Prezado deputado Paulo Renato Souza (PSDB-SP):
No 20 de novembro, Dia da Consci?ia Negra, a C?ra passou a lei de cotas nas universidades e institui?s federais de ensino m?o, que ? primeira lei racial na hist? da Rep?ca. A aprova? se deu sem o voto dos deputados, por conluio entre lideran?. Voc?articipou destacadamente daquele conluio, renunciando ?osi? contr?a ?nclus?da ra?na lei que dizia sustentar.
Arlindo Chinaglia (PT-SP), o presidente da C?ra, celebrou o desenlace e ofereceu um diagn?co: Os que t?opini?divergentes cederam, o que resultou em um grande avan? Traduzo a frase do seguinte modo: nada ?mposs?l, nem mesmo derrubar o princ?o da igualdade perante a lei, quando a oposi? abdica de seus deveres b?cos. Estou errado?
Serei franco. Surpreendeu-me a sua colabora?, sem a qual o projeto teria de aguardar uma sess?com qu? e ser votado nominalmente pelos deputados. Li num jornal a sua justificativa. De acordo com ela, o projeto n??uim, pois estabelece cotas raciais proporcionais ?omposi? racial da popula? de cada unidade federativa, de modo que, nas suas palavras, nos Estados com predom?o demogr?co de brancos, eles ter?chances maiores de ingressar nas universidades. Se entendi, voc?egociou e aprovou o projeto pois n?viu nele desvantagens para a ra?branca. Posso, ent? intitul?o Grande Chefe Branco?
N?h?ronia nisso, acredite. Os patrocinadores de projetos de cotas no ensino e no mercado de trabalho almejam a condi? de l?res negros. Eles usam o fruto envenenado da ra?para impulsionar carreiras pol?cas ou conquistar posi?s de prest?o em ONGs muito bem financiadas. Mas ?laro que a constru? de identidades raciais oficiais no Brasil abre possibilidades inusitadas. Se h??res negros, por que n?l?res brancos? (Veja que para isso nem se precisa de algo t?aparente quanto a cor da pele: em Ruanda a vida pol?ca girava em torno de l?res tutsis e l?res hutus, ao menos at? genoc?o).
N?nos enganemos. Pol?cos oportunistas em busca da condi? de l?res negros (ou brancos) s?elos instrumentais na passagem de leis de ra? mas a concep? de tais leis se deve aos doutrin?os racialistas, que s?pessoas dotadas de princ?os - e o xis do problema reside no conte?desses princ?os. Racialismo ? doutrina baseada numa dupla cren? 1) ra? existem, se n?na natureza, ao menos na hist?; 2) a hist? do mundo n?? hist? de indiv?os, mas de grupos, n?a de na?s, mas a de ra?. Empreguei, para expor a segunda cren?racialista, uma cita? de William Du Bois (1868-1963), o pai fundador da doutrina. Toda a l?a das pol?cas de cotas raciais se encontra delineada na obra desse americano. Seria inoportuno sugerir que a lesse?
Du Bois era um racialista, n?um racista, pois n?acreditava em no?s de superioridade racial. Ele visitou a Alemanha nazista e gostou do orgulho de ra?promovido pelo regime, mas confessou sua repulsa com a persegui? aos judeus. Bem antes, em 1903, escreveu Os talentosos dez por cento, em que expunha a tese de que, por meio de uma criteriosa sele? educacional, um negro em cada dez poderia converter-se em l?r mundial da ra?negra. O artigo come?assim: A ra?negra, como todas as ra?, ser?alva por seus homens excepcionais. O problema da educa? entre negros, ent? deve antes de tudo concentrar-se nos 10% talentosos... Entendeu, agora, a proposta de cotas? Percebeu que ela nada tem que ver com um programa de redu? de desigualdades sociais?
Nos EUA, as leis de segrega? racial definiram quem era branco e quem era negro. Du Bois falava para uma ra?oficializada pela discrimina?. Por aqui, os racialistas lamentam a aus?ia de leis desse tipo no nosso passado, pois recaiu sobre os ombros deles a miss?de fabricar, na mente das pessoas, a consci?ia racial e o orgulho de ra? Fico um tanto triste ao perceber que se procura realizar essa obra a partir da escola. Tarso Genro, na sua passagem pelo Minist?o da Educa?, ordenou que todas as escolas associem nominalmente cada aluno a uma ra? Voc?um ex-ministro da Educa?, e Paulo Haddad, o atual titular da pasta, articularam juntos o projeto de cotas raciais aprovado na C?ra. Voc?n?s?tr? mas uma tr?e. Juntos, por cima de diferen? partid?as, invadem as aulas de Hist? e Biologia para apagar a lousa onde est?scrito que ra? humanas n?existem, a n?ser como inven? do racismo. Mas voc?iga para o que est?scrito na lousa?
J?otou que os brasileiros sentem uma certa repugn?ia diante da id? de serem divididos oficialmente em ra?? Por coincid?ia, no mesmo dia em que voc?aprovavam uma lei que faz exatamente isso, divulgou-se uma pesquisa de opini?p?ca sobre atitudes diante do tema racial. Encomendada pelo Cidan, uma ONG racialista, a pesquisa fez perguntas viciadas, tendenciosas, a uma amostra da popula? carioca. Mesmo assim, 63% declaram-se contra as cotas raciais. Mais interessante ?ue as posturas diante das cotas raciais n?variam em fun? da cor autodeclarada das pessoas. Entre os brancos, 63,7% rejeitam essa pol?ca; entre os pardos, 64%; entre os pretos, 62,2%. Eu interpreto isso como uma op? identit?a: as pessoas, independentemente da cor da pele, querem ser cidad? iguais perante a lei. Estou errado?
N?h?otivo para imaginar que os demais brasileiros pensem diferente dos cariocas. Apesar da maci?propaganda racialista veiculada pelo Estado, os cidad? percebem o mal que a pedagogia das ra? faz aos jovens estudantes. A coincid?ia entre a divulga? da pesquisa e a aprova? por conchavo da lei de cotas coloca uma pergunta constrangedora: onde est? representa? parlamentar da maioria que rejeita as leis raciais?
* Soci?o e doutor em Geografia Humana pela USP.