Em março de 1960 eu era um adolescente interiorano, recém chegado a Porto Alegre, iniciando o Curso Científico no tradicional Julinho, como era conhecido o Colégio Estadual Julio de Castilhos. Nunca vira uma escola com tanta gente, tamanha efervescência política e professores tão exigentes. Mas o que importa aqui é a política. Até sobre as provincianas disputas estudantis daqueles anos incidiam os reflexos da Guerra Fria. Os comunistas do Julinho - e havia muitos - cantavam uma espécie de grito de guerra em que se anunciava que a vil reação vai virar sabão. Havia estudantes profissionais, com idade para serem pais dos colegas, incumbidos, pelo Partidão, de angariar militantes para a prenunciada cadeia produtiva de sebos e sabões que usaria como matéria-prima a nós, os adolescentes da direita reacionária. Ainda hoje, quando encontro por aí alguns desses camaradas, me retornam à mente suas desajeitadas figuras juvenis cantando ameaçadores refrões pelos corredores do colégio.
Posteriormente, na Faculdade de Arquitetura, testemunhei o upgrade da insanidade ideológica. Professores expurgados, colegas que desapareciam para, meses depois, reaparecer no Chile ou em algum lugar da Europa. Aquilo mexeu comigo. Como era contra radicalismos e violências suscitei malquerenças de ambas as trincheiras. Protestei contra o expurgo de professores. Fui fichado no DOPS. Reinava a desarmonia nas turmas, construíam-se sólidas inimizades e havia um mal-estar permanente nas salas de aula e na política estudantil. O país inteiro, aliás, não teve mais normalidade institucional até a eleição de Tancredo Neves. Sequestravam-se de diplomatas. Colegas envolveram-se numa ação fracassada contra o cônsul norte-americano em Porto Alegre. Bombas explodiam em atos terroristas. Assaltos a bancos, carros fortes, joalherias e supermercados eram ações expropriatórias para atender a crescente demanda da revolução comunista por recursos financeiros. A esquerda dava uma de Fidel e Che - os Batman e Robin da luta armada latino-americana. Sequestrava aeronaves, explodia quartéis, roubava armamentos. E repressão, claro. Como não?
Por volta de 1985, a abertura estava concluída. Haviam retornado os que saíram do país. Foram criados novos partidos. Completara-se a anistia de 1979 com o perdão aos que haviam cometido crimes de sangue. O passado não era consertável, mas o futuro sim.
Contamos, hoje, mais de um quarto de século de estabilidade num ambiente político marcado, até aqui, por muito menos ódios e ressentimentos. No próximo pleito presidencial, os adversários do regime instalado em 1964 terão exercido o poder por duas décadas consecutivas. Fernando Henrique esteve no exílio. Lula tinha sido líder sindical, passou uns dias na cadeia e fora afastado da presidência do seu sindicato. Em 2010 elegeu-se uma companheira em armas, como a ela se referiu o bem informado José Dirceu quando lhe passou a chefia da Casa Civil. Vinte anos.
Como podem, agora, falar em Comissão da Verdade para pacificar o país e completar a redemocratização? Nada desmente mais essa farsa revisionista e revanchista do que o estresse político causado nas últimas semanas por sucessivos episódios. Vivem eles a nostalgia dos ideais revolucionários que se corromperam no poder. Foram-se as utopias e sucumbiu a reputação. É preciso, agora, posar como flagelados de uma guerra santa, como heróis e mártires de uma ingente luta pela democracia. É preciso suscitar ódios para recuperar o amor - ainda que seja, apenas, o amor próprio.
Falsários! Com a dócil e emasculada aquiescência dos herdeiros do MDB, mais interessados em gravitar perto das prateleiras do almoxarifado do poder, tomam nas impróprias mãos uma bandeira democrática que nunca ergueram, fosse para a defender a democracia, como alegava fazer a ARENA, fosse para a restaurar enquanto esteve perdida. Em momento algum daqueles anos loucos usaram a palavra democracia de um modo que não fosse para a desqualificar como serva dos interesses da burguesia. Quando sequestraram o embaixador norte-americano Burke Elbrick, exigiram e conseguiram que fosse lido um manifesto em rede nacional. Com uma oportunidade de ouro dessas nas mãos, falaram em democracia? Não! Nem de passagem. Falaram em novos assaltos, sequestros, justiçamentos e extensão da guerrilha ao campo. Os panfletos que deixavam nos locais de suas ações tampouco usavam essa palavra. Os nomes das dezenas de organizações que atuaram no período ostentavam os vocábulos marxista, leninista, maoísta, revolucionário, comunista, socialista, proletário. Mas a palavra democrático jamais aparece! Não há um D em qualquer das siglas. Então, para alcançarem o intuito - bem stalinista, por sinal - de reescrever a história será preciso passar a borracha em muita coisa redigida por eles mesmos.
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* Percival Puggina (67) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões.