Percival Puggina
14/04/2020
Vivemos numa época em que a negação de verdades é vista como um serviço à liberdade e evidência de sensatez. Pelo viés oposto, afirmá-las é dar sinais de prepotência intelectual. “Tudo é relativo!”, proclama-se, enquanto se anuncia que a experiência individual (individualismo) ou comunitária (coletivismo) são as únicas fontes de conhecimento. Não é preciso muito esforço para reconhecer o quanto as afirmações de tais fontes são variáveis e não verificáveis. Na prática, o que se produz por essa via é a grosseira valorização do palpite: “Aqui vocês (ou você) decidem legitimamente sobre tudo!”
Quem diz que tudo é relativo afirma o relativismo como uma verdade. Certo? No entanto, se tudo for relativo, também essa “verdade” será relativa e a própria frase destrói o que pretende ensinar, a menos que admitamos o relativismo como a única verdade não relativa.
Existe a verdade e existe o bem! E quem nega isso, ao contrário do que imagina, não presta serviço à liberdade. Quantos pais, ocupados com bem educar seus filhos ouvem deles: “Puxa, só aqui em casa as coisas são assim!”. Tal frase é, talvez, a primeira evidência que colherão de o quanto foi a sociedade invadida por conceitos destrutivos de seus próprios alicerces.
O historiador Paul Johnson, admirável autor de “Tempos Modernos, o mundo dos anos 20 aos 80”, discorrendo sobre a repercussão social do trabalho científico de Einstein, escreveu:
“O mundo está desconjuntado, como tristemente observara Hamlet”. Era como se o globo giratório tivesse sido tirado de seu eixo e lançado à deriva num universo que não mais comportava normas e medidas preestabelecidas. No princípio dos anos 20 surgiu a crença de que não mais havia quaisquer absolutos: de tempo e espaço, de bem e de mal, de conhecimento, sobretudo de valores. Erroneamente, a relatividade se confundiu com o relativismo, sem que nada pudesse evitá-lo.
Mais adiante, referindo-se ainda a Einstein, o autor registra o desalento do cientista ao perceber as consequências da teoria da relatividade na vida real das pessoas.
“[Einstein] viveu para presenciar a transformação do relativismo moral – para ele uma doença – em pandemia social, assim como para ver sua equação fatal dar à luz o conflito nuclear. Houve vezes, no final de sua vida, em que afirmou desejar ter sido apenas um relojoeiro.”
Ora, tanto a física de Newton, quanto a de Einstein e a de Max Plank eram válidas para os respectivos parâmetros, mas sair delas para armar barraca nos porões da dúvida sobre bem e mal, certo e errado, verdade e mentira é maltratar a ciência e torturar os cientistas. O mundo desconjuntado de Hamlet volta as costas a Deus, enquanto se preocupa com a natureza, com os animais e as plantas, e descuida absolutamente do ser humano e da sociedade, da cultura e da civilização.
Que sentido pode haver em orientar-se pelo terrível silêncio da matéria, relativizando tudo que de fato importa ao homem?
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
11/04/2020Existem vários Brasis. Nestes dias de covid-19, um deles está em confortável prisão domiciliar e acha o ministro Mandetta muito carismático. Outro mora na Rua da Amargura, num apinhado barracão de zinco, “pendurado no morro, pedindo socorro à cidade a seus pés”. E tem 600 merréis para viver até sabe Deus quando, doutor. Outro habita o setor público e sabe tudo de direitos e cláusulas pétreas arremessadas sobre o setor privado, produtor de todos os bens e serviços, gerador de quase todos os empregos, exaurido pagador de todos os custos e garantidor de todas as dívidas.
Em 1215, na Inglaterra, o rei João I, dito João Sem Terra, assinou com os barões um documento que ficou conhecido como Magna Carta, limitando o poder da realeza, especialmente seu poder de tributar. Surgia ali o óvulo fecundado, o zigoto da responsabilidade fiscal, que no Brasil tem sido, historicamente, fraudada, frustrada e vilipendiada em todos os níveis de governo. É neles, nesses níveis, que os parlamentos aprovam, minuciosamente, um a um, todos os privilégios que entornam o caldo da despesa pública. É também neles que prospera a fabulosa máquina da política e da administração, que em grande parte funciona para si mesma.
Quantos planos de recomposição de dívidas já testemunhei como cidadão e pagador de impostos? Quantos serviram apenas para alargar os horizontes de novos surtos de irresponsabilidade fiscal? Não se pode desprezar o peso desse fator cultural na operação da política brasileira. De uns anos para cá, inverteram-se os papéis cumpridos em oito séculos de história da Magna Carta. Alternam-se e altercam-se. Ora os reis, ora os parlamentos são pródigos, gastadores, perdulários. É deles o pé de cabra que arromba o erário em plena luz do dia, sob as vistas da mídia que hoje só tem olhos para escanear e sacanear o presidente Bolsonaro.
O PLP 149/2019, chamado Plano Mansueto, foi mais um desses planos de saneamento de estados e municípios, que poderiam refazer suas dívidas, condicionados a iniciativas de cunho liberal que reduzissem o peso da máquina pública. Venda de estatais, contenção da despesa de pessoal no limite máximo de 51% da receita, etc. compunham a parte principal das condições exigidas pelo PLP.
Aí, mais uma vez, o Congresso Nacional, precisamente a Câmara dos Deputados, mete o pé de cabra legislativo e arromba o Tesouro Nacional, elaborando um substitutivo que, de carona no “corona”, transforma o projeto num imenso donativo federal. O projeto permite que governadores e prefeitos joguem, incondicionalmente, suas dívidas históricas no colo da União, acomodam seu fluxo de caixa como se não houvesse covid-19, nem recessão, enquanto os deputados garantem o sorriso agradecido de seus prefeitos e governadores.
E a União? Ora, quem se importa com o Brasil? Mete o pé de cabra, arromba o Tesouro e bota o estrago na conta do Bolsonaro, porque bons, mesmo, são o Maia e o Alcolumbre. Não é mesmo, senhores da grande imprensa?
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
09/04/2020
O ano de 2020 começou para todos os brasileiros com uma convergência de infortúnios. Uma assustadora pandemia. Uma crise de governabilidade (o governo se recusou a comprar maioria parlamentar). Uma crise econômica e fiscal (quase sem recursos disponíveis para atender demandas súbitas e urgentes da sociedade, que empobrece a cada volta do relógio, o governo precisou criar um “orçamento de guerra”). Uma crise na comunicação entre o governo e a sociedade (“filtrada” pelo partido da mídia, que tem o objetivo explícito de desestabilizar o governo). É dentro desses e de outros contextos que os cidadãos são chamados a tomar posição.
A grande mídia, desde a campanha eleitoral, nunca teve outro inimigo além do Bolsonaro. A palavra “governo”, por exemplo, é usada de modo a tornar impessoal e sem crédito a ninguém tudo que vai bem, enquanto as palavras Presidente ou Bolsonaro são o cabide para pendurar o que vai mal. Essa tarefa do partido da mídia está facilitada pelo encarceramento da sociedade e o desencarceramento dos criminosos. Pelos mesmos motivos epidemiológicos – valha-me Deus! – que nos prende em casa, os bandidos são soltos. Sem poder sair à rua, sem trabalho, sem futebol e sem alternativa, nunca como nestes dias os brasileiros viraram audiência cativa e disponibilizaram tanto de seu tempo para os fazedores de cabeça dos grandes veículos atacarem infatigavelmente o governo por todos os flancos. A contínua exposição a esse bombardeio testa a resistência do alvo.
Visivelmente, o presidente optou, desde o início, por servir otimismo à nação. Com o clima psicológico nacional oscilando entre o purgatório e o inferno, Bolsonaro preferiu conferir à população um ânimo positivo, de confiança. Vamos sair dessa, vamos sanar os enfermos, vamos resguardar nossas crianças e nossos idosos e vamos repor, gradualmente, normalidade às nossas vidas. Vamos trabalhar e produzir nosso sustento.
É um discurso que espantaria a crise, espantaria os urubus, espantaria quantos fizeram e ainda fazem volumosas apostas no caos porque precisam da hecatombe universal. Quem cria o caos não pode admitir que algum irresponsável atravanque o caminho para acabar com ele recitando nomes de remédios. O caos estava garantido e bem desenhadinho com borra de café no fundo da xícara, ora essa! Como identificou há poucas horas o prof. Alex Pipkin, num artigo que postei no meu blog, ninguém tem condições de testemunhar juramentado sobre onde está a verdade. Não há como saber e não creio que alguém possa apresentar evidência ou comprovar alguma hipótese tecnicamente aplicável ao perfil geográfico, climático e demográfico do Brasil. A própria existência de um ponto médio entre a crise médico-epidemiológica e a crise econômico-fiscal é de existência presumível, mas incerta. É a tese que levará Bolsonaro ao inferno ou ao paraíso.
Duas certezas, porém, estão servidas em dose satisfatória pelo partido da mídia, sem necessidade de prescrição, dúzias de vezes ao dia. Primeira, quem pretende transformar Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, o Congresso, o STF, em respeitáveis referências nacionais não convence ninguém. Está lelé e a mãe não sabe. Segunda, quem disser que o Presidente está se desestabilizando por conta própria, o que é verdade frequente, deduzindo daí que seus oponentes estejam a consolidar suas posições, não entendeu o ano de 2018, nem percebeu para onde convergem os mais consistentes anseios e rejeições dos eleitores brasileiros.
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
07/04/2020
O juiz Charles Bittencourt manteve a internação provisória de dois adolescentes que confessaram envolvimento na morte do jovem Kauê (16 anos) em emboscada levado a cabo em Porto Alegre, no dia 25 de março deste ano. Eram amigos.
Pelo que consegui colher de informação, meia dúzia de PECs que tratam da redução da maioridade penal, com foco na penalização dos crimes hediondos, encontram-se parados no Congresso por força dos mesmos artifícios retóricos. Nos últimos dois anos, conseguiram matar o assunto. O “humanismo” zarolho, de quem que só vê o bandido e desconsidera a vítima, entra em êxtase quando nossas ruas se enchem de criminosos. Agora, até um vírus serve para isso.
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"Reduzir a maioridade penal não vai acabar com a violência!", proclama o debatedor em tom veemente. Ninguém afirmou uma tolice dessas, mas o sujeito passa a detonar a frase que ele mesmo fez como se, assim, estivesse demolindo a proposta de redução da maioridade penal. Um criminoso de 16 anos, ou um “adolescente autor de ato infracional” (fazem misérias com o idioma da gente!) tem que ser preso sob regras rígidas e ser submetido a penas do Código Penal por uma série de razões. E acabar com a violência não é uma delas. Seja como for, essa é uma das bem conhecidas e nada honestas artimanhas empregadas em debates: atribuir à tese adversária argumentos que não foram empregados em seu favor, para dar a impressão de que ela é destruída quando tais argumentos são desmontados.
Outra artimanha é a de levar a tese adversária a um extremo jamais cogitado, tornando-a ridícula. Por exemplo: "Os que defendem a redução da maioridade penal logo estarão querendo reduzi-la novamente para 12 anos. Daqui a pouco estarão encarcerando bebês". E, assim, um rapagão de 17 anos, do tamanho de um guarda-roupa, estuprador e assassino, fica parecendo tão inocente quanto uma criança de colo.
Outra, ainda, envolve a apresentação, em favor da própria tese, de um argumento competente que com ela não se relaciona. A coisa fica assim: "Nossos cárceres são verdadeiras escolas do crime, que não reeducam". Esse argumento escamoteia dois fatos importantíssimos: 1º) a ressocialização é apenas uma (e sempre a mais improvável) dentre as várias causas do encarceramento de criminosos e 2º) o preso não entrou para a cadeia inocente e saiu corrompido. Foi fora da cadeia que ele se desencaminhou.
Por outro lado, a pena privativa de liberdade tem várias razões. A principal, obviamente, é a de separar do convívio social o indivíduo que demonstrou ser perigoso. A segunda é a expiação da culpa (fator que está sendo totalmente negligenciado no debate sobre o tema). Quem comete certos crimes paga por eles com a privação da liberdade. Ao sair da prisão, dirá que já pagou sua pena, ou seja, que já acertou as contas com a sociedade. A expiação da culpa é o único motivo, de resto, para que nos códigos penais do mundo inteiro as penas de prisão sejam proporcionais à gravidade dos delitos cometidos. A terceira razão da pena privativa de liberdade é o desestímulo ao crime (dimensão de eficácia incerta, sim, mas se as penas fossem iguais a zero a criminalidade, certamente, seria muito maior). Pois é a relativa impunidade assegurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que tem estimulado o uso de menores para a prática de muitos crimes.
O assunto é importante, bem se vê, mas pressupõe honestidade intelectual, porque a deliberação democrática fica comprometida quando ela se faz ausente.
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
05/04/2020
A pergunta lançada como um grito por Bento XVI ao visitar o campo de extermínio de Auschwitz em 2006 ecoa 14 anos mais tarde diante dessa versão hodierna da peste representada pelo Covid-19. Onde estava Deus quando permitiu o surgimento desse vírus que mata, enferma, esgota recursos materiais e financeiros, fecha igrejas, destrói empregos, joga bilhões de homens livres em prisão domiciliar? Lembro que a pergunta profundamente humana de Bento XVI foi estampada em todos os jornais e replicada em todos os idiomas. Causava um certo desconforto, uma espécie de cheque mate teológico aplicado às pessoas de fé. Até, claro, pararmos para pensar.
O Papa, qualquer Papa, é um ser humano sujeito às nossas mesmas angústias e inquietudes. Ele não fala com Deus todos os dias através do celular. Quem ainda não se interrogou sobre o silêncio de Deus? Quem, perante a dor, o sofrimento e a aflição, nunca clamou pela interferência direta do Altíssimo?
O paciente Jó, sofredor sempre fiel, nos fornece antigo exemplo bíblico desses brados da nossa débil natureza, que soam e ressoam através das gerações. A manifestação de Bento XVI, que ele mesmo chamou de grito da humanidade, foi humilde e reiterada expressão dessa mesma humanidade. Nem mesmo Jesus escapou a tão inevitável contingência: “Pai! Por que me abandonaste?”
Não conheço Auschwitz. Contudo, visitei o campo de concentração de Daschau e o memorial lá existente. Saímos, minha mulher e eu, com a impressão de havermos visitado um santuário onde a presença de Deus era quase palpável. E isso não se constituiu numa contradição. Ao contrário, aquele lugar de tantos padecimentos se converteu, de modo inevitável, em silencioso ambiente de reflexão e oração, no qual se percebe com nitidez o que acontece quando os homens, prescindindo do Senhor do bem, se bestializam e se convertem em senhores do mal.
É fácil imaginar, igualmente, a presença divina atuando nos incontáveis gestos de solidariedade que, por certo, ocorrem numa situação como aquela. Ativo no coração dos que o amam, ali agia o Deus de todas as vítimas, consolo dos que sofrem, esperança dos aflitos e destino final dos seus filhos. É claro que a nós pareceria mais proveitoso um Deus que atuasse como gerente supremo dos eventos humanos, intervindo para evitar quaisquer males, retificando a imprudência dos homens, proclamando verdades cotidianas em dizeres escritos com as nuvens do céu, fazendo o bem que não fazemos, a todos santificando por ação de seu querer e pela impossibilidade do erro e do pecado.
Nesse paraíso terrestre, nada seria como é e nós não seríamos como somos. Não haveria cruz, nem Cristo. Não haveria lágrimas, nem dor. Tampouco morte, ou vida. É o imenso respeito divino à nossa liberdade que configura a existência humana como tal e que nos concede o direito de bradar aos céus. No entanto, tão rapidamente quanto Deus nos ouve, ouve-nos nosso próprio coração. Sim, porque Deus estava ali, em Auschwitz, como estava em Daschau. Mas não havia lugar para ele no coração dos algozes.
Nesta quaresma das quarentenas, nesta semana que nos leva à Páscoa da Ressureição, aprendamos com as lições da história, da ciência e da prudência. Aprendamos com o que acontece quando o materialismo, o relativismo e os totalitarismos investem na concretização de seus projetos de poder. Eles jamais abandonam o tabuleiro das opções e seus males sempre se fazem sentir.
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
02/04/2020
O regime chinês é o mais genocida da história. No período anterior ao Grande Salto para Frente estimam-se em 20 milhões os vitimados pela execução sumária de opositores, contrarrevolucionários, burgueses, proprietários rurais, intelectuais “ocidentalizados”, religiosos, etc.. Entre 1959 e 1961, depois do que deveria ter sido o “grande salto”, outros 20 milhões pereceram de fome. Nos anos seguintes, um número talvez bem maior. São sucessivos crimes contra a humanidade dirigidos à própria população. Crimes hediondos, continuados, encobertos sob a poeira dos tempos por um regime que, em todas as suas experiências, prima pela capacidade de agir nas trevas e ocultar tudo que não lhe convém.
Após a morte de Mao Tse-Tung, houve uma luta por sua substituição ao cabo da qual, em 1979, o poder foi entregue a Deng Xiaoping que promoveu uma série de reformas econômicas cujos efeitos levariam a China a sentar-se entre as grandes economias do planeta.
Agora, um novo genocídio, em escala planetária. Centenas de milhares de pessoas deverão morrer em virtude do vício institucional dos governos comunistas de ocultar seus desacertos e se darem bem com esse procedimento. Quando, em Wuhan, o médico Li Wenliang advertiu seus colegas sobre as primeiras manifestações do referido vírus, imediatamente se tornou alvo da polícia e foi obrigado a desmentir-se... A ditadura mostrou seu poder e caráter. E assim se perderam semanas preciosas, ampliando-se o número de vítimas da pandemia.
Eduardo Bolsonaro, semanas depois, relatou o fato já sabido, ou seja, que o vírus surgira na China, e estabeleceu paralelismo entre a nova epidemia e o desastre de Chernobyl. Assim como o Covid-19 foi, de início, silenciado no comunismo chinês, o desastre nuclear de Chernobyl foi, de início, silenciado no comunismo soviético. E afirmou que “a liberdade seria a solução”. Desabaram, então, sobre ele as críticas da imprensa nacional, ocupadíssima em desgastar o presidente da República. Foram dias consecutivos com os noticiários e as “News” batendo no mesmo assunto, até que surgisse pauta mais interessante para espremer. Para a maior parte do atual jornalismo brasileiro o deputado havia faltado com o respeito ao “maior parceiro comercial do Brasil”. Agora me digam se isso não é frase que se pode esperar de agentes de polícia política? Centenas de milhares, talvez milhões de vidas, perdem significado quando o assunto é business...
Nesses mesmos dias, com a encenação em curso, Rodrigo Maia pegou carona na boleia da carroça publicitária aberta e desabou aos pés do embaixador chinês, implorando perdão em nome da Câmara dos Deputados. Que coisa mais ridícula!
No entanto, tudo é ainda muito mais grave e infinitamente mais perigoso, já se verá. O PCC, maior partido político da história, rico como jamais se viu igual, vem estendendo seu poder e influência sobre o mundo. A grande imprensa brasileira, diante de nossos olhos, sem nenhum constrangimento, se põe genuflexa perante a ditadura chinesa, aceita seus métodos, e entra no teatro do silêncio sobre temas desconfortáveis ao regime chinês. Com o jugo já preso ao pescoço, ela esgota, em Bolsonaro, sua combatividade e o uso que faz da liberdade de informação.
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
29/03/2020
Como podem os patos questionar a visão e o voo da águia? E como pode a águia descer das montanhas para molhar os pés nos charcos e açudes?
Fazia-me essa pergunta inúmeras vezes enquanto lia, em 2016, os originais do livro Bandidolatria e Democídio para escrever seu prefácio a convite dos doutores Leonardo Giardini de Souza e Diego Pessi. Ambos, ao longo da obra, percorrem com talento e rara habilidade os dois planos tão distantes.
Durante o primeiro governo petista no Rio Grande do Sul, tivemos um secretário de Segurança Pública cujas práticas se alinhavam com teses sociológicas e filosóficas sobre as quais discorria com enorme domínio e fluidez. O problema estava em que quanto mais se elevava, no jurista, a paixão pela ideia, mais os pés do secretário de Segurança afundavam no piso dos fatos, ali onde a criminalidade faz suas vítimas e onde atuam os que a devem enfrentar. Foi um desastre.
Todo militar, mesmo que jamais tenha sido combatente, sabe que crescem as possibilidades de vitória de quem consegue atrair o inimigo para um terreno onde ele esteja menos preparado. Graças a essa estratégia, aliás, muitas guerrilhas resistem, por anos a fio, a exércitos poderosos. O mesmo vale para combates verbais, especialmente para este de que aqui trato. Os filósofos do garantismo penal não resistem ao primeiro choque de realidade.
Somente uma imensa afeição ao papel revolucionário da violência criminosa desconhece o fato de que quando o Estado não faz justiça com as mãos que a sociedade lhe deu, esta passa a fazer justiça com as próprias mãos. E se estabelece a barbárie. No lirismo garantista, contudo, o réu é a primeira vítima, é alguém de quem não se pode exigir outra conduta. Vêm daí as propostas de desencarceramento (vitoriosas na decisão contra a prisão após condenação em segunda instância), de abertura das prisões em virtude do coronavírus, de tratar como presumivelmente inocentes réus confessos e presos em flagrante, e as insistentes afirmações de que “No Brasil se prende demais”, apesar de o crime contra a vida e o patrimônio correrem soltos nas ruas, aos olhos de todos.
Vale à pena prestar atenção, nesses casos, ao uso e ao abuso da abordagem filosófica e sociológica como tática para encobrir a nudez da realidade com a folhinha de parreira da ideia. E quando alguém busca trazer o debate para o pó e o barro dos fatos, esses juristas (sempre da mesma banda ideológica) com estudado sarcasmo, cuidam de transformar tal conduta num ato de desrespeito ao elevado plano intelectual em que elaboram suas reflexões. Como podem os patos questionar a visão e o vôo da águia? E como pode a águia descer das montanhas para molhar os pés nos charcos e açudes?
No entanto, assim como os patos conhecem o açude melhor do que a águia e a águia conhece a montanha melhor do que os patos, não pode o pato policiar a montanha nem a águia ser xerife do açude.
Descartes jamais diria “sou assaltado, logo existo”. Se filosofar fosse indispensável à segurança pública, todos, do coronel ao soldado e do delegado ao escrivão, deveriam se dedicar a tão elevados exercícios do espírito e da mente. E, nesse caso, quem iria atender o 190?
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
28/03/2020
Durante muitos séculos, embrenhar-se na direção do Oriente era, para os europeus, uma aventura cercada de tantos temores quanto lançar-se ao Oceano Atlântico no prelúdio das Grandes Navegações. Fantasias, lendas, superstições. Caberia a Marco Polo, no último quarto do século XIII promover, meio a contragosto das autoridades venezianas, a aproximação com o gigantesco país asiático.
Imensa maioria dos leitores destas linhas ainda não era nascida quando a China, em 1949, após longa guerra civil, mergulhou na escuridão, tomada pelas mãos tirânicas de Mao Tsé-Tung (ou Zedong) e do Partido Comunista Chinês. A partir de 1976, com a morte de Mao, o regime girou para uma economia capitalista, sem que o partido abrisse mão da condução totalitária do país. Isso permite, a qualquer juízo prudente, identificar a China como um Estado nacional perigoso. Dele não se esperam virtudes, nem valores de nosso apreço. É bom vender para eles, é bom comprar deles, mas evitem-se as más companhias. O comunismo chinês, embora “podre de rico”, não é menos apaixonado pelo poder, nem menos genocida do que os demais experimentos análogos. Apenas é mais esperto e errou menos, dentro do grande erro que é o comunismo. Hoje transmite sua experiência para o Vietnã e para Cuba: Partido Comunista como partido único, capitalismo e ditadura.
Por isso, não é demasiado lembrar os séculos durante os quais o Oriente, envolto em mistério, suscitava temores. Nada a ver com os muitos povos que compõem a população chinesa, mas tudo a ver com o poder político local e o poder financeiro internacionalmente exercido pelo regime que controla o país.
Se o capitalismo fez bem à economia e vai tirando da pobreza centenas de milhões de chineses, a ditadura do PCC ainda não ouviu falar em liberdade de opinião e transparência das instituições. Ao contrário, divulgar o surgimento do coronavírus transformou num inferno a vida do Dr. Li Wenliang.
Não têm a menor credibilidade os números que o governo chinês divulga sobre os efeitos do novo vírus em sua população. O que há algumas semanas era identificado como teoria da conspiração hoje quase dá para autenticar em cartório. Enquanto os disparates estatísticos chineses berram aos nossos ouvidos e sob nossos olhos, a imprensa brasileira não lhes dedica uma notinha de três linhas e só falam no “grande parceiro comercial do Brasil”. Ou seja, é tudo business? Mas quando Bolsonaro expressa sua angústia com a paralisia das atividades é acusado de estar preocupado com a economia e não com as vidas humanas. E eu devo dormir com um barulho desses?
Ontem (27/03), aqui em Porto Alegre, numa imensa carreata com mais de cinco quilômetros, empresários, autônomos, comerciantes e prestadores de serviços clamavam pela reabertura de seus negócios. Eram pessoas responsáveis, chefes de família, com idosos de sua afeição, unidas para a defesa do direito de proverem seu sustento. Também ontem, João Dória, “o rebelde” almofadinha, a mais estampada antítese de Bolsonaro, novo queridinho da mídia nacional, após armar um circo contra o presidente da República, conclamou a poderosa indústria paulista a se manter ativa. Business!
A grande imprensa brasileira assumiu-se com partido político de oposição. Dedica-se exclusivamente a criticar o governo, exigindo que ele faça tudo para todos. E que faça já. É a coisa mais parecida com o PT que já se criou no Brasil.
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Percival Puggina
22/03/2020
Nesta pequena cápsula que é meu gabinete de trabalho, onde quase tudo está ao alcance da mão, tenho me lembrado de Howard Hughes. Nos anos 60, encantava-me a pluralidade de seus talentos. Engenheiro, aviador, industrialista, diretor de cinema, riquíssimo, namorava as mais belas divas de Hollywood e afastou-se de tudo e de todas, internando-se em sua própria casa num misto de misantropia, fobia de contaminação e drogadição.
Encarcerou-se com grades que seus fantasmas impunham. Renunciou à liberdade que, por décadas, lhe proporcionou uma vida criativa e, sob muitos aspectos, extraordinária.
Diferentemente, nestes dias, eu e minha mulher, a exemplo de tantos em todo o mundo, nos tornamos prisioneiros. Não de fobias, mas de invisíveis ameaças reais e letais. Renunciamos à liberdade um dia antes de essa renúncia nos ser imposta pelas autoridades locais e nacionais. Ficou entendido, para nós, o sentido social, apropriadamente social, do esvaziamento das ruas. Quem não consegue entender o significado do bem comum, tem, agora, uma boa oportunidade de esclarecimento mediante o desenho dos fatos.
É preciso tirar as pernas do vírus. Ele caminha com nossas pernas. Voa com nossas asas metálicas.
Está mudando muitas vidas e não apenas as rotinas dessas vidas a invulgar experiência de protagonizar um desses filmes cujo script cria suspense em torno da luta contra a exterminação da humanidade. Reza-se nas redes sociais (quem diria?), reza-se em família. Lê-se como raramente sobra tempo para ler. E se tem uma erupção de sentimentos profundamente humanos proporcionados pelo desencarceramento do tempo. Entre eles, de um lado, o medo, o egoísmo, a desesperança rumo ao desespero, a mudança emocional para o reino da fantasia; de outro, a solidariedade, a compaixão, a esperança, a busca do transcendente e a necessidade de atribuir sentido a esse novo cotidiano.
Em Viena, no centro da Graben, um monumento domina a paisagem. É a Pestsäule, coluna comemorativa do fim da peste que atacou a cidade no final do século XVII. Obra coletiva de diversos escultores e pintores, o monumento barroco resulta confuso pela pluralidade de mensagens a ver, sentir e interpretar. Mas é essa característica que impõe, a quem o contempla, prolongada análise de seus elementos. Vê-se ali a celebração artística do fim do flagelo, o ódio à peste e o gratificado louvor à Santíssima Trindade.
Nunca pensei que, um dia, aquele monumento fosse ganhar atualidade e se fazer ensinamento na nossa vida.
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* Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.