Percival Puggina

19/02/2019

 

 Semana passada, num voto que antes da metade já está sendo classificado como “histórico” por figurinhas do recinto, Celso de Mello, ministro do STF, foi na esteira de Simone Beauvoir para sustentar que não se nasce mulher. Tudo se passaria, creio, como se a linda e cobiçada fêmea da nossa espécie viesse ao mundo com o destino dos pés de couve, pronta para ser cozida, gratinada, frita, ou flambada. Feita ao gosto da freguesia. Agora, inteiro-me sobre o filme que Wagner Moura rodou exaltando Marighella e isso ajudou a fixar, em mim, a ideia de que há uma distopia convivendo conosco. Utopia já é coisa complicada. Utopia pelo avesso, então...

 Entendam-me. Wagner Moura pode filmar a história que quiser. Eu exercitarei minha liberdade de não assistir. Pode fantasiar quanto entender sobre esse terrorista, autor do Minimanual do Guerrilheiro Urbano. Pode apresentá-lo branco, negro ou ruivo, como lhe convier, que eu não me importo. Esquerdistas de meu convívio explicaram-me que isso não é desonestidade intelectual, mas “liberdade de criação artística”. Meu espanto é que denotaria preconceito. Tudo isso me falaram enquanto conversávamos, eu no meu quadrado e eles ali, à porta de sua distopia.

 Quando reconhecemos o que estou descrevendo, que muitos brasileiros vivem num mundo imaginário, etéreo, desconfigurado, os contornos da realidade se alargam. A gente começa a entender por que o auditório de Wagner Moura, distante 10.572 quilômetros da carceragem de Curitiba, ecoou frases de ordem por Lula livre, por que Jean Wyllys foi a Berlim e por que era imperioso mencionar Marielle Franco. Graças à distopia, a OAB é contra Sérgio Moro e os ministros do STF fazem o que fazem. Ela também permite entender o motivo pelo qual crimes praticados por bandidos reais são minimizados pelos mesmos políticos e magistrados que buscam criminalizar a incivilidade de cidadãos comuns, posto que efetivos crimes motivados por preconceito, crimes já são.

A distopia, espreitando à sua porta eu vi, funciona como um grande ventre moedor da história. A tragédia que a esquerda brasileira produziu no Brasil vira um sonho de liberdade que morreu na eleição de outubro passado. É a tristeza imensa das bandeiras vermelhas! Entram fatos e saem símbolos, aqueles são digeridos para que estes sejam produzidos. Mundo afora, milhões de cadáveres são incinerados no anonimato para que uns poucos, os escolhidos, sirvam aos poderes distópicos. Por isso, o filme Trotsky os incomodou tanto, como escrevi em “Trotsky, por que os comunistas detestam o filme”. Bibliotecas inteiras ganham a lixeira do desprezo para que raros fatos, também eles escolhidos, trabalhados na ourivesaria das versões, se convertam em discurso, aula, sermão, vídeo, slogan e filme (sempre à custa de quem vai ser enganado por tais peças).

Na mesa dos acontecimentos, sabe-se que todas as dezenas de organizações que atuaram na clandestinidade contra os governos militares, entre elas a ALN de Marighella, lutavam pela instalação no país de um regime comunista cuja vitória era buscada com instrumentos de guerrilha e terrorismo. As palavras democracia e liberdade, hoje tão apaixonadamente pronunciadas quando há referências ao período, eram solenes ausências, desprezíveis plataformas burguesas que não apareceram sequer quando os sequestradores do embaixador norte-americano obrigaram o governo a autorizar a leitura de um manifesto em cadeia nacional de rádio e TV. Uma oportunidade de ouro para afirmar compromissos com democracia e liberdade! No entanto, nenhuma dessas palavras é mencionada. O longo texto só fala em luta, assaltos, guerra e violência revolucionária.

Por isso, nunca houve o mais tênue apoio popular às organizações guerrilheiras e terroristas que hoje produzem esses memoriais distópicos de realidades e motivações que nunca existiram. Não é por acaso que o regime cubano sempre foi referência e que, mesmo depois de criar o inferno na Venezuela, o “bolivarianismo” permanece no altar das devoções.

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

15/02/2019

 

O decano do STF falou, falou, falou. Disse que não se nasce mulher, mas “torna-se mulher”. Com essa monumental tolice, firmou sua aderência à ideologia de gênero e cuspiu fogo em quem pensa diferente. Quando muitos, já caindo a noite, creram que ele iria concluir, o ministro anunciou estar ainda antes de metade de seu voto e advertiu a Corte: outro tanto a ela estava reservado para a próxima sessão.

Em sua dissertação, Celso de Mello recusou ao STF (ao menos isso) a iniciativa de legislar sobre a matéria. Mas pareceu estar abrindo a porta para uma provável determinação formal do Supremo ao Congresso no sentido de que delibere sobre o assunto, tipo “por bem ou por mal”. É o que se depreende do que disse quando criticou, reiteradas vezes, a inércia abusiva e inconstitucional – note-se bem esse adjetivo – ao não decidirem, os congressistas, sobre os projetos que criminalizam a homofobia. É o mesmo caminho para onde nos leva o reiterado uso, em seu voto, da expressão “mora deliberandi”... E se o STF determinar e o Congresso não obedecer ou rejeitar o projeto, o que acontecerá? Nada! Ou uma imensa usurpação de competência.

Enquanto o ouvia atacar a lentidão do parlamento em relação a tais projetos, numa tentativa de forçar o outro lado da rua a atendê-lo por força de sua chibata verbal, fiquei pensando nas prateleiras do STF. Imaginei-as vazias. Antevi limpos e polidos os tampos de desocupadas escrivaninhas ministeriais. Gavetas ociosas guardando clipes, etiquetas e carimbos à espera de um expediente que surja apressado, a cobrar despacho. Afinal, o sábio ministro não iria jogar pedras no telhado do vizinho se fosse de vidro sua própria cobertura. Claro que não, no STF tudo deve estar cumprido a tempo e hora.

Lembrei-me, então, de um arquivo estocado há bom tempo na tela meu computador. Busquei por ele e ali estava a manchete do Estadão do dia 2 de outubro de 2017: “Um quinto dos processos do STF caducou em 2017”. Reconheço que a notícia, de 16 meses atrás, não é um primor de atualidade, mas fala forte em relação a um problema que é conhecido de todos. A expectativa de prescrição faz do STF um bom e remansoso estuário buscado por advogados criminalistas.

Não vou retomar o que escrevi em “Pelo fim da PEC da Bengala” sobre o fato de que, nos legislativos, não deliberar é deliberação. E de que milhares de projetos não são votados, todos os anos, porque não têm maioria para aprovação. Em outras palavras, são sepultados pelo desinteresse geral.

No caso específico dos projetos que criminalizam a homofobia, alguns aspectos chamam a atenção e, muito provavelmente, justificam a falta de motivação para votá-los. Hediondos crimes praticados contra pessoas LGBT já são, com muita razão, crimes hediondos pelas leis penais do país. É bom lembrar, aliás, que o agravamento dessas penas, quando cobrados pela “direita”, sofre habitual rejeição da “esquerda” dita defensora de direitos humanos, que alegam sua inutilidade... Os crimes de menor potencial ofensivo, agressões físicas e morais também são sancionados pelas leis do país.

Assim, em que pese a eloquente, pungente e, por vezes, minuciosa descrição de crimes contra tais pessoas que o ministro Celso de Mello produziu na parte já lida de seu voto, não são estes os crimes que estão no foco do interesse de Sua Excelência. É no detalhe que mora o problema e é por esse detalhe que a ideologia de gênero chegará pedindo passagem nas salas de aula.

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

13/02/2019

 

Num vídeo, vejo o atual presidente do STF, em palestra realizada no ano de 2014, discorrendo com enorme naturalidade sobre um crime de supressão de documentos ocorrido sob suas barbas. Na TV, fico sabendo que, sob múltiplos apelos, a CPI Lava Toga foi morar no arquivo do Senado. Nas redes sociais, informam-me que o Supremo começa a deliberar sobre ações envolvendo aborto, crime de homofobia e temas conexos. Há poucos dias, chocou-se a nação com a liminar concedida por Toffoli, quando ainda longe a alvorada, para que a eleição do presidente do Senado ocorresse como convinha à banda podre do PMDB e do PT. A imensa maioria dos senadores lixou-se para a ordem judicial, exibiu o voto dado, destronou a turma sinistra e ficou por isso mesmo. Um mês antes, Marco Aurélio não determinara a soltura de mais de 200 mil presos? No twitter, o Procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU, Júlio Marcelo Oliveira aponta três pilares de sustentação da impunidade, sendo, um deles, “a visão de mundo de Gilmar, Toffoli, Lewandowski e Marco Aurélio, que parecem sofrer quando um corrupto é preso”. E arremata: “O STF, hoje, é parte do problema e não da solução”. Há que dar um jeito no Supremo e a revogação da PEC da Bengala é o jeito.

 É difícil conciliar toda uma infinita cadeia de ocorrências nada louváveis e o muito mais que se sabe e presume, com a arrogância que tão decisivamente se manifesta naquele recinto. A mais recente evidência está no ingresso em pauta de temas que todos sabem ser de competência do Congresso Nacional, como a criminalização da homofobia e do aborto.
 A alegação que empurra ou puxa essas pautas para endereço errado é pueril: o Legislativo se recusa a legislar. Diante disso, com muita propriedade, indaga o Promotor de Justiça Bruno Carpes: “E quando o Judiciário deixa de julgar, o Legislativo julga por ele?” (cai o pano, o público aplaude).

Então, vamos explicar bem devagar para que até os ministros do STF entendam. Nos parlamentos, as coisas funcionam assim. Suponhamos (apenas um exercício de imaginação, tal projeto não existe) que um deputado protocole proposta para permitir, que, em nome do multiculturalismo, famílias de certas etnias possam promover a mutilação genital feminina (infibulação), segundo seus próprios costumes, com atendimento pelo SUS para evitar riscos à saúde (argumentos, aliás, que têm sido usados para justificar crimes muito maiores contra a vida). O projeto “Infibulação gratuita e segura” poderia circular durante décadas sem ser votado porque o autor, sabendo-o sem apoio, não o quer rejeitado. Omissão do Legislativo? Não! O projeto não tem apoio suficiente, não conseguiu formar maioria, não vai a plenário porque não tem voto, e o autor não tem interesse em perder.

Raramente, muito raramente, um projeto de parlamentar vai a plenário para ser rejeitado. O que acontece com esses temas que o STF se dispõe a abraçar é exatamente isso: envolvem assuntos sobre os quais não há maioria formada para aprovação, o que equivale a rejeição. E rejeitar um projeto, ou não o aprovar, é prerrogativa do Poder. Deu para entender, senhores ministros, ou preciso desenhar? Quem sabe um Power Point? Um videozinho? Uma entrevista com qualquer funcionário do protocolo da Câmara dos Deputados facilitaria a compreensão.

Quando o STF, alegando “omissão do Legislativo”, invade sua competência e passa a legislar, está, pura e simplesmente, impondo a ilegítima vontade de sua pequena maioria sobre legítima decisão majoritária do Legislativo. É uma reiterada usurpação de competência que está, também ela, a apontar para necessidade de revogar a PEC da Bengala, conforme iniciativa proposta pela deputada Bia Kicis.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

11/02/2019



Assisti aos oito capítulos da série do Netflix sobre Trotsky sabendo que se tratava da adaptação de uma obra literária e que, portanto, não era rigorosamente histórica quanto aos fatos, frases e condutas. Meu interesse fixou-se no notável desempenho do ator russo Konstantin Khabenskiy e na singularidade de uma narrativa sobre a revolução ir além da tomada do poder pelos bolcheviques. Por quê? Porque esse costuma ser o momento em que o discurso dos comunistas começa a dar sinais de dificuldade, a aula termina, a conversa acaba. O Terror Vermelho que se seguiu é imensamente constrangedor a quem preserve, em si, um fiapo de humanidade. Dele participaram e com ele se comprometeram os três grandes líderes – Lênin, Trotsky e Stalin.

A “narrativa” revolucionária, entanto, precisava salvar alguém nesse imbróglio e o escolhido foi Trotsky. Ele seria o comunista virtuoso, a quem não se poderiam atribuir as perversões, o estilo de vida e as motivações que levaram a tais genocídios. Stalin, por sua vez, costuma ser escalado para o papel de bad boy de toda a tragédia social e humana da revolução, que se justificou pela fome, instituiu a miséria, saqueou o entorno e nem assim sobreviveu.

Daí porque os comunistas odiaram a série da Netflix. Eles necessitam que alguém – Trotsky – escape à amarga e fétida mistura de terrorismo, banditismo, selvageria e deformação moral que marcou o evento há tanto tempo cultuado. Pergunto: não são de seu herói estas palavras proferidas já em 1º de dezembro de 1917, dirigindo-se aos delegados do Comitê Central dos Sovietes?

 “Em menos de um mês, o terror, do mesmo modo como ocorreu durante a Grande Revolução francesa vai ganhar formas bastante violentas. Não será mais somente a prisão, mas a guilhotina – essa notável invenção da Grande Revolução francesa, que tem como maior vantagem reconhecida a de encurtar o homem em uma cabeça – que estará pronta para os nossos inimigos”. (Delo Naroda – “A Causa do Povo”, 3/12/1917).

Gentil, o moço. Em 1919, em “La defense du terrorisme”, conforme lido em “O Livro Negro do Comunismo, pag.887, ele faz um diagnóstico das duas classes sociais, o proletariado ascendente e a burguesia decadente. Na visão de Trotsky, esta última é tão apegada ao poder que, em sua queda, arrastaria consigo a sociedade inteira. Portanto, era preciso eliminá-la. Assim:

“É nossa obrigação arrancá-la do poder e cortar-lhe as mãos. O terror vermelho é a arma utilizada contra uma classe condenada a perecer e que não se resigna a isso.”

Assistam a série, apesar de ser uma história densa, pesada, com fantasias e muitas intercalações que brotam da imaginação do roteirista ou do romance histórico em que se baseia, vale o tempo gasto. Dá muito que pensar. Exibe o risco inerente às utopias. Por vezes dói constatar que o filme parece reproduzir diálogos atuais de nosso ambiente intelectual... Noutras ocasiões, sua atualidade surge ao mostrar que, nos primeiros movimentos da revolução, os comunistas cumpriram o repetido papel de atacar os presídios e libertar os presos. No Brasil há gente ansiosa por fazer isso com a caneta.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

 

 

 

 



 

Percival Puggina

09/02/2019

Neste momento, em algum gabinete parlamentar, redação de jornal ou repartição partidária, alguém está produzindo uma narrativa para explicar o inexplicável. Não sei quem é o tipo, nem sobre o que escreve. Mas o sujeito está lá, dedilhando seu computador, a construir histórias sobre fatos que, interpretados como devem, prejudicam seu partido, seu parlamentar, sua visão de mundo, sua engenharia social. A seu modo, é um discípulo de Goebbels. A atividade é bem remunerada e antiga, mas ele talvez ainda não saiba: é um homem fora de seu tempo.

Uma das nove musas gregas, de nome Clio, filha de Zeus e Mnemósine, era a fonte de inspiração da História e da criatividade. A parte que cabe aos operosos construtores de narrativas no Brasil contemporâneo é a da criatividade, somente ela. Dane-se a História! Sua tarefa é orientada para induzir ao erro, ocultar o que for inconveniente, exibir como acontecido o que não passa de suposição. Aliás, convencer sobre suposições é parte do trabalho, profundamente desonesto, portanto. Era o trabalho de Goebbels.

Também assim, em muitas salas de aula, a história do Brasil e os acontecimentos cotidianos são objetos de “narrativas” em dissimulados cursos de formação de militantes, que engrossam o caldo de cultura necessário a tal objetivo. Também assim, a imagem de Lula, a cada condenação, vai para o restauro e ganha grotesco remendos retóricos. Também assim, em vez de examinarem a indecente pretensão de eleger Renan Calheiros, criticaram a desobediência dos senadores ao “sagrado” sigilo de voto imposto pelo companheiro Toffoli. Também ele, está fora de seu tempo.

Nos últimos cinco anos, conservadores e liberais foram sendo acordados de sua letargia e passaram a clamar por mudanças, pelo desmonte desses artefatos de guerra cultural que custeiam. Descobriram que podiam recuperar seu país. E graças às redes sociais, aos modernos meios de comunicação, ninguém mais é dono da notícia e, menos ainda, de seu significado. O construtor de narrativas pode colocar na boca de um congressista a frase de que Lula foi condenado novamente para prejudicar sua indicação ao Nobel da Paz. Ele pode mandar dizer que não foram as organizações criminosas que motivaram a Lava Jato, mas a Lava Jato que criminalizou a política. Pode, mas viralizará em memes, piadas e causará gargalhadas. Goebbels vai ao suicídio.

Qualquer dúvida sobre o significado dessa nova, democrática e irreprimível interação restou esclarecida nas duas sessões preparatórias para a instalação do ano legislativo e eleição da presidência do Senado. Bem vistas as cenas, lançado esse olhar sobre o fervilhante comportamento do plenário, ficou evidente a intensa atividade on-line. Senadores filmavam e filmavam-se, falavam e ouviam. Iam às suas páginas e escreviam. E liam. E contavam likes e dislikes. Às urtigas a ordem do Toffoli! Exibiram seus votos porque a sineta da soberania popular soava sobre as mesas e nos bolsos dos casacos.

Durante décadas, os construtores de narrativas foram muito bem sucedidos. Especialmente no tempo das velhas “cartilhas”. Ou do “cartilhismo”, como dizíamos aqui no Rio Grande do Sul, onde escrevo. Com estes instrumentos, os ativistas de esquerda eram nacional e uniformemente abastecidos de construções retóricas, esfarrapadas desculpas e grotescas acusações que, reiteradas além dos limites da náusea, tinham, pela repetição, aquele indigesto e conhecido poder de convencimento estudado por Goebbels. Pois esse tempo acabou, rápido e a muito baixo custo. No Senado brasileiro, Goebbels foi sepultado de vez, com audiência nacional. Raras preces, muitas vaias.

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

Percival Puggina

07/02/2019

Aparentemente é bem simplória a questão agora suscitada por um vereador de Porto Alegre: se o Estado é laico, os espaços públicos ou, de responsabilidade do Estado, não deveriam ser isentos de qualquer religiosidade? Pagãos como banheiros de estação? Desde essa perspectiva, crucifixo em parede de plenário, ou repartição, seria atropelo à equidade e agravo à Constituição e à Justiça. “Remova-se, então!”, reiteradamente propõem alguns. Tenha-se a coragem, porém, de assumir perante a história o registro da façanha: preserve-se o prego! Preserve-se-o para que todos conheçam o notável serviço público prestado. Preserve-se-o para registrar a anterior existência ali de um crucifixo removido por abusivo, ofensivo, intolerável às almas sensíveis que, em nome da justiça e da equidade, se mobilizaram contra ele.

 Por que a retirada de crucifixos é tema polêmico? Por que vira notícia sempre que ressurge para tiquetaquear minuto de fama a alguém? Afinal, estarão enganados os cíclicos autores dessas iniciativas? O dedo acusador da Constituição não aponta para o crucifixo mandando arrancá-lo dali? No entanto, se o admitirmos, teremos que reconhecer como cegos de bengalinha ou iletradas toupeiras, os juristas, parlamentares, professores, constituintes, magistrados, ministros do STF que trabalham em locais públicos onde há crucifixos. Há que declará-los incapazes de entender o que esteve escrito em todas as nossas constituições republicanas sobre separação entre Igreja e Estado.

 Os padroeiros da modernidade que esgrimam contra símbolos religiosos esquecem que desde a Constituição de 1891 os preceitos constitucionais sobre essa separação foram deliberados pelos redatores de nossas sete Cartas, majoritariamente cristãos! Ela é concepção da maioria e não é conquista de alguém. Podem sossegar o facho. O país nada deve ao iluminismo temporão.

 Pergunto: de cada cem pessoas que ingressam no plenário da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, quantas ficam dispneicas, tarquicárdicas ou entram em sudorese se veem um crucifixo? Nenhuma? Pois é. E quantas - na real, sem exageros - se sentirão pessoalmente injuriadas por aquele símbolo? Pois é, de novo. Perante símbolos religiosos – quaisquer símbolos, de qualquer religião! – pessoas normais reagem com respeito ou com indiferença. Indignação, revolta, alergia escapam à normalidade. Portanto, os que investem contra crucifixos e enrolam seus argumentos na Constituição Federal são portadores de uma idiossincrasia, de uma fobia pessoal. Tal abominação é um problema que está nelas. Juro, o crucifixo é inocente! A ideia de sua retirada toma a situação pelo avesso. Considera discriminatória a presença do símbolo, quando discriminador e preconceituoso é quem posa de ofendido por ele. Ou não?

O Estado brasileiro não é ateu, é laico, mas a laicidade, no sentido em que é definida pela Constituição, recusa as pretensões do ateísmo militante. O Estado brasileiro não é inimigo da fé; ao contrário, com vistas ao interesse público, colabora com as confissões religiosas (CF, art.19,I). Prevê assistência religiosa aos que estão presos (CF Art. 5º VII). Também por essa compatibilidade de fins há capelães nas Forças Armadas. Retirar os crucifixos para acolher como saudáveis reações que afrontam a consciência civilizada não é defender o laicismo, mas curvar-se ao ateísmo militante, de pouco futuro e péssimo passado.

Os adversários dos crucifixos referem-no, mas focam, lá na frente, os princípios, os valores e as tradições que lhe são implícitos. Muitos, como os relacionados à defesa da vida, à dignidade e aos direitos humanos, às liberdades, à família, compõem convicções constitucionalizadas no Brasil e se refletem nas deliberações legislativas. É contra esse alvo que o ateísmo militante está declarando guerra e rufando tambores. Não agem por amor à Constituição, mas por repulsa ao perfume cristão que ela legitimamente ainda exala e volta a ser percebido neste novo momento da política nacional.

Curiosa ideia, essa. Em nome do laicismo estatal, num país onde mais de 90% dos cidadãos professam alguma religião cristã, ela desconhece o próprio povo, sua cultura e sua história e pretende retirar um símbolo que para esse mesmo povo representa o amor de Deus, o amor ao próximo, a Redenção e os mais elevados valores que deveriam iluminar as decisões e a justiça dos homens. E eu pensava que só vampiros tinham horror de crucifixos.


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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.


 

Percival Puggina

05/02/2019

 

“Quanto mais te cavo, e em ti me aprofundo, mais descubro que em ti não há fundo”. Henrik Ibsen.

 O que pode ser muito pior do que a corrupção, esse câncer financeiro e moral que tanto dano causa ao país? Que obra nefasta sepulta mais oportunidades, desemprega mais, afasta maior número de investidores, e desqualifica a educação tanto quanto, ou ainda mais do que os desvios de finalidade a que é submetida?

 Refiro-me à irresponsabilidade fiscal. Ela é companheira de um setor público que se agigantou sobre os ombros da sociedade. Aliás, o Estado brasileiro não leu Esopo e sacrifica, todo dia, poedeiras de ovos de ouro. Nos altiplanos da pátria, os poderes de Estado se expandem incessantemente, acumulando uma casca sobre a outra, qual cebola, como talvez a descrevesse Ibsen com a analogia do verso em epígrafe.

Os números da corrupção vão dos milhares de reais aos bilhões de reais. É dentro dos limites bem amplos dessa escala que eles podem ser contados. Já os números do gasto público financiado com endividamento se medem em trilhões de reais. Se amortizados, como deveriam ser, consumiriam metade do orçamento da União; se rolados, custam a cada virada de folhinha, centenas de bilhões de reais. Todo ano, fazem sumir valor muito superior ao da corrupção acumulada em muito tempo.

Uma face visível desse monstro pode ser apreciada nas 12 mil obras paradas (metade das quais sob responsabilidade da União). Mas há outra, mais pérfida, que se expressa na indigência, no abandono e na miséria a que vivem submetidos dezenas de milhões de brasileiros que deveriam ocupar o foco da atenção desse mesmo Estado, desse mesmo setor público. Isso é injustiça que dói na pele da mais tosca sensibilidade.

No entanto, em que pesem os números, chamou-me a atenção a falta de eco, por exemplo, às manifestações de uns poucos novos congressistas por austeridade, por redução das despesas autorizadas e de seus quadros de assessores. Os montantes assim obtidos fazem pouca cócega no fundo em que se cava, para dizer como o poeta norueguês, mas atitude – ah, a atitude! – elegeu Bolsonaro, mobilizou dezenas de milhões, e tem poderoso efeito multiplicador.

Pense na força das poderosas corporações funcionais; pondere o modo leviano como medidas saneadoras dormem nas gavetas de alguns ministros do STF; reflita sobre como, em tantos níveis, o Poder Judiciário e seus órgãos auxiliares expedem determinações que envolvem gasto público sem qualquer cobertura; imagine a barragem que desaba quando 11 ministros majoram os próprios vencimentos; avalie a facilidade com que se criam conselhos nacionais, conselhos superiores, órgãos colegiados, agências nacionais, que logo terão seus palácios em Brasília e extravagantes folhas de pagamento; dê uma olhada no preço final das vinculações e isonomias; atente ao quanto tem custado comprar apoio parlamentar mediante favores prestados com recursos públicos; calcule os preços de deliberações parlamentares arrancadas por lotadas galerias cujo único interesse é enviar a todos os demais a conta de suas postulações.

Vejo no governo e vi em alguns congressistas atitude avessa a isso. Mas falta testemunhá-la no recinto dos grandes privilégios, no âmbito das grandes decisões. Ou seja, no luxuoso berçário da miséria. Diante do Palácio da Alvorada, a escultura “As Iaras” (duas mulheres puxando os próprios cabelos), talvez representem, sem querer, uma antevisão do desespero que, por tanto tempo, se iria abateria sobre sucessivas gerações de brasileiros.

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.



 

Percival Puggina

03/02/2019

 

 A candidatura de Renan Calheiros começou a ruir na sexta-feira (01/02), quando o jovem presidente da sessão preliminar submeteu à deliberação do plenário o voto aberto. Dos 52 votantes, apenas dois foram favoráveis ao voto secreto. Onde estavam os demais 29 senadores? Viu-se ali que o candidato do MDB teria no máximo 31 dos 41 votos necessários. Para mantê-los e conquistar mais alguns ao longo do processo de votação foi preciso tirar Toffoli da cama na madrugada (alguém aí acredita nisso?) para sentar-se ao teclado e digitar um calhamaço inteiro decretando a nulidade da decisão tomada pelo Senado.

A interferência do STF pesou contra Renan e aumentou a pressão das redes sociais sobre os senadores. Isso é fato novo, impensável e incompatível com as rotinas da velha política. O direito de manifestação se democratizou, se digitalizou, e bate no telefone que vai no bolso do deputado, do senador, ou na rede social onde esteja seu perfil.
Durante a sessão de sábado, Renan buscou estancar o vazamento que lhe produzia a atitude serena, austera e adversária da colega Simone Tebet. Quanto mais ele se perturbava, mais ela crescia. A distinção da senadora funcionava como libelo acusador para ele e para os seus. Um torturante sinal de contradição.

O fatigante discurso de Renan como candidato cuidou de buscar simpatias na base do governo. No que disse, ninguém ali estava tão comprometido quanto ele com as reformas necessárias ao país. Na presidência do Senado, seria o poderoso senhor das reformas. No que não disse, sabiam todos: ali estava, investigado em muitos processos, o senhor das impunidades e a mão amiga quando os fantasmas do passado fazem soar a campainha às seis horas da manhã. A insistência de muitos senadores, entre os quais se destacava o gaúcho Lasier Martins, apelando para que os votos fossem declarados ou exibidos, pesava, porém, contra seu projeto de poder.

Ao retirar seu nome e deixar o plenário, aparentando uma dignidade que lhe falta, condenando como antidemocrática a decisão soberana dos próprios colegas, em votos contados, imaginando talvez como abusivo o fato de o público ter opinião e ser ouvido pelo plenário, Renan encerrou um capítulo da velha política ainda aberto por sua reeleição em Alagoas.

De início, antipatizei com o nome “velha política”, usado para designar práticas falecidas nas eleições de outubro passado. No entanto, os episódios desta abertura de ano legislativo no Senado Federal evidenciam a mudança que esse nome designa. Renan precisava do sigilo. Do segredo. “Meu segredo é meu” (Secretude meum mihi”, dizia-se em latim). A porta da sociedade de celerados, contudo, foi arrombada. O abracadabra foi ouvido e a caverna aberta.

Em A Divina Comédia, Dante adverte que “a vontade, se não quer, não cede, é como a chama ardente, que se eleva com mais força quanto mais se tenta abafá-la”. Foi exatamente o que vimos. À medida que as intenções de voto eram manifestadas, sumiram os de Renan. E o Brasil, esse Brasil que volta aos brasileiros, se tornou um lugar um pouco melhor.

 

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

 

Percival Puggina

01/02/2019

 

 

 Houve um tempo (e quase nada resiste ao tempo) em que Hugo Chávez e Lula eram vistos como os primeiros santos do socialismo! Nada corroía a imagem que, num espelho defeituoso, os credenciava aos altares da veneração mundial. Madre Tereza, coitada, fazia tão pouco, por tão poucos! Enquanto a vida lhes sorria, eles corriam mundo, lideravam o movimento socialista na América Ibérica, financiavam eleições e governos de esquerda.

Não faltava sequer, nas igrejas cristãs, por exemplo, quem entoasse cânticos, fizesse genuflexão e concedesse indulgência plenária à vida para lá de escandalosa do santo de Garanhuns. Na Venezuela, essa devoção originou um Pai Nosso em versão chavista (“Chavez nuestro que estás en el cielo”). Pergunto: o que fizeram ambos, cada um no seu quadrado, para alcançarem esse reconhecimento referendado por razoável crescimento da economia, elevação do nível de emprego e do Índice de Desenvolvimento Humano? Para produzir desenvolvimento, praticamente nada; para gerar os desastres subsequentes, tudo que estava ao alcance deles.

A economia Venezuelana era e continua sendo, totalmente dependente do petróleo. O país tem a maior reserva mundial dessa estratégica commodity que corresponde a 90% de suas exportações. Quando Hugo Chávez assumiu o poder em fevereiro de 1999, o barril de petróleo custava US$ 10; quando disputou reeleição em 2006, o preço se elevara em 600% e o barril era adquirido a US$ 61. Quando morreu, em março de 2013, Maduro manejava a economia com o barril a US$ 102. Com a receita de exportações aumentada em 10 vezes, o chavismo ganhou prestígio e teve recursos para implantar o socialismo que iria, logo ali adiante, entregar seus mais conhecidos produtos: fracasso absoluto de renda, miséria, supressão de liberdades. Em vez de usar a riqueza que, circunstancialmente, lhe caiu dos céus para promover novos eixos de desenvolvimento, o chavismo promoveu seu oposto e hoje precisa de 2000 generais companheiros para manter-se no poder em escancarada ditadura militar.

O surgimento do lulismo tem clara simetria com o caso venezuelano. Embora a economia brasileira seja mais complexa, o período correspondente ao governo Lula envolve o somatório de dois fenômenos em relação aos quais o pernambucano não teve qualquer ingerência: as importações chinesas e os preços internacionais do petróleo.
Em 2003, quando Lula assumiu o poder, a China importava US$ 295 bilhões no mercado mundial. A economia do país crescia num ritmo alucinante, sempre acima de dois dígitos e centenas de milhões de novos consumidores exerciam forte pressão de demanda nos preços mundiais das principais commodities. A produção brasileira era bola desse jogo: minério de ferro para a indústria chinesa e cereais para produção de proteína animal. Na eleição de 2006, as compras chinesas haviam saltado para US$ 631 bilhões e Lula posava de sábio, de mágico, de santo. Nunca houve tanta disponibilidade de dinheiro para ser roubado chamando pouca atenção. Em 2010, quando Dilma disputou seu primeiro pleito, o gigante oriental já estava consumindo US$ 1,307 trilhão e o Brasil vendendo tudo. E tudo a preços crescentes. A tonelada do minério de ferro, por exemplo, em 2003 (primeiro ano de Lula) era vendida a US$ 32; em 2006 a US$72; em 2010 a US$$ 148. Desde então vem caindo e fechou o ano passado a US$ 69. Aconteceu o mesmo com todas as nossas commodities. Os preços, no mínimo, dobraram durante esse período. E vêm caindo desde então.
O petróleo brasileiro, durante os governos petistas, viveu o mesmo período áureo que beneficiou o chavismo. Em 2003, o barril valia US$ 31, subiu para US$ 58 em 2006, para US$ 82 em 2010 (eleição de Dilma) e alcançou US$ 108 em 2014. Esses preços viabilizaram a exploração do pré-sal, mas não se mantiveram e fecharam o ano de 2018 a US$ 54.

Conto toda essa história para destapar o grave pecado desses dois ícones da hecatombe regional. Entregaram-se à embriaguez do momento. Usaram para o mal a sorte que tiveram. Elevaram o gasto público supondo que os níveis de receita se manteriam elevados para sempre. Não criaram as condições para sustentar o desenvolvimento por outro meio que não fosse a venda de commodities. Abriram as comportas da corrupção. Liberaram a criminalidade. Satisfizeram-se com capturar parcela expressiva da população em situação de aparente dependência direta de seus favores. O resto é história sabida.

Penso que faltava contar esta. Uma barragem se rompendo em lama talvez seja a melhor representação visual de sua obra.

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* Percival Puggina (74), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.