissimulação chega a ser grotesca, mas, para quem quer ser enganado, meia mentira basta. Se o sujeito acredita no discurso, danem-se os fatos. Usam do ambiente acadêmico. Na verdade é mais do que isso. Usam e abusam, fazem dele uma espécie de casa da sogra de genro malcriado, que não conhece limites a essa apropriação.
Não vou chover no molhado do verdadeiro caudal de vídeos, denúncias, reportagens, testemunhos, referentes a abusos de toda ordem e, perante os quais, quem erguer a voz recebe o adesivo de fascista. No Brasil, hoje, ser chamado de fascista é a melhor evidência de não o ser. Mas não estou tratando aqui de curiosidades da vida estudantil nem de meros arroubos juvenis. Estou falando de organizações partidárias e correntes revolucionárias que se apoderaram do espaço acadêmico causando imenso dano à sociedade brasileira.
A miríade de órgãos que aí atuam, ao não fazer ou fazer mal aquilo para o que foram concebidos e para o que recebem recursos públicos, comprometem o desenvolvimento do país. Ademais, o próprio desenvolvimento mental dos estudantes é afetado pelo hábito de submeter a busca da verdade aos credos do “coletivo”. Enfatizo esse aspecto porque ele se faz cada vez mais difícil de esconder.
A Universidade deveria abrir as mentes, provocar o saber, estimular os estudantes a estudar. E a estudar muito, aprender com honestidade intelectual e abertura à divergência, cultivando o conhecimento e o diálogo na exaustiva busca da verdade. Palavras de ordem, rotulagem e xingamento talvez caiam bem em reunião de sindicato.
A pergunta que me faço é se os abusadores da universidade brasileira não se constrangem diante do contraste entre os meios que usam e os fins de tais instituições. O que diriam os grandes filósofos sobre esse aparelhamento grosseiro que acontece no Brasil, para serviço de causas particulares e “conquistas” que dependem do incansável martírio da verdade?
O cotidiano do espaço acadêmico é tão relevante sob o ponto de vista do interesse público, que a Constituição Federal, graças àquela visão do paraíso que regeu o processo constituinte de 1988, lhe concedeu ampla autonomia. Essa autonomia sem limites favoreceu a invasão pelo corporativismo e o aparelhamento. E, na confluência dessas condições, a universidade pública virou uma casamata.
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
08/06/2019
A conversa corria solta na mesa ao lado. Falavam de futebol e esse é um assunto que exige tanta eloquência quanto tempo. Não se fala de futebol em voz baixa, nem só um pouquinho. Se bem contado o tempo em certas emissoras de rádio que fazem jornalismo 24 horas, o futebol ocupa a maior parte da programação. Por vezes, chego a pensar que o brasileiro goste mais de falar sobre futebol do que do jogo propriamente dito.
Voltemos, porém, à conversa da mesa ao lado. Recordavam antigos atletas, treinadores, vitórias de seus clubes. De repente, alguém sacou de uma memória que me fez lacrimejar de inveja a escalação do Fluminense campeão carioca de sei lá qual ano. Coisa de décadas passadas. Estimulados por isso, outros abriram a gaveta dos papeis velhos e puxaram registros de feitos e vitórias de seus clubes. As principais interjeições eram reservadas a grandes goleadores e goleiros. Os assuntos mais densos envolviam esquemas de jogo, escalações, receitas para o sucesso e para o fracasso.
Continuavam discutindo quando fui embora pensando sobre o que ouvira e se tornou inevitável comparar todo aquele conhecimento, destreza analítica, capacidade de ver e compreender a realidade dos respectivos clubes nos vários momentos de sua história, com o pequeno interesse e o quase total desconhecimento que a imensa maioria da população brasileira tem e mantém sobre a realidade nacional. Sim, sim, só ela explica o longo período de hegemonia esquerdista pelo qual passamos.
O sujeito recita a escalação inteira de um time de futebol num ano remoto, mas é incapaz de dizer o nome dos candidatos em quem votou no ano passado. Conhece, passo a passo, a trajetória de seu clube e os protagonistas de seus feitos, mas nada sabe sobre as principais figuras da história do Brasil. É incapaz de identificar, pela imagem, José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Castro Alves, simplesmente porque suas estátuas não existem e suas obras nunca lhes foram valorizadas.
Sei o quanto é comum isso que descrevo, mas sei, também, o quanto nosso país seria melhor, mais desenvolvido, mais humano, mas justo, respeitado e amado se atribuíssemos à sua história, sua política e suas grandes questões, o mesmo esforço de atenção e inteligência que dedicamos ao futebol. Cada brasileiro, com certa razão, se considera um técnico em futebol; no entanto, em relação ao país, não aprende coisas fundamentais como prestar atenção ao que já fez e não deu certo.
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
06/06/2019
Existem situações que, não importa quantas vezes as tenhamos presenciado, são naturalmente engraçadas e sempre nos fazem rir. Lembro-me, por exemplo, de um comercial em que, a partir do tropeção de alguém, as pessoas iam desabando umas sobre as outras em longa série de trambolhões. Nas comédias pastelão, o sujeito derrubava uma pilha de pratos e ficava olhando para outro lado como se nada tivesse a ver com o acontecido. Era engraçado.
O petismo faz a mesma coisa, mas sem graça alguma. O partido que viria para regenerar a República patrocinou uma sequência de desastres dos quais nenhuma dimensão da vida social, política e econômica ficou de fora. E lida com tais questões como se nada tivesse a ver com elas. Derrubou pilhas de pratos da economia, contabilizou 13 milhões de desempregados (na realidade o número é muito maior), quebrou os degraus da escada do PIB gerando estagnação e recessão. Fez o mundo olhar para o Brasil com ar de escândalo, vendo-nos como irresponsáveis, como se o Brasil fosse uma Grécia gigantesca e autofágica que engole o próprio PIB. Não contente, emburreceu nossos estudantes, mais preocupado com fazer que fossem influenciados politicamente do que em lhes transmitir conhecimentos. Temos honrados analfabetos funcionais com diploma de terceiro grau e vivas a Paulo Freire! A produtividade do brasileiro cai. Criminalidade em alta e repressão em baixa. E, claro, corrupção de dez dígitos. Bateram-se carteiras no salão.
As relações entre o PT e a crise brasileira são para lá de conhecidas. No entanto, diante da enorme rejeição social, perante o estrago causado pela crise e a corrupção, os dirigentes petistas andam por aí, em meio a uma montanha de pratos quebrados, olhando para os lados, xingando a todos e pondo as culpas em quem está juntando os cacos do país.
Tenho assistido as reuniões do Congresso a que comparece o ministro Paulo Guedes. São eventos importantíssimos, de extrema urgência. Neles o ministro discorre sobre os botões que precisam ser acionados para que a explosão não aconteça. O que faz o PT, acompanhado da colônia de partidos que o cercam? Nem ao menos tenta ser discreto ou engraçado. Nem olha para o lado com cara de paisagem. Não esboça o menor sinal de constrangimento. Dedica-se, furiosamente, a impedir que medidas saneadoras sejam tomadas. Discursa como se estivesse preocupado com zelar pelos pobres enquanto protege os privilegiados do sistema previdenciário em vigor.
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
04/06/2019
Leio no site Consultor Jurídico que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro pediu habeas corpus coletivo contra algemas em audiências de custódia. Ou seja, pretendem que bandidos presos em flagrante, seja por que crime for, permaneçam com liberdade de movimentos durante a audiência. E fazem isso em nome de elevadíssimos valores.
Nunca vi o sujeito de quem falam com tanta estima os defensores dos bandidos. A cada crime cometido por celerados que jamais poderiam andar soltos, eles mencionam esse raríssimo personagem. Discorrem sobre ele com a intimidade de quem certamente sabe o nome da sofrida mulher e dos infelizes filhos. Descrevem sua situação social, os empregos que perdeu por motivos fúteis, os maus tratos que a vida lhe impôs por culpa de todos que estejam uma polegada acima de seus padrões de existência. Apesar do abismo que separa esse sujeito dos bandidos que enchem as páginas policiais, os tais doutores o oferecem ao imaginário nacional como sendo nosso criminoso de referência.
“Filho doente, sem emprego nem dinheiro para os remédios, como buscar aquilo de que necessita?”, indagam como quem fala à dureza de corações empedernidos. Pois é, pode até ser que alguém tenha tido notícias, mas eu jamais soube de assalto cujo produto seja contado em vidros de antibiótico ou gramas de mortadela. O crime que enche os noticiários, que nos atormenta, é bem outro. Seus autores não vão em busca de uma necessidade premente. Querem dinheiro, sexo, automóveis, a conta bancária dos sequestrados, meios para comprar drogas. E, à menor contrariedade, atiram para matar.
Os dois sujeitos armados que me assaltaram tempos atrás não tinham jeito de quem iria dali ao supermercado adquirir gêneros para seus ninhos de amor familiar. Pergunto: as feras que declaram guerra à polícia, queimam ônibus, atiram contra mulheres grávidas, cometem chacinas seriam imagem viva desses chefes de família torturados ao limite de sua resistência moral pelas carências de entes queridos? Qual dos bandidos cujos empreendimentos enchem as páginas policiais tem o perfil que os tais doutores, sem o refinamento de Mark Twain, descrevem como se fossem recortados de uma página de Huckleberry Finn?
Sei que o mais empedernido promotor e o mais insensível magistrado não encarcerariam um miserável cuja situação e delito correspondam a essa quase romântica descrição. Os bandidos que a sociedade quer ver jogando o jogo da velha nos quadrinhos do xadrez são receptadores, quadrilheiros, sequestradores, traficantes, pedófilos, estupradores, estelionatários, assassinos, corruptores e seus fregueses instalados nos escritórios do poder.
Processar com rapidez, prender e manter presos os poucos que caem nas malhas da polícia e da justiça – digo eu antes que os tais doutores retornem com seu mantra – não resolve o problema da criminalidade. Leram-me bem, senhores? Não resolve! Mas resolve o problema da criminalidade praticada por esses específicos bandidos. E isso já é um bom começo. Que paguem atrás dos muros o mal que fizeram. Enquanto isso, cuide-se, também, das outras muitas causas. Entre elas, aliás, a ideologização que, dando origem a essa ladainha sentimental, se constitui em bom estímulo à tolerância perante o crime, ao avanço da violência e à ruptura da ordem pública.
Então, senhores, o sujeito explode um ônibus, é preso em flagrante e vai conversar com o juiz de mãos abanando?
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
02/06/2019
Quando leio críticas ao governo por ainda não haver formado sua base de apoio no Congresso Nacional, fico pensando se haverá alguém em Brasília que não saiba como isso vinha sendo feito e qual o preço transferido à sociedade, pagadora que é de todas as contas.
Nosso sistema eleitoral combina eleição proporcional de parlamentares com eleição majoritária de governantes. A eleição proporcional estimula a criação de mais partidos e todo ano, de fato, aparecem alguns, novinhos em folha. Surgem do nada e por nada. Na maior parte dos casos, sem programa nem doutrina; quando muito uma ou outra vaga ideia porque mais do que isso atrapalha no jogo do poder. Ao mesmo tempo, a má fama produz, entre as velhas legendas, sucessivas trocas de nomes, numa quase lavanderia de razões sociais, apagando rastros e traços. Salvo raras exceções, nossos partidos, pouco ou nada significativos, são desconhecidos da sociedade. Há no Congresso Nacional uma abundância de minorias.
O Presidente, por sua vez, se elege com metade mais um dos votos populares válidos, mas precisa conseguir 3/5 dos parlamentares nas duas casas do Congresso para poder governar porque só fará o que o Legislativo permitir. Deve buscar essa maioria dentro do corpo fluido, atomizado, difuso e confuso, que são as bancadas partidárias.
Em poucas e suficientes palavras: é um sistema político que quer ser democrático, mas é apenas burro, irracional, estabanado, desastroso, como bem demonstram seus resultados.
Pergunta-se, então: como se constrói maioria num sistema em que dezenas de siglas permanentemente se acomodam e reacomodam? Se não for a adesão ao programa vitorioso na eleição presidencial, o que será? Se não forem as evidentes urgências nacionais, o que será?
Há várias décadas, os presidentes têm usado o aparelho de Estado para atrair partidos à sua base, mantendo-lhes o metabolismo que processa, ingere e digere recursos públicos. O resultado mediu-se em corrupção, delações premiadas, fortunas acumuladas no Exterior, democracia fraudada e cadeia para muitos. O combate a esse mecanismo esteve entre as quatro turbinas propulsoras das vitórias eleitorais de 2018: combate à corrupção, desenvolvimento econômico, segurança pública e retomada dos valores tradicionais. E o Presidente, na percepção de muitos, comete dois erros imperdoáveis: não abre mão dessas plataformas e frustra as expectativas dos que – urbi et orbi – anunciavam seu governo como uma Caixa de Pandora, repleta de perversidades.
Também por isso insisto na necessidade de uma reforma política que enfrente esse desajuste estrutural das nossas instituições. Se separasse governo, Estado e administração, uma boa reforma eliminaria a apropriação partidária do Estado e da administração pelo governo (a economia para a nação seria imensa e o país despencaria no ranking da corrupção). Se adotasse voto majoritário para os parlamentos, com eleição distrital, por exemplo, o número de partidos passaria a ser contado nos dedos da mão, com ganho de operacionalidade para o sistema político, maiorias mais facilmente componíveis e enorme redução dos custos financeiros da democracia.
No modelo que se tornou vigente no Brasil, a mais numerosa força oposicionista vem daqueles que não conseguem viver sem abocanhar uma fatia do Estado.
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
30/05/2019
É interessante observar o rumo que, de uns meses para cá, tomaram os editoriais do jornal O Estado de São Paulo. Ao mesmo tempo em que pedem moderação, diplomacia, capacidade de articulação política e transigência, como atributos de que o país e o governo estariam carentes, os editoriais do Estadão espancam o governo e desqualificam seus adeptos, acirrando, assim, os antagonismos que incluem entre os males do país.
Na edição do dia 28 de maio, depois de uma olhada superficial sobre as grandes manifestações do dia 26, o jornal adverte:
“Nunca é demais lembrar que a reforma da Previdência, malgrado sua urgência, deve ser apenas o início de um amplo processo de mudanças com vista a ensejar uma retomada do crescimento que, finalmente, comece a tirar o Brasil da sua persistente mediocridade. Nada disso será alcançado sem contrariar as corporações que capturaram o Estado para a satisfação de seus interesses, e para isso será preciso arregimentar democraticamente as forças dispostas à articulação de um consenso mínimo.”
O redator talvez julgue haver, em parto sem dor, dado à luz uma ideia original, o caminho da roça para tirar o país da crise – “um amplo processo de mudanças com vistas a ensejar uma retomada do crescimento”. Ao ler isso fiquei com vontade de recortar e mandar para o ministro Paulo Guedes, sublinhando a advertência sobre a necessidade de “contrariar as corporações que capturaram o Estado”. Grande sacada!
O problema é que enquanto tenta ensinar o padre a rezar missa, o jornal faz o que condena. Desacredita sistematicamente o Presidente, ora com platitudes, ora com grosserias. Silencia sobre seus méritos e tenta blindar o Congresso com um isolamento acústico aonde não chegue a voz das ruas. Cobra todas as responsabilidades e contas do governo e confere ao Legislativo (aí incluída a desacreditada elite do Centrão) um direito a decidir sem pressão que jamais foi objeto de tão insistente defesa nas páginas do jornal.
Na perspectiva do Estadão, tudo se passa como se “o amplo processo de mudanças“ a que se refere, estivesse sendo objeto de debate num país distante, e seus editorialistas, em vez de emitir opinião, se sentissem obrigados a omiti-la em nome do respeito às imaculadas motivações dos congressistas. Essa atitude impediu o jornal de perceber dois fatos significativos: 1) foi a reação popular que travou, no Parlamento, a recriação de pelo menos dois ministérios; 2) a mesma pressão, porém, não bastou para manter o COAF na órbita do Ministério da Justiça, em votação festejada no plenário como se fosse indulto de Natal. Deliberação legítima? Sim, mas convenhamos...
Em relação a seus deveres como importante jornal do país, o Estadão comete o mesmo erro que, equivocadamente, atribui ao governo: põe lenha no fogo e deixa as batatas assarem até a casa queimar. As multidões que foram às ruas em todo o Brasil no dia 26 entenderam melhor a situação. Apoiaram as reformas, deram suporte ao Presidente, louvaram Sérgio Moro e Paulo Guedes. Frustraram os que previam fracasso e decepcionaram os que imaginavam uma antidemocrática Tomada da Bastilha brasiliense. Foram muito mais proativas, enfim. Ajudaria bem o Brasil se o Estadão escrutinasse as condutas dos dois lados da praça e desse uma olhada nos inimigos das reformas e suas motivações.
_______________________________
* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.