O pequeno ensaio a seguir, dividido em quatro partes, foi elaborado pelo historiador Carlos I.S. Azambuja, colaborador deste site, com base no livro "Por dentro do Jihad", de autoria de Omar Nasiri, editado pela Record.
Carlos I. S. Azambuja
* Historiador
PARTE 1
Entre 1994 e 2000, Omar Nasiri trabalhou como agente secreto para os principais serviços externos de Inteligência da Europa - incluindo a DGSE (Direction Genérale de la Securité Exterieure), da França, e o MI5 e MI6, da Grã-bretanha. Do submundo das células islâmicas da Bélgica até os campos de treinamento do Afeganistão e as mesquitas radicais de Londres, ele arriscou a vida para derrotar a emergente rede global que o Ocidente viria a conhecer como Al-Qaeda.
Agora, pela primeira vez, em um livro editado pela Editora Record - "Por dentro do Jihad" - (1), Nasiri compartilha a história de sua vida - precariamente equilibrada entre o mundo dos jihadistas islâmicos e dos espiões que os perseguem. Como árabe e muçulmano, ele pôde infiltrar-se nos rigidamente controlados campos de treinamento afegãos, onde encontrou homens que mais tarde se tornariam os terroristas mais procurados da Terra: Ibn al-Sheikh al-Libi, Abu Zubayda e Abukhabab al-Masri. Enviado de volta à Europa, Nasiri tornou-se um intermediário de mensagens trocas entre o recrutador-chefe da Al-Qaeda no Paquistão e o clérigo radical de Londres, Abu Qatada.
Em suma, "Por dentro do Jihad" oferece uma perspectiva inteiramente original da batalha que se desenvolve contra a Al-Qaeda. Omar Nasiri, nome fictício, nasceu no Marrocos e atualmente vive na Alemanha.
Eis um trecho de "Por Dentro do Jihad":
"Em algumas noites (no Afeganistão) nós praticávamos tajwid (2) em outras estudávamos o Corão e a hadith, o conjunto de tradições estabelecidas pelas palavras e ações do profeta Maomé (...).
Nós aprendíamos muito todas as noites nessas aulas mas, acima de tudo, aprendíamos sobre as leis do jihad. Existem mais de 150 versos no Corão sobre o jihad e centenas de referências na hadith. (...) Foi somente quando cheguei a Khaldan (3) que comecei a aprender o que o Corão tinha realmente a dizer sobre o jihad.
Naturalmente, há muitos tipos diferentes de jihad. Existe o jihad interior, que é algo que todos os verdadeiros muçulmanos praticam constantemente. Existe o jihad da língua, que tem todos os tipos de forma. Pode significar o proselitismo, como eu vira no Tabligh (4). Ou pode significar manifestar-se politicamente, através de sermões ou protestos ou, até mesmo, de propaganda como o Al Ansar (5). Existe o jihad realizado por meio de ações, tais como fazer a peregrinação hajj (6) até Meca. Ou mesmo dando dinheiro para apoiar o jihad supremo, a kutila fi sabilillah. A guerra santa.
Nós falávamos quase que exclusivamente sobre esta última forma de jihad. Nós aprendemos todas as regras de combate. A força deve ser evitada, a menos que seja absolutamente necessária e, mesmo assim, deve ser empregada somente em proporção ao poderio do inimigo.
Mas, uma vez que a força torna-se necessária, ninguém pode fugir do seu dever. Se uma mulher do outro lado do mundo é estuprada ou tirada de sua família, todos os muçulmanos devem unir-se para lutar até que a injustiça seja corrigida. É uma exigência de Deus.
Antes de lutar, um irmão deve preparar-se. Primeiro, e acima de tudo, ele deve se preparar espiritualmente. Com fé, um exército pode derrotar um oponente dez vezes maior.
Outros tipos de preparação também são vitais. Um mujahid (7) deve estar moralmente preparado; ele deve evitar todos os pecados e purificar-se diante de Deus. Ele também deve preparar seu corpo e fortalecê-lo o máximo possível. E todo irmão deve aprender tudo o que conseguir sobre ciência e tecnologia, para que sua superioridade sobre o inimigo seja total.
Uma vez em combate, um mujahid deve obedecer leis muito rígidas. São proibidos o massacre de inocentes, a matança indiscriminada, a morte de mulheres e crianças, a mutilação dos cadáveres dos inimigos e a destruição de escolas, igrejas, fontes de água ou, até mesmo, campos e rebanhos. Ninguém deve ser assassinado enquanto está rezando, independentemente de as orações serem muçulmanas, cristãs, judaicas ou quaisquer outras.
Um mujahid deve lutar somente por Deus, não por ganhos materiais, não por política. Ele luta com a razão a seu lado e luta para servir à criação de Deus. Quanto mais profunda for sua fé em Deus, maior será sua capacidade de honrar a obra de Deus.
Os verdadeiros fiéis são aqueles cujas vidas Deus obteve em troca da promessa do paraíso. Eles não devem fugir da batalha, ainda que estejam diante da morte certa. Um homem que dá as costas aos infiéis e corre, diz o Corão, sujeitou-se, de fato, à severa punição de Deus e seu refúgio final é o fogo; quão abomináveis são o retorno e a destinação que o aguardam?
Fiquei surpreso ao aprender como são tão específicas as leis do jihad, muito mais do que quaisquer convenções sobre direitos humanos sonhadas no Ocidente. Na verdade, nossos professores repetiam para nós incontáveis vezes que esses princípios são os que diferenciam muçulmanos de não-muçulmanos. Os infiéis são aqueles que matam indiscriminadamente, sem lei. Eles destroem cidades inteiras, até mesmo populações inteiras. Eles bombardeiam igrejas, mesquitas e escolas.
Nós aprendemos sobre os ingleses e os franceses, que conquistaram povos em todo o mundo e roubaram as terras para suas colônias. Nós aprendemos sobre Hitler e seus campos de concentração. Aprendemos como os americanos tinham massacrado coreanos e vietnamitas. Aprendemos sobre Hiroshima, Nagasaki e os bombardeios em massa no final da Segunda Guerra Mundial. E, é claro, aprendemos sobre os horrores que os israelenses perpetraram na Palestina, mas isso todos nós já sabíamos. Os infiéis massacravam, bombardeavam e destruíam tudo em seu caminho. Eles eram uns animais.
Naturalmente, aprender tudo isso me faz pensar de novo a respeito do que eu sabia sobre a guerra na Argélia. O GIA fizera muitas das coisas proibidas na lei islâmica. Eles haviam matado civis, disparando até mesmo contra escolas inteiras. Mas, com o tempo, aprendi algo sobre as leis do jihad: há espaço. Há espaço dentro dos limites da lei para todos os tipos de interpretação.
Há espaço, particularmente na hora de definir quem são os inimigos e quem são os inocentes. Parece simples, é claro - os inimigos são aqueles com as armas. Entetanto, de acordo com as leis do jihad, a definição de "inimigo" pode ser expandida para incluir toda a cadeia de suprimentos: quem quer que apóie o inimigo com dinheiro ou armas, ou mesmo com comida ou água; até mesmo aqueles que dão apoio moral - jornalistas, por exemplo, que escrevem em defesa da causa do inimigo. Ms até onde, me perguntei, a cadeia de suprimentos vai? Até aquele que vota em um regime inimigo? E quanto àqueles que não escolhem um lado? Até onde vai?
Mulheres geralmente são consideradas inocentes; mas elas também podem ser o inimigo. Se uma mulher reza a Deus para proteger o marido, então ela não é um inimigo. Mas se reza a Deus para matar um muçulmano, então ela é. Com as crianças é parecido. Um menino pode ser perdoado por suas orações; ele é jovem demais para ser responsável por isso. Mas se ele leva comida, ou até mesmo uma mensagem, para um combatente inimigo, então se torna um inimigo.
Acabei compreendendo como, na mente de um extremista, quase todo o mundo pode tornar-se um inimigo".
* * *
Notas:
(1) - Jihad - conceito essencial da religião islâmica. Pode ser entendido como uma luta de busca e conquista da fé perfeita. Ao contrário do que muitos pensam, jihad não significa "guerra santa"
(2) - Tajwid - Corão cantado
(3) - Kaldhan - um dos campos de treinamento no Afeganistão
(4) - Tabligh - grupo fundamentalista
(5) - Al Ansar - jornal do grupo radical muçulmano GIA, da Argélia
(6) - Hajj - Denominação dada pelos muçulmanos à peregrinação à cidade santa de Meca
(7) - Mujahid - muçulmano envolvido no que ele considera ser uma jihad
PARTE 2
Eis mais um trecho de "Por Dentro do Jihad":
“Em Durunta (um dos centros de treinamento de guerrilheiros internacionalistas no Afeganistão), começamos o treinamento com explosivos. Havia uma espécie de sala de aula em um dos alojamentos e Assad Allah escrevia fórmulas no quadro negro ou fazia demonstrações em uma grande mesa. Antes de mais nada, ele nos ensinou procedimentos de segurança. Passamos dias nisso, memorizando as temperaturas e umidades adequadas para a estocagem de diferentes componentes e aprendendo sobre os vários equipamentos de segurança – luvas, máscaras contra gazes, óculos – a serem usados com inúmeros produtos químicos e explosivos, Assad Allah também ensinou o que fazer se alguma experiência desse errado.
Ele não se cansava de dar o mesmo aviso:
Vocês têm um visto e devem trazê-lo todos os dias à aula. Mas eu posso tirar o visto a qualquer momento. Se vocês violarem os procedimentos de segurança, eu os mandarei para casa imediatamente. Nós sabíamos que ele não estava brincando.
Nós ficávamos no laboratório ou na sala de aula todos os dias pro cerca de 10 horas. Só parávamos para comer e fazer a salat (1). Trabalhávamos com química e matemática bastante complicadas e tínhamos que ter extrema concentração. Aprendemos a fazer todos os explosivos a partir do zero, Essa era a idéia: para onde quer que fôssemos, nós não teríamos acesso a explosivos de categoria militar ou material industrial. Nós teríamos que nos virar com o que conseguíssemos encontrar.
Aprendemos a fazer as mais diferentes coisas: pólvora, RDX, tetril, TNT, dinamite, C2, C3, C4, Semtex, nitroglicerina e daí por diante. Aprendemos a fazer cada um com produtos que poderíamos encontrar em lojas ou roubar de laboratórios escolares. Xarope de milho, tintura para cabelo, limões, lápis, açucar, café, sal de Epsom, naftalina, baterias, fósforos, tintas, produtos de limpeza, água sanitária, fluido de freios, fertilizantes, areia. Cada um desses contém componentes de diferentes tipos de materiais explosivos. Aprendemos como decompor esses produtos e como transformá-los em bombas. Eu até mesmo aprendi como fazer uma bomba com a minha própria urina.
Nós testávamos os explosivos perto de algumas ruínas na extremidade do campo. Quase sempre usávamos quantidades muito pequenas, mas medíamos a velocidade da explosão para calcular quais seriam os efeitos com cargas maiores. Falamos como e quando usar diferentes tipos de explosivos. Aprendemos quais materiais deveríamos utilizar para explodir um trem, quanto de explosivos precisaríamos e como posicioná-lo nos trilhos para obter o máximo de impacto. Aprendemos a explodir carros e prédios.
Falávamos bastante sobre aviões. Estes eram difíceis de explodir devido à segurança nos aeroportos. Ficamos sabendo que Semtex era o mais fácil de levar à bordo, por ser quase impossível de detectar. Mas o Semtex era difícil de se obter, Assad Allah lembrava-nos. Também aprendemos sobre explosivos líquidos.
Fazíamos anotações sobre tudo nos cadernos pequenos que ganhamos no campo. Mas, no fim, eles esperavam que soubéssemos tudo de cor. Quando chegasse a hora de usar os explosivos, nós não teríamos um manual diante de nós. Assim, passávamos pelas fórmulas infindáveis vezes até conseguirmos repeti-las durante o sono. E Assad Allah nos submetia a provas todos os domingos, para se assegurar que havíamos aprendido.
Certa ocasião, Assad Allah falou sobre um incidente que ocorrera durante seu próprio treinamento em explosivos. O seu grupo estava aprendendo a fazer nitroglicerina e um dos irmãos não prestava atenção. Ele deixou os materiais esquentaram mais do que o permitido. Felizmente, o instrutor viu o termômetro bem a tempo de evitar que os materiais explodissem. Havia mais 7 pessoas no laboratório e todas poderiam ter morrido.
- Vai explodir! – ele gritou para o irmão.
Havia uma pia cheia de gelo bem ao lado do recruta e ele deveria ter jogado o material ali para esfriar. Mas, em vez disso, ele correu para a porta com a bomba-relógio líquida nas mãos. Assim que saiu, a mistura explodiu. A explosão arrancou os dois braços na hora e destruiu um dos olhos.
- O irmão sobreviveu? – perguntei.
- Sim – Assad Allah responde – Ele vive agora em Londres e prega nas mesquitas. Seu nome é Abu Hamza.
Na época eu não tinha idéia de quem era esse homem e nem a importância que ele viria a ter em minha vida.
Um dia, Abdul Kerim e eu entramos em uma mesquita e vimos alguém pendurado nas vigas pelos tornozelos. Seus olhos estavam vendados e ele gritava. Havia vários irmãos parados ao redor. Eles gritavam com o prisioneiro e um apontava uma arma para a sua cabeça.
Senti calafrios. É isso que fazem com espiões, pensei. Isso é o que vai acontecer comigo, se eu for pego. Meu estômago revirou, mas não tive muito tempo para pensar nisso porque Abu Mousa veio por trás e nos tirou da mesquita.
- O que está acontecendo? – perguntei.
- Eles são do outro campo – falou. – Um dos irmãos vai numa missão. Os outros estão preparando-o para o interrogatório, no caso de ser pego. Não sabemos o que ele vai dizer. Ele pode revelar alguma coisa sobre sua missão e vocês não devem saber nada sobre ela..
Ele deve ter percebido nossa decepção e, logo depois, passou a ler um livro, em voz alta, escrito em árabe, sobre interrogatórios. Desde as primeiras frases o livro era fascinante, e incrivelmente detalhado. Começava listando os diferentes estágios de um interrogatório: da prisão, passando pelas perguntas iniciais, até as ameaças e a tortura. E, aí, vinha a série de todas as diferentes coisas que os interrogadores poderiam fazer: pendurá-lo de cabeça para baixo em sua cela, espancá-lo com as mãos, cassetetes ou fios elétricos, deixá-lo nu por vários dias, arrancar as unhas, queimar a pele com cigarros ou fogo, atacá-lo com cães, acertá-lo na virilha ou dar choques nos genitais. A lista não tinha fim e Abu Mousa disse que todas essas técnicas haviam sido empregadas em irmãos em diferentes países.
A primeira lição era simples: um mujahid (2) deve guardar tudo para si mesmo. A melhor maneira de impedir a revelação de segredos era, antes de mais nada, não os ter. Percebi que era por isso que, desde o primeiro dia, nós recebemos ordens de nunca falar com outros sobre nossa vida fora dos campos. Não era apenas porque tinham medo de espiões. Era porque queriam se assegurar de que nenhum dos irmãos pudesse revelar muita coisa se cedesse sob pressão.
Mas a fé, e não o segredo, era, de longe, a arma mais importante à disposição do mujahid. Um verdadeiro mujahid pode suportar qualquer coisa se estiver sofrendo por Deus. Ele deve se preparar para o interrogatório e a tortura do mesmo modo que se prepara para qualquer outro tipo de batalha. Abu Mousa foi bastante claro quanto a isso: o interrogatório era uma espécie de guerra psicológica. E assim, como na guerra de verdade, não havia como um irmão pudesse perder. Ou ele derrotava o inimigo ou morria como um mártir.
for capturado, o irmão não deve, jamais, ceder qualquer informação e deve compreender que nenhuma vantagem pode ser conseguida assim. Somente levaria a mais tortura, porque os interrogadores perceberiam que o prisioneiro teria segredos para revelar. Mas os interrogadores jamais o matariam, porque não teria utilidade morto.
Como explicado por Abu Mousa, o interrogatório era uma grande oportunidade para um irmão. Ele poderia aprender mais sobre o inimigo e disseminar contra-informação que ajudasse seu grupo a atingir o objetivo. Esse tipo de manipulação exige habilidade e os irmãos devem praticar isso, assim como treinam para o uso de uma arma. Ele deve aprender a fazer os interrogadores falarem. Quanto mais durar o interrogatório, mais informações os interrogadores revelarão sobre o que sabem e sobre sua estratégia. O irmão pode usar essas informações para delinear suas próprias respostas, para dizer ao inimigo mentiras que pareçam verdades. Para um mujahid, o contra-interrogatório é apenas mais uma batalha tática.
Muitos anos depois eu pensaria novamente nessa lição, quando comecei a aprender mais sobre Ibn al-Sheikh al-Libi e seu papel dentro do que veio a ser conhecido por al-Qaeda. Ibn Shekh continuou a dirigir campos de treinamento no Afeganistão durante os anos 1990 e era próximo a bin-Laden. Ele foi capturado logo após a invasão dos americanos ao Afeganistão depois dos ataques de 11 de setembro, sendo levado de avião para o Egito, onde foi torturado pela CIA. Lá, ele disse aos interrogadores que Saddam Hussein dera à al-Qaeda informações sobre a confecção de armas químicas. Era às informações de Ibn Shekh que George W. Bush e Collin Powell se referiam quando disseram ter provas de que Saddam Hussein tinha conexões com a al-Qaeda. Eles usaram o que Ibn Sheikh lhes contara para justificar a invasão do Iraque.
Mas tarde Ibn Shekh disse que a historia a respeito de Saddam Hussein não era verdadeira. Na verdade, a CIA sabia que a história de Ibn Shekh não era confiável bem antes de Collin Powell se referir a ela em seu famoso discurso na ONU. Mas, quando esse fato emergiu, já não tinha mais importância. A América já estava em guerra.
Muitos dizem que Ibn Shekh mentiu aos captores por desespero, porque estava sendo torturado brutalmente. Eu sei que isso não é verdade. Ela havia sido preparado para interrogatórios, do mesmo modo que o irmão da mesquita estava se preparando. Ele sabia o que fazer.
Não. Ibn Sheikh não cedeu à pressão da tortura. Ele manipulou seus interrogadores com a mesma habilidade com que empunhava sua arma. Ele sabia o que seus interrogadores queriam e ficou contente em dar-lhes. Ele queria ver Saddam derrubado ainda mais do que os americanos. Como ele nos disse em Khaldan, o Iraque era o próximo grande jihad.
Em algum lugar, numa câmara de tortura secreta. Ibn Sheikh venceu sua batalha”.
* * *
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(1) Salat ou Salah (árabe:???? ) refere-se às cinco orações rituais que cada muçulmano deve realizar diariamente voltado para Meca. É um dos Cinco Pilares do Islão (arkan al-Islam). Em outras línguas estas orações são chamadas de Namaz.
(2) Mujahid - muçulmano envolvido no que ele considera ser uma jihad
PARTE 3
Os ataques de 11 de setembro de 2001 não vieram do nada. Durante os anos 1990, uma série de movimentos islâmicos violentos começou a se congregar, desviando seu foco dos conflitos locais, em seus países, para o “inimigo distante” dos EUA e do Ocidente. A organização emergente ficaria conhecida como Al-Qaeda. O relato de Omar Nasiri, autor de Por Dentro do Jihad apresenta uma percepção particular desse período crucial que parece pouco compreendido. Sua história é única, especialmente porque ele fornece a perspectiva incomum de alguém que se infiltrou nessas redes terroristas.
A noção freqüentemente repetida é a de que a derrota do terrorismo exige um bom serviço de Inteligência e a coleta de dados de Inteligência exige indivíduos dispostos a arriscar suas vidas para se transformarem em espiões, E suas histórias raramente são contadas.
Esse foi o início da introdução ao livro de Omar Nasiri, escrita em setembro de 2006 por Gordon Corera, correspondente da BBC para Assuntos de Segurança.Este texto é um resumo do que escreveu Gordon Corera.
Tendo passado mais de sete anos trabalhando para os Serviços de Inteligência franceses, britânicos e alemães, Nasisi apresenta a visão de quem está por dentro de como essas agências funcionam e seu relato de reuniões, conversas e técnicas de espionagem dos vários serviços é de um raro detalhamento.
Mas o que fica claro de seu relato é que a rede emergente era muito mais organizada e determinada do se supunha. Os campos de treinamento afegãos foram a incubadora da atual ameaça terrorista, e Nasiri oferece o quadro mais detalhado até agora da vida dentro desses campos – um quadro bem mais rico e preocupante do que qualquer outro já visto (1)
Embora nascido no Marrocos, os argelinos desempenham um papel central no relato de Nasisi, já que eles constituíam o núcleo da rede terrorista islâmica na Europa antes do 11 de setembro. A Argélia mergulhou em uma sangrenta guerra civil após o Exército ter cancelado as eleições de janeiro de 1992 para impedir que a Frente Islâmica de Salvação (FIS) conquistasse o poder. A violência eclodiu e um conjunto de grupos insurgentes apareceu. O mais violento era o Grupo Islâmico Armado (GIA). Acredita-se que até 3 mil argelinos tenham combatido os soviéticos no Afeganistão nos anos 1980 e a Argélia foi o primeiro país a sentir o impacto do retorno dos veteranos da guerra afegã.
O GIA era liderado por centenas de homens endurecidos pela guerra que voltaram radicalizados e dispostos a empregar táticas cada vez mais brutais. O GIA atraiu o apoio de redes dentro das comunidades de imigrantes na Europa. A princípio essas redes de apoio lidavam principalmente com propaganda, mas logo passaram a oferecer dinheiro, auxílio logístico, como passaportes falsos e, por fim, armas ao GIA.
Quando regressou à Bélgica em 1994, Nasiri descobriu que a casa de sua mãe havia se tornado um importante centro de operações do GIA. O boletim informativo Al Ansar era feito e distribuído ali. Ele emergiu como a publicação oficial do GIA, embora com o passar do tempo artigos de outras fontes começassem a ser divulgados, inclusive de outras organizações islâmicas, como o Grupo Combatente Islâmico líbio, grupos
marroquinos e grupos egípcios ligados a Aiman al-Zawahiri. O Al Ansar foi o pioneiro da união de redes militantes islâmicas nacionais em um movimento global e seus textos eram um alerta às autoridades do que vinha pela frente.
Não demorou muito para que o sangrento conflito na Argélia começasse a se alastrar para a Europa. A França, o antigo senhor colonial da Argélia, na visão dos jihadistas, havia apoiado o golpe e, desse modo, tornou-se um alvo. A primeira ilustração dramática da ameaça surgiu quando um grupo de terroristas do GIA dominou um jato da Air-France na pista do aeroporto de Argel em 24 de dezembro de 1994.
Em março de 1995 uma série de buscas foi iniciada pelas autoridades belgas e, durante uma busca em um veículo foi encontrado um pacote contendo um manual de treinamento terrorista de 8 mil páginas, cujo frontispício o dedicava a Bin Laden. O manual revelou um verdadeiro tesouro de informações e uma das primeiras indicações da extensão da rede e do papel de Bin Laden em suas operações. Isso foi confirmado poucos meses depois, no verão de 1995, quando uma onda de atentados a bomba atingiu a França, inclusive o metrô de Paris.
Uma corrente de pensamento sustenta que o GIA desde o começo estava tomado por espiões do serviço secreto argelino. E mais, que estes incluíam agentes provocadores que, por volta de 1995, estavam deliberadamente direcionando a campanha de violência para a França, para tentar atrair Paris para o conflito, opondo-se aos islâmicos e apoiando o Estado argelino.
De acordo com um ex-oficial de Inteligência, cerca de cem a duzentos residentes franceses viajaram para o Afeganistão para receber treinamento durante a década de 1990. Alguns filiaram-se ao jihad internacional, outros simplesmente queriam poder voltar para casa e apregoar que sabiam manejar um AK-47
Nasiri mostrou-se capaz de cumprir sua missão e o relato de suas viagens oferece um retrato pessoal extremamente revelador de como se infiltrou em círculos jihadistas e abriu caminho até o núcleo da Al-Qaeda. Viajando através da Turquia e depois Paquistão, ele infiltrou-se em grupos islâmicos radicais.
Em Peshawar, Paquistão, Nasiri conheceu o palestino Abu Zubayda, coordenador e controlador do acesso a vários campos de treinamento afegãos. “Ele era um homem que fazia as coisas acontecerem, no sentido administrativo”, explica Mike Scheuer, chefe da unidade Bin Laden da CIA de 1996 a 1999. Abu Subayda acabou sendo preso em março de 2002.
Cerca de duas dúzias de campos de treinamento foram montados no Afeganistão. Os campos tiveram um papel fundamental na transição do jihad original dos anos 1980, para o jihad de múltiplas nações dos anos 1990, bem como na emergência do final da década de 1990 de um jihad global sob a Al-Qaeda. Eles foram o caldeirão nos quais diferentes grupos começaram a trabalhar juntos, forjando uma identidade comum,
Não existia uma única fonte de recursos ou controle dos campos. O Afeganistão estava mergulhado no caos em meados dos anos 1990. Os soviéticos tinham sido expulsos em 1989. Um governo submisso liderado por Mohammad Najibullah, durou até 2002, quando foi derrubado pelas facções mujahidin, que começaram a lutar entre si pelo poder, sendo que vários chefes tribais ficaram com o controle de bolsões do país.
Embora Bin Laden tenha deixado o Afeganistão após o fim da guerra com os soviéticos e residisse no Sudão no começo dos anos 1990, ele continuou a financiar alojamentos e instalações de treinamento dentro do Afeganistão, inclusive, segundo Nasiri, a alimentação no campo que freqüentou.
Pouco depois, o ISI (1) começou a apoiar o Talibã como uma força proposta para estabilizar o Afeganistão e fortalecer os interesses de segurança do Paquistão.
(1) ISI – Serviço de Inteligência do Paquistão
Em meados dos anos 1990 o número de nacionalidades representadas e a disciplina de treinamento eram notáveis e muito maiores do que anteriormente se suspeitava. Grupos da Argélia, Chechênia, Caxemira, Quirguistão, Filipinas, Tadjiquistão e Uzbesquistão recebiam treinamento militar que colocariam em prática quando retornassem a seus países. Grande número de árabes, especialmente da Arábia Saudita, Egito, Jordânia e Iêmen, também passaram por lá, assim como terroristas da Europa, África do Norte e outras regiões, que desejavam participar do jihad.
O treinamento que Nasiri recebeu em Khaldan era altamente organizado e extensivo. Boa parte do aprendizado baseava-se em manuais de treinamento dos EUA obtidos durante a luta contra os soviéticos. Os participantes também passavam quase o mesmo tempo em treinamento religioso. A preparação espiritual era considerada um aspecto central do jihad, mais importante que o treinamento físico.
Entre os que passaram por Khaldan havia terroristas envolvidos nos dois ataques, de 1993 e 2001, ao World Trade Center (inclusive Mohammad Atta, líder dos ataques do 11 de setembro); pessoas envolvidas nos atentados a bomba de 1998 contra embaixadas dos EUA, Ahmed Ressam, o fracassado bombardeador do milênio, os dois britânicos dos “sapatos-bombas”, Richard Reid e Sajid Badat; e Zacarias Moussaoui, sentenciado em 2006 à prisão perpétua pelo envolvimento no complô do 11 de setembro. Mas o líder de Khaldan em meados dos anos 1990 era um homem chamado Ibn al-Sheikh al-Libi, com quem Nasiri passou um tempo considerável. al-Libi havia combatido no Afeganistão da década de 1980.
Preso em novembro de 2001, al-Libi foi o primeiro membro do alto escalão da Al-Qaeda a ser capturado pelos EUA após os ataques. Depois de uma disputa entre o FBI e a CIA ele foi entregue ao Egito, onde pode ter sido submetido a maus tratos sendo que informações extraídas de seu interrogatório foram utilizadas por autoridades dos EUA para declarar a existência de vínculos entre o Iraque e a Al-Qaeda, com base na alegação de al-Libi de que o Iraque oferecera treinamento à Al-Qaeda a partir de dezembro de 2000. Isso foi citado pelo vice-presidente Cheney , pelo secretário de Estado Collin Powell, em seu decisivo discurso na ONU em fevereiro de 2003, e pelo presidente George Bush, em Cincinnati, em outubro de 2002, quando declarou que “ficamos sabendo que o Iraque treinou membros da Al-Qaeda na produção de bombas, venenos e gazes”.
O problema era que al-Libi mentiu. Em janeiro de 2004, al-Libi desmentiu suas declarações sobre o Iraque, forçando a CIA a cancelar inúmeros relatórios de Inteligência baseados em suas declarações.
Especulou-se que ele estaria deliberadamente fornecendo informações falsas para fazer os EUA atacarem o Iraque, pois expressava seu desagrado pelo regime secular de Saddam Hussein no Iraque e era um homem altamente treinado para resistir a interrogatórios. Na primavera de 2006, segundo alguns relatos, al-Libi foi entregue às autoridades líbias.
Em Khaldan, a formação de Nasiri parece tê-lo diferenciado dos demais recrutas, tanto assim que ele foi um dos poucos selecionados para seguir ao campo de Durunta, mais avançado. Durunta fornecia um treinamento mais individualizado em explosivos e terrorismo. Em Khaldan os recrutas aprendiam a detonar explosivos; em Durunta eles aprendiam a fazer explosivos e detonadores a partir do zero. Em Durunta o treinamento não era para o combate militar, mas para serem indivíduos solitários que agiriam como os clássicos agentes terroristas que ficam na espera até chegar a hora da ação – um agente dormente – necessitando assim de um conjunto diferente de habilidades.
Entre os que se formaram em Durunta antes da sua destruição por ataques aéreos dos EUA no fim de outubro de 2001, está Ahmed Ressam, mas tarde condenado por envolvimento no complô de atentado a bomba contra o Aeroporto Internacional de Los Angeles.
Havia agentes de Inteligência nos campos perto da fronteira paquistanesa, mas outros campos, como os de Durunta, eram muito mais difíceis de serem infiltrados. Algumas estimativas afirmam que, entre 1996 e os ataques de 11 de setembro , de 10 mil a 20 mil terroristas passaram pelos campos para serem treinados. Outros acreditam que esse número pode chegar a 100 mil. Ninguém apurou para onde foram esses terroristas, ou quem eles, por sua vez, foram treinar.
No momento em que Nasiri saiu do Afeganistão, na primavera de 1996, Bin-Laden retornou e chegou num momento crucial, em que o Talibã estava conquistando o poder.. Em setembro o Talibã já havia tomado Jalalabad e forneceria a Bin-Laden e à Al-Qaeda um porto seguro no qual começariam a planejar operações mais drásticas.
(1) Vide Por Dentro do Jihad 1 e 2
PARTE 4 - FINAL
Após a volta do Afeganistão e um longo período sem contato, Nasiri encontrou-se com o DGSE e recebeu uma nova missão. Com a repressão na França e Bélgica, foi para o ambiente mais tolerante de Londres que muitos dos jihadistas começaram a se mudar. “Londres era o foco”, explica Alain Grignard um oficial antiterrorista belga, pois o local servia de trampolim para a passagem da era de extremistas islâmicos nacionais para a rede global fundada no caldeirão afegão.
A segunda metade da década de 1990 foi o período em que a capital britânica ganhou o apelido de “Londrestão”, um título dado por autoridades francesas enfurecidas com a crescente presença de radicais islâmicos em Londres e com a omissão das autoridades britânicas frente ao problema. Historicamente, Londres sempre foi um lar para os dissidentes e desde os anos 1980 cada vez mais se tornou refúgio para extremistas islâmicos que ganhavam asilo de autoridades pouco conscientes de suas atividades.
Pouco depois de chegar a Londres, Nasiri mais uma vez travou contato com o Al Ansar, agora impresso na capital britânica. Entre os que estavam envolvidos com Al Ansar em Londres estava Rachid Ramda, que fora visto na França e na Bélgica freqüentando círculos do GIA. Quando o juiz contra-terrorista francês Jean Louis Brugière pediu à Grã-Bretanha que prendesse Ramda, que era procurado por conexões com o financiamento dos atentados a bomba no metrô de Paris, a reação britânica foi dizer que não poderia prendê-lo, pois ele nada fizera de errado no Reino Unido. Ramda finalmente foi detido, mas lutou contra a extradição por dez anos, para a crescente irritação dos franceses. Somente em dezembro de 2005 foi que as autoridades da Grã-Bretanha o transferiram para a custódia francesa, sendo que ele viria a ser condenado, em Paris, em março de 2006 pelos atentados a bomba de meados dos anos 1990.
Em Londres, Nasiri foi comandado pelos serviços de Inteligência franceses e britânicos, recebendo a missão de se infiltrar na comunidade de radicais.
Abu Hamza e seus seguidores haviam transformado a mesquita de Finsbury Park no principal santuário e centro de conexões, não apenas da Grã-Bretanha, mas de toda a Europa, para aqueles comprometidos com o jihad internacional. Cerca de 200 pessoas dormiam no subsolo da mesquita. Uma estimativa calcula que 50 freqüentadores da mesquita morreram em operações terroristas e ataques insurgentes em conflitos no exterior.
A mesquita funcionava como um centro de recrutamento para grupos aliados à Al-Qaeda. Terroristas eram mandados ao Afeganistão com passagens aéreas, dinheiro e cartas de apresentação de Abu Hamza para entrar em Khaldan.
A tolerância dos britânicos, bem como sua tradição de liberdade de expressão, multiculturalismo e concessão de asilos, foram exploradas e as autoridades não desejando interferir na liberdade de expressão, não conseguiram compreender o tipo de retórica inflamada que emanava da mesquita de Finsbury Park e tampouco suas atividades.
Muitos países, além da França reclamaram dessa mesquita, mas nada foi feito. Somente em janeiro de 2003 é que as autoridades britânicas decidiram agir, fechando-a temporariamente, mas Abu Hamza continuou livre, pregando na rua em frente à mesquita. Somente quando os EUA emitiram um pedido de extradição é que as autoridades britânicas agiram, em parte pelo constrangimento causado pela pressão americana. Em outubro de 2004, Abu Hamza foi acusado e por fim condenado por ser o mentor de assassinatos e outros crimes.
Outra figura-chave espionada por Nasiri foi Abu-Watada, um palestino-jordaniano que havia entrado no Reino Unido em 1993 com um passaporte falso . A Jordânia exigiu a sua extradição, mas a Grã-Bretanha não a concedeu.
Para os militantes islâmicos a necessidade de autoridade religiosa é de grande importância. Os nomes daqueles que se acredita terem recebido treinamento religioso de Abu Qatada forma um “quem é quem” de militantes islâmicos baseados na Europa. Fitas com sermões de Abu Qatada foram encontradas no apartamento de Hamburgo usado por Muhammad Atta, um dos atacantes do 11 de setembro.
A base de operações de Abu Qatada ficava no Four Feathers Club, em Londres. Nasiri diz que autoridades britânicas mandaram-lhe deixar Abu Qatada em paz e centrar suas atividades em Hamza. Acredita-se que Qatada também tivesse contatos com o MI5, mas não está claro quem manipulava quem.
Finalmente, em fevereiro de 2001 Abu Qatada foi interrogado pela Polícia, que encontrou 170 mil libras, em dinheiro, em sua casa, parte dessa quantia dentro de um envelope onde se lia “para os mujhadin da Chechênia”.
Autoridades britânicas citam a estrutura legislativa como um problema. Em meados dos anos 1990, conspirar dentro da Grã-Bretanha para cometer atos terroristas no exterior não era crime. Assim grupos como o Hamas e os Tamil Tigers, bem como o GIA, começaram a usar o Reino Unido como pólo central. A Polícia investigava um problema apenas se existissem evidências de que leis tivessem sido desobedecidas. A Polícia e os Serviços Secretos não priorizavam a coleta de informações sobre esses grupos. Os especialistas em contraterrorismo britânicos continuavam focados no terrorismo republicano irlandês, em vez do terrorismo islâmico.
Em fevereiro de 1996, uma bomba de meia tonelada explodiu na região portuária de Londres sinalizando uma nova fase de atividades após o cessar fogo irlandês. O MI5 e a Polícia estavam envolvidos em uma disputa burocrática sobre quem comandaria a política contraterrorista na Irlanda do Norte – por fim, vencida pelo MI5 – que também canalizava recursos e energia nessa direção.
Foi somente no início de 1998 que as autoridades britânicas começaram a ouvir mais sobre a Al-Qaeda. Na época ninguém se preocupava com Abu Qatada, Abu Hamza ou as redes do Norte da África. A preocupação girava em torno de grupos de árabes que haviam chegado por volta de 1998, predominantemente do Egito, bem como de outros árabes associados a Bin-Laden, como Khalid al-Fawwaz, que se acreditava vinha administrando o escritório de mídia de Bin Laden em Londres, organizando entrevistas para jornalistas ocidentais e publicando declarações em seu nome.
Khalid al-Fawwaz foi posto sob custódia britânica à espera de extradição para os EUA.
Embora as autoridades britânicas tenham começado a considerar a ameaça da Al Qaeda a partir do início de 1998, ela era percebida como distinta de figuras como Abu Qatada, Abu Hamza e os argelinos operando no Reino Unido.
O terrorismo internacional e particularmente o terrorismo ligado aos islâmicos, não era visto como algo que ameaçasse diretamente o país. A França poderia ser um alvo primário, devido ao seu envolvimento na Argélia, mas não o Reino Unido.
A Grã Bretanha está sentindo agora o impacto do longo prazo de sua tolerância para com os elementos radicais nos anos 1990-. A radicalização que se espalhou em algumas comunidades britânicas não se estabeleceu da noite para o dia.
Em 1998, um novo conjunto de ações da Polícia na Bélgica resultou em mais provas de natureza internacional das redes jihadistas e da ameaça que representavam. Os detidos vinham da Argélia, Marrocos, Síria e Tunísia e tinham conexões com inúmeros grupos islâmicos diferentes, bem como com Abu Zubayda, Afeganistão, Bósnia e Paquistão. Foram descobertos detonadores e materiais para a fabricação de explosivos e havia suspeitas de que a Copa do Mundo, que se realizaria na França no meio daquele ano, seria um alvo.
A Europa sempre foi uma base central de operações da Al Qaeda, um lugar no qual diferentes grupos islâmicos radicais forjaram suas alianças. Os sinais de alerta estavam ali, mas somente uns poucos os compreenderam.
Cinco anos após os ataques de 11 de setembro, é a Europa – e o Reino Unido em particular – não os EUA, que se defronta com o maior desafio do terrorismo.
Foi uma conquista de Bin Laden a globalização da noção de jihad. Reunir grupos que antes se concentravam unicamente em seus próprios conflitos locais – na Argélia, Ásia Central, Chechênia e outras regiões - e convencê-los a fazer parte de uma luta maior. Uma luta contra o “inimigo distante” - os EUA -, que apoiava os governos aos quais se opunham. Uma luta que devia ser travada sob a bandeira da Al Qaeda.
Em fevereiro de 1998 Bin Laden divulgou uma nota declarando a formação da Frente Islâmica Mundial para a Jihad contra Judeus e Cruzados. Ele anunciou uma fatwa de que “matar os americanos e seus aliados – civis e militares – é um dever pessoal de cada muçulmano que puder fazê-lo em qualquer país em que for possível fazê-lo” . Pouco depois, em agosto de 1998 veio a primeira operação de grande escala da Al Qaeda contra os EUA, atacando suas embaixadas na Tanzânia e no Quênia.
A história de Omar Nasiri termina quando ele se muda para a Alemanha. Lá, em relação aos serviços secretos alemães, entra em colapso. Na sua visão, eles o abandonaram sem jamais fornecerem proteção e a nova identidade que os franceses haviam prometido inicialmente. Quase quatro anos depois, enquanto assistia aos atentados a bomba em Londres em 7 de julho de 2005, ele decidiu que queria contar a sua história. Isso o fez procurar a BBC e a escrever o relato dos sete anos em que viveu como espião no emergente movimento jihadista.
Quem quiser se escandalizar, que se escandalize. Quero proclamar, do fundo da alma, que sinto muito orgulho de ser brasileira. Não posso aceitar a tese de que nada tenho a comemorar nestes quinhentos anos. Não agüento mais a impostura dessas suspeitíssimas ONGs estrangeiras, dessa ala atrasada da CNBB e dessas derrotadas lideranças nacional-socialistas que estão fazendo surgir no Brasil um inédito sentimento de preconceito racial.
Para começo de conversa, o mundo, naquela manhã de 22 de abril de 1500, era completamente outro. Quando a poderosa esquadra do almirante português ancorou naquele imenso território, encontrou silvícolas em plena idade da pedra lascada. Nenhum deles tinha noção de nação ou país. Não existia o Brasil.
Os atuais compêndios de história do Brasil informam, sem muita base, que a população indígena andava por volta de cinco milhões. No correr dos anos seguintes, segundo os documentos que foram conservados, foram identificadas mais de duzentos e cinqüenta tribos diferentes. Falando mais de 190 línguas diferentes. Não eram dialetos de uma mesma língua. Eram idiomas próprios, que impediam as tribos de se entenderem entre si. Portanto, Cabral não conquistou um país. Cabral não invadiu uma nação. Cabral apenas descobriu um pedaço novo do planeta Terra e, em nome do rei, dele tomou posse.
O vocabulário dos atuais compêndios não usa a palavra tribo. Eles adotam a denominação implantada por dezenas de ONGs que se espalham pela Amazônia, sustentadas misteriosamente por países europeus. Só se fala em nações indígenas.
Existe uma intenção solerte e venenosa por trás disso. Segundo alguns integrantes dessas ONGs, ligados à ONU, essas nações deveriam ter assento nas assembléias mundiais, de forma independente. Dá para entender, não? É o olho na nossa Amazônia. Se o Brasil aceitar a idéia de que, dentro dele, existem outras nações, lá se foi a nossa unidade.
Nos debates da Constituinte de 88, eles bem que tentaram, de forma ardilosa, fazer a troca das palavras. Mas ninguém estava dormindo de touca e a Carta Magna ficou com a palavra tribo. Nação, só a brasileira.
De repente, os festejos dos 500 anos do Descobrimento viraram um pedido de desculpas aos índios. Viraram um ato de guerra. Viraram a invasão de um país. Viraram a conquista de uma nação. Viraram a perda de uma grande civilização.
De repente, somos todos levados a ficar constrangidos. Coitadinhos dos índios! Que maldade! Que absurdo, esse negócio de sair pelos mares, descobrindo novas terras e novas gentes. Pela visão da CNBB, da CUT, do MST, dos nacional-socialistas e das ONGs européias, naquela tarde radiosa de abril teve início uma verdadeira catástrofe.
Um grupo de brancos teve a audácia de atravessar os mares e se instalar por aqui. Teve e audácia de acreditar que irradiava a fé cristã. Teve a audácia de querer ensinar a plantar e a colher. Teve a audácia de ensinar que não se deve fazer churrasco dos seus semelhantes. Teve a audácia de garantir a vida de aleijados e idosos.
Teve a audácia de ensinar a cantar e a escrever.
Teve a audácia de pregar a paz e a bondade. Teve a audácia de evangelizar.
Mais tarde, vieram os negros. Depois, levas e levas de europeus e orientais. Graças a eles somos hoje uma nação grande, livre, alegre, aberta para o mundo, paraíso da mestiçagem. Ninguém, em nosso país pode sofrer discriminação por motivo de raça ou credo.
Portanto, vamos parar com essa paranóia de discriminar em favor dos índios. Para o Brasil, o índio é tão brasileiro quanto o negro, o mulato, o branco e o amarelo.Nas nossas veias correm todos esses sangues. Não somos uma nação indígena. Somos a nação brasileira.
Não sinto qualquer obrigação de pedir desculpas aos índios, nas festas do Descobrimento. Muitos índios hoje andam de avião, usam óculos, são donos de sesmarias, possuem estações de rádio e TV e até COBRAM pedágio para estradas que passam em suas magníficas reservas. De bigode e celular na mão, eles negociam madeira no exterior. Esses índios são cidadãos brasileiros, nem melhores nem piores. Uns são pobres. Outros são ricos. Todos têm, como nós, os mesmos direitos e deveres. Se começarem a querer ter mais direitos do que deveres, isso tem que acabar.
O Brasil é nosso. Não é dos índios. Nunca foi.
*Professora
A principal característica de um governo esquerdista é que ele jamais se contenta em governar de acordo com a ordem legal, instituída. Ele sempre acredita que detém a chave, a poção, a receita miraculosa para transformar o país no que, ele imagina, será o melhor dos mundos. O problema é que o melhor dos mundos, quando se trata da esquerda, está sempre próximo do que imaginamos ser o Inferno, quando não é o próprio Inferno.
A prova do que afirmo encontra-se não apenas na história das revoluções — vejam o Purgatório congelado no tempo em que Cuba se transformou, sobrevivendo graças à submissão de um povo sem esperança e sem armas e à propaganda esquerdista mundial, ou os milhões de crimes perpetrados pelo comunismo soviético —, mas também no presente, no cotidiano da sociedade brasileira, sequestrada, em grande parte, pelo pior tipo de populismo que já conhecemos, superior, em método e recursos, aos refinamentos do getulismo.
Esta semana, mais uma vez, o governo ensaiou uma tentativa de golpe. O alarme foi dado pelo editorial do Estadão, “Mudança de regime por decreto”, e rapidamente se espalhou pelas redes sociais e blogs, transformando-se em um fenômeno viral.
De fato, enquanto os políticos de oposição dormem, refestelados em seus altos salários e mordomias, parcela da sociedade vigia, atenta, os ensaios para se criar uma ditadura. As reações foram múltiplas: Reinaldo Azevedo pontificou: “A ‘democracia direta’ de Dilma é ditadura indireta do PT”. Alexandre Borges deu uma breve mas incisiva aula de história em “Todo poder aos sovietes petistas”. Felipe Moura Brasil denunciou a lentidão dos tucanos, sempre envergonhados ou sempre pactuando silenciosamente com o governo, no post“Ronaldo Caiado sai na frente de Aécio: ‘É golpe do PT!’”. No artigo “Um tumor inserido por decreto”, Fábio Blanco sangrou ainda mais a manobra traiçoeira. E Milton Simon Pires não deixou por menos: mostrou, em“Brasil 8243”, como o PT pretende destruir as instituições do país.
O mais didático e irônico, contudo, foi Erick Vizolli, no sempre ótimo Liberzone. No artigo “Afinal, o que é esse tal Decreto 8.243?”, Vizolli mostra que o sistema representativo, apesar de todos os seus defeitos, ainda é a única forma de nos protegermos de um Estado controlado por grupos que não têm compromisso com a democracia ou a liberdade, mas apenas com suas próprias ideologias.
Todos esses articulistas me recordaram as reflexões de Roger Scruton em The Uses of Pessimism and the Danger of False Hope (As vantagens do pessimismo, Editora Quetzal, Lisboa). No Capítulo 6, “A Falácia do Planeamento”, Scruton faz uma brilhante analogia entre a estrutura da União Europeia e a forma como Lenin aboliu, na Revolução Russa, “todas as instituições através das quais o partido e seus membros pudessem ser responsabilizados pelo que fizeram”, permitindo que um erro se sucedesse a outro, sempre maior, sempre mais criminoso.
Scruton reflete como se tivesse acabado de ler o decreto de Dilma Roussef: “Quando os poderes de Governo estiverem adequadamente repartidos e quando os que detêm a soberania puderem ser expulsos por uma votação, os erros podem encontrar o seu remédio. Porém suponhamos que as instituições de Governo estão montadas de tal maneira que toda a concentração de poder é irreversível, de modo que os poderes adquiridos pelo centro nunca podem ser recuperados. E suponhamos que aqueles que mandam no centro são nomeados, não podem ser afastados a pedido do povo, encontram-se em segredo e guardam poucas ou nenhumas atas das suas decisões. Acha que, nessas circunstâncias, existem condições em que possam ser retificados erros ou mesmo convincentemente confessados?”.
Todos os infinitos casos de corrupção; todas as manifestações de ódio coletivo que têm tomado as ruas; o longo e incansável trabalho de controle ideológico feito pelo Ministério da Educação, censurando, de forma velada, o conteúdo de milhões de livros didáticos distribuídos país afora; todas as tentativas de manter sob vigilância a mídia e a Internet; o evidente controle do Executivo sobre parcela do Congresso e do Supremo Tribunal Federal — tudo contribui para transformar o Decreto 8.243 na cereja do bolo.
Se ainda podemos ter alguma esperança, ela reside no fato de que eles sempre acabam destruindo uns aos outros. “Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco” — conta George Orwell no final de A Revolução dos Bichos.
O Estatuto do Desarmamento foi uma violência. Algemaram a nação. Talvez no dia que cassarem nosso direito de opinião, começando pelas redes sociais com base no Marco Civil da Internet, o povo acorde e tente reagir. Mas como assim reagir? É que o desarmamento de um povo em países conflagrados pela violência só se presta a interesses escusos de aprisionamento da cidadania. É o caso do Brasil.
Quando partidos de esquerda se associaram a políticos vendidos para negar ao cidadão o direito à autoproteção, não havia uma única estatística decente que pudesse apontar nas armas legais a causa de ser o Brasil recordista em homicídios. E por uma razão simples: não são as armas obtidas legalmente, manipuladas por cidadãos que se prepararam para tanto, a causa da violência em nosso país. Os brasileiros que disseram NÃO no plebiscito fajuto de 2005 – 59 milhões de eleitores (63% dos votantes) – estavam mandando um recado claro aos legisladores de que não aceitavam ser domados desta forma. Não adiantou. Antes mesmo o Congresso já havia cassado o direito ao porte.
Na semana passada ficamos sabendo que o Brasil quebrou seu próprio recorde em 2012: absurdos 56.337 assassinatos. Nunca antes na história deste país. Os dados constam do Mapa da Violência, que compila dados do Sistema de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. Chegamos assim ao aterrorizante índice de 29 homicídios para cada 100 mil habitantes no país. No Rio Grande do Sul são 21,9, bem mais que São Paulo que tem 15,1. São números de guerra. O índice considerado “não epidêmico” pela Organização Mundial da Saúde é de no máximo 10 mortes por 100 mil. O que isso prova? Duas coisas. Primeiro, que não são as armas registradas nas mãos de civis que causam a mortandade de brasileiros todos os dias. O armamento está praticamente proibido há quase dez anos e a mortandade só aumenta. Segundo, que é justamente a inexistência de armas nas mãos dos cidadãos de bem o fator que contribui para o aumento do banditismo, uma vez que os criminosos sabem que não haverá qualquer reação quando atacarem pessoas desarmadas. E assim o crime se agiganta. E será assim cada vez mais. Não somos a Suécia nem a Inglaterra. Tirar nossas armas foi decretar nosso fim. Estamos algemados.
George Mason, um dos pais da pátria americana dizia profeticamente: “Desarmar os cidadãos é a maneira mais fácil de escravizar um povo”. Chegamos lá.
* Jornalista
http://diegocasagrande.com.br/
A ordem jurídica é conformada por direitos naturais e positivos. Os primeiros são
inerentes ao ser humano e o Estado não os cria. Apenas reconhece. Assim é o
direito à vida. Outros são direitos que o Estado cria e, se seu perfil for de Estado
Democrático de Direito, cria-os pelo prisma da vontade popular, através de seus
representantes. Assim ocorre com o regime de governo, que pode ser o
parlamentarismo ou presidencialismo.
A Declaração Universal de Direitos Humanos é uma carta de direitos naturais, cujo
grande inspirador foi um jusnaturalista tomista, René Cassin. Quase todos os
direitos lá colocados são direitos naturais, inerentes ao ser humano. Quando o
Estado não os respeita, transforma-se num Estado autoritário, quando não, em
uma ditadura.
Os direitos naturais são próprios de todas as grandes religiões, que reconhecem na
vida humana um dom outorgado por Deus à suas criaturas.
A evolução da humanidade, a partir da percepção da obra do Criador, sai da religião
intuitiva do homem primitivo, para aquela em que reconhece, no universo, a mão
de Deus.
O “Big Bang”, que os cientistas descobriram como sendo a origem do Universo no
século passado, há milênios, os judeus já sabiam que ocorrera, lendo o Genesis do
Velho Testamento, quando o Senhor disse “Fiat de Lux”, faça-se a luz e gerou o
Universo conhecido.
Há uma busca incessante do homem por Deus e, quando nega o Deus verdadeiro,
apega-se a outros “deuses” que passam a comandar a sua vida, como poder, sexo
e dinheiro.
No pior dos homens há uma chispa divina, como aquela que fez São Dimas, ao
declarar-se merecedor da crucificação, e reconhecer ser Cristo Deus e pedir que
dele se lembrasse, quando estivesse no Seu Reino.
É esta chispa que faz com que todas as tentativas de intelectuais materialistas para
eliminar Deus da vida humana fracassem, como ocorreu com o iluminismo francês;
com Robespierre, na Era do Terror –criou a deusa Razão--; com os comunistas na
Espanha, que mataram mais de 6.000 sacerdotes e religiosos em 3 anos, ou seja,
muito mais pessoas do que em séculos e séculos da Inquisição em toda a Europa;
com Lênin e Stálin, que não conseguiram esmagar o sentido religioso do povo
russo.
No Estado Moderno, democrático, todavia, o Estado e a Igreja têm áreas de
atuação diversas, não devendo haver a influência, enquanto instituições, entre eles.
Atuam em campos separados, uma promovendo o ser humano, incutindo-lhe
valores e preparando-o para a vida eterna; e outro organizando a sociedade e
prestando serviços públicos ao cidadão.
O Estado laico, portanto, é o Estado onde a instituição Igreja –ou igrejas— não tem
participação, muito embora todas as pessoas fiéis a um credo, enquanto cidadãos,
têm a obrigação de exercer a cidadania e defender os valores em que acreditam.
Assim é que, no Brasil, por ser a maioria absoluta crente em Deus –não são muitos
os agnósticos e ateus—colocaram, por seus representantes, nas leis brasileiras,
inúmeras disposições que valorizam a dignidade do ser humano e obrigam o Estado
a respeitá-la.
De início, a Constituição foi promulgada sob a proteção de Deus, estando o seu
preâmbulo assim redigido:
“PREÂMBULO: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (grifos meus).
Todos os dispositivos da lei suprema brasileira foram elaborados, conforme
declararam os constituintes “SOB A PROTEÇÃO DE DEUS”.
Menos humildes que os constituintes anteriores - que apenas invocaram a proteção
de Deus, por não saberem se Deus estaria de acordo com tudo o que tinham
colocado no texto maior -, demonstraram, todavia , que a crença em Deus, própria
da esmagadora maioria do povo, era o mote maior, no exercício da cidadania,
razão pela qual deveriam Nele inspirar-se para aplicá-la.
E, assim sendo, diversos dispositivos de respeito à religião foram hospedados pela
Carta Magna.
O Estado brasileiro não tem uma religião oficial, mas sua Constituição garante a
opção religiosa, oferecendo imunidades às Igrejas de qualquer culto (art. 150, inc.
VI letra "b"), não permitindo qualquer discriminação (art. 3° inc. IV), assegurando
a liberdade de consciência, de crença e o livre exercício dos cultos e garantindo a
proteção aos locais em que ocorrem, assim como à sua liturgia (art. 5º, inc. VI).
Não priva de direitos qualquer cidadão por motivos de crença religiosa (art. 5° inc.
VII), permite que uma pessoa recuse obrigações militares ou civis que atentem
contra as suas convicções, desde que preste serviços alternativos (art. 5°, inc. IX).
Garante, inclusive, o ensino religioso nas escolas (art. 210, § 1º).
O Estado-laico não é, portanto, um Estado Ateu. É um Estado em que as duas
instituições convivem, trabalhando em campos diferentes, mas todos os cidadãos
que têm crença possuem o mesmo direito de expressar suas opiniões que os ateus
e os agnósticos. Em uma democracia, com o respeito ao direito da minoria, deve
prevalecer a vontade da maioria, como ocorreu na lei suprema.
Ora, por defender a Igreja –e falo no sentido amplo das tradicionais religiões—
valores, dignidade, ética, moralidade, bons costumes, próprios do direito natural,
seus seguidores terminam por valorizar a democracia.
Neste particular, o eminente mestre em Teologia Dogmática e doutor em História
da Igreja, professor José Ulisses Leva, em seu artigo “A teologia católica e de
consumo” (Revista Espaço Ética, p. 164/169, abril/2014), mostra a importância da
ética nos cursos de Administração e Economia para a formação de futuros
empresários e consumidores, pois conformando objetivos mais condizentes com a
natureza do ser humano. É que a ética nos negócios não representa um fator de
descompetitividade, mas um pólo de respeitabilidade, que favorece a própria
evolução.
É interessante notar, como hoje, todas as empresas procuram mostrar, em seus
balanços sociais, o que têm feito pelos seus empregados e pelo país, com ampla
percepção do conteúdo de todas as encíclicas que, desde a “Rerum Novarum”
(1890) foram elaboradas pelos pontífices católicos, em clara visão de que a boa
imagem da empresa, que trabalha além da mera obtenção de lucros, é positiva
para os negócios.
E temos a certeza de que todo cidadão prefere adquirir produtos de empresa cujos
valores vividos sejam de maior dignidade do de que outras.
Mas, para isto, há necessidade de que aquele que entre no mundo dos negócios
busque também produzir o melhor e prestar serviço de qualidade. Dizia São
JoseMaria Escrivá, o santo do trabalho corrente, que o bom católico deve procurar
viver os valores próprios de sua fé, mas deve também procurar aprofundar-se na
sua profissão, para que dê o exemplo de trabalho bem feito.
Esta é a razão pela qual acredito que os valores religiosos levados à prática são
bons para os negócios, propiciando desenvolvimento e progresso econômico e
social. Mais do que isto, seus titulares não correm os riscos daqueles
empreendedores duvidosos, que pretendem vencer a concorrência pela sonegação
e corrupção, mas que, quando são flagrados, vêem seus negócios serem tragados
pelo Estado e pela opinião pública. Viver valores, ser competente, acreditar no seu
Deus, oferta vantagens e competitividade aos que sabem fazer bom uso deles.
(Revista Jurídica Consulex – 15 de Junho de 2014 – págs. 32 e 33)
* Advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra
* O autor é mestre em Ciências Sociais e diplomata de carreira.
Caminhos divergentes: a América Latina troca de lugar com a Ásia
Menos de meio século atrás, um dos mais famososestudiosos dos processos de desenvolvimento econômico, Gunnar Myrdal, antevia, em uma obra em três volumes, Asian Drama(1968), um futuro negro para a maior parte dos países asiáticos, contrapondo a essa visão pessimista suas perspectivas relativamente otimistas para a América Latina. Dois anos depois, ele resumia suas reflexõesnuma obra síntese, The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Program in Outline(1970), na qual confirmava, já na introdução, seu pessimismo em relação aos países asiáticos, que para eleestariamcondenados a uma miséria insuperável.
Os países capazes de alcançar as economias avançadas seriam, para Myrdal, os latino-americanos, que constituíam uma espécie de “classe média” no contexto mundial e estavam seguindo políticas industrializantes segundo recomendações da Cepal, e de seu diretor, Raul Prebisch. Os países asiáticos em geral, e os da Ásia do sul em particular, ficariam reduzidos à pobreza, salvo, dizia Myrdal, se eles seguissem o exemplo da Índia, que praticava um socialismo moderado, uma combinação de planejamento indicativo, com uma forte propensão ao controle dos setores estratégicos da economia, tudo isso combinado a políticas intervencionistas e protecionistas, entre elas a manipulação da taxa de câmbio e a alocação política dos recursos pelo Estado.
A história real tomou um caminho praticamente inverso ao que ele esperava. A situação dos asiáticos melhorou progressivamente – mais para os países da Ásia do Pacífico do que para os do Oceano Índico, com progressos muito rápidos para certo número dos primeiros, justamente conhecidos como “tigres” – enquanto os países latino-americanos não alteraram basicamente sua condição e status no contexto mundial. Eles continuam a ser uma espécie de “classe média” e sequer parecem destinados a se tornar aprendizes de tigres nos anos à frente. Pior: eles viram a sua parte do comércio mundial recuar fortemente, ao passo que os países asiáticos se apropriaram de nichos e mesmo de setores inteiros dos intercâmbios internacionais –sobretudo produtos de alto valor agregado – ao mesmo tempo em que os latino-americanos ficaram presos, na maior parte dos casos, às exportações de um número limitado de produtos minerais e de matérias primas agrícolas.
Quanto à Índia, ela preservou – durante mais de três décadas após ser apontada como exemplo de futuro promissor por Myrdal – o seu lento crescimento e o seu atraso no terreno social, justamente por ter seguido as políticas preconizadas por Gunnar Myrdal. Ela só decolou para taxas mais vigorosas de crescimento quando abandonou aquelas ideias, passando a adotar não as políticas latino-americanas, como recomendadas por Prebisch, mas as receitas asiáticas de inserção na economia mundial, baseadas no setor privado e nos investimentos estrangeiros, em substituição à proteção nacional e o controle do Estado.
O Brasil e o México se tornaram industrializados com base no modelo cepalino e myrdaliano, mas seria difícil dizer que eles tenham conhecido, até os anos 1990, um sucesso de tipo asiático no seu desenvolvimento social, na educação de base ou na sua integração produtiva às cadeias mundiais de alto valor agregado, ou seja na exportação de produtos manufaturados de maior elasticidade-renda. Mesmo em termos de crescimento econômico, o desempenho foi mais errático do que constante, como ressaltado por Robert Barro e Xavier Sala-i-Martin em seu manual sobre o crescimento econômico (1995).
A América Latina poderia ter conhecido taxas mais robustas de desenvolvimento econômico e social se ela tivesse estabelecido um conjunto de políticas e de instituições voltadas para o crescimento, em lugar de se perder na instabilidade econômica e social durante boa partedo período contemporâneo. Tal situação alimentou golpes de Estado, revoluções, até mesmo guerras civis, além da fuga de capitais, crises de cambiais e de endividamento. Ocontinente poderia ter atingido uma melhor situação do ponto de vista econômico e social, se tivesse escapado do emissionismo inflacionista e preservado o equilíbrio fiscal e a abertura externa.
Os líderes políticosda América Latina se referem sempre à busca da igualdade e da justiça social, objetivos que também estavam no centro das reflexões de Gunnar Myrdal em torno dos projetos de desenvolvimento que se necessitaria implementar nos países subdesenvolvidos daquela época para aproximá-los dos países já desenvolvidos do Ocidente capitalista. A maior parte dos países asiáticos – salvo, talvez, a Coreia do Sul, e Taiwan, em virtude de uma reforma agrária de alguma forma forçada pelos Estados Unidos – se desenvolveram mantendo, ou mesmo aumentando – é o caso da China na sua conjuntura atual –altas taxas de desigualdade na distribuição de renda. Gunnar Myrdal colocava os países avançados em face de uma espécie de “imperativo moral”, que era o da assistência ao desenvolvimento, preconizando um forte aumento da cooperação técnica e de doações concessionais dirigidas aos países mais pobres, por meio do CAD-OCDE e dos programas do ONU e de suas agências, ou diretamente, pela via bilateral.
Contudo, não seria falso afirmar que os países que se desenvolveram de fato não o fizeram porque foram beneficiários da ajuda multilateral, mas em virtudede suaintegração à economia mundial pela via dos mercados, como recomendava, aliás, desde 1957, o economista Peter Bauer. Inversamente, seria importante registrar que os países que mais receberam ajuda continuaram patinando na miséria, ou na pobreza, e assistiram ao aumento da corrupção, como observado pelo economista William Easterly, ex-funcionário do Banco Mundial, atualmente um crítico acerbo da assistência oficial ao desenvolvimento (2006).
A América Latinaenfrentou vários dissabores e frustrações, comparativamente a outras regiões, particularmente em relação à Ásia, no tocante a vários temas, tanto os econômicos quanto os políticos ou sociais: integração regional, desenvolvimento social, instituições políticas, crescimento econômico, participação no comércio mundial, competitividade, liberdade econômica, democracia, direitos humanos.
A realidade não é sempre negativa, e não se pode negar os progressos reais logrados em alguns desses terrenos, a começar por uma diminuição – mas verdadeiramente muito modesta – da miséria, da pobreza e das desigualdades, ainda que de forma bastante variável segundo os países da região. Mas é preciso também reconhecer que esse desempenho aconteceu ao cabo de várias décadas de inflação acelerada, processo que constitui o pior dos impostos sobre a população mais pobre, uma vez que esta não tem meios para se defender do fenômeno. A diminuição do ritmoda inflação, nos últimos anos, respondeu sobretudo uma exigência da sociedade, bem mais do que representou uma conquista dos governos.
Divergência de políticas econômicas na região
Caberia, no entanto, fazer uma distinção entre três tipos de países, que praticam políticas econômicas variadas, segundo sua orientação geral com respeito ao que normalmente se chama de ortodoxia doutrinal: existem nítidas diferenças entre as orientações de políticas econômicas tomadas por eles. Quais são eles?
Primeiramente, o Chile e o México, que levaram mais longe o processo de reformas com orientação de mercado, logrando sucesso relativo na empreitada; em seguida, o Brasil e a Argentina, que ficaram no meio do caminho das reformas, e que avançam ou recuam em função dos grupos políticos que ocupam o poder alternativamente; finalmente, os países ditos bolivarianos, comandados pela Venezuela, fortemente engajados em políticas antimercado, ou de retorno à antiga preeminência do Estado na condução dos principais assuntos econômicos; aqui poderiam ser incluídos o Equador e a Bolívia, embora eles não tenham avançado tanto quanto a Venezuela chavista no caminho da estatização dos principais setores de atividade.
Outros países, como a Colômbia, o Peru, ou o Uruguai e o Paraguai, podem se aproximar do primeiro ou do segundo grupo, segundo as circunstâncias e em função de uma conjuntura que pode ser determinada pelos seus problemas específicos, pela dinâmica interna de suas economias, pelas relações com vizinhos, ou ainda pelas condições dos mercados internacionais. Os itinerários nacionais variam de maneira surpreendentemente rápida, ou por desenvolvimentos mais influenciados pelos cenários políticos do que pelas flutuações econômicas, embora estas últimas sempre influenciem os primeiros. Existem ainda casos especiais, e a Argentina certamente constitui um deles, podendo inclusive se aproximar do terceiro grupo. Da mesma forma, países aparentemente ameaçados de derrapagens constantes, pelos inúmeros problemas sociais persistentes – inclusive com ameaças de guerras civis – podem surpreender de modo positivo, como a Colômbia e o Peru, que se aproximaram do primeiro grupo.
Alguns critérios, ou parâmetros de comparação, permitem esse agrupamento em função das orientações básicas adotadas pelos três grupos de países. Os globalizados tomam a ordem global como um dado da realidade, e adaptam as suas políticas aos desafios percebidos, sempre no sentido de sua inserção naquele oceano revolto. Os reticentes, ou dubitativos, hesitam, como parece claro, a se lançar ao mar, preferindo construir anteparos às marés montantes da globalização. Os bolivarianos, finalmente, seguem mais ou menos a cartilha dos antiglobalizadores e partem de uma recusa da ordem global para propor caminhos alternativos, que nunca ficam claros quanto aos objetivos finais.
Pode-se considerar quatro tipos de critérios para examinara evolução recente desses três grupos de países. Alguns deles exibem indicadores objetivos, como as políticas econômicas, que podem ser avaliadas pelas taxas de crescimento, de inflação, de estabilidade monetária, de equilíbrio das contas públicas e das transações externas, entre outros. Outros critérios são de natureza mais qualitativa, como por exemplo, a atitude em relação à integração regional ou à inserção internacional, o que também pode ser avaliado pelo número de acordos comerciais e o seu impacto nos intercâmbios externos do país. Vários outros, finalmente, pertencem a um universo mais subjetivo, ou sujeito a contestações políticas, como podem ser a adesão do país – na verdade dos dirigentes políticos – aos valores mais profundos da democracia, das liberdades individuais ou o respeito aos direitos humanos.
Os globalizados
O México foi o primeiro país a ter empreendido um novo caminho, imediatamente após a crise da dívida de 1982. Mesmo o Chile de Pinochet, com suas orientações mais favoráveis ao capital estrangeiro e à iniciativa privada, perdeu bastante tempo na rota da estabilização e das reformas estruturais. Entretanto, uma vez lançadas as reformas de seu modelo econômico, o Chile foi mais longe e de maneira mais consistente no caminho adotado, talvez porque o peso das tradições sociais e um sistema político muito rígido, no caso do México, atuaram para retardar o ritmo e a extensão das mudanças requeridas pela sua nova opção estratégica, que era simplesmente a de deixar de lutar contra a sua geografia para se acomodar nos benefícios de estar acoplado a um império econômico aberto.
Os mexicanos pensaram no Nafta bem mais como um tratado de “exportação” de seus excedentes demográficos do que como uma extensão do sistema já estabelecido das maquiladoras, essas fábricas instaladas na fronteira, de assemblagem de acessórios fornecidos por empresas americanas que depois voltam para o mercado americano. O México continua a servir como uma extensão da máquina produtiva dos Estados Unidos, tanto quanto de oficinas de montagem para grandes indústrias estrangeiras que querem penetrar no mercado americanos sem os mesmos custos de mão-de-obra do mercado final.
O Chile, em contrapartida, deu início a um processo de reformas orientadas para a produtividade e a competitividade do seu sistema econômico alguns anos depois do brutal golpe de 1973, causador de milhares de vítimas entre seus inimigos presumidos, aliás, após que uma crise bancária e a persistência da inflação começassem a colocar em dúvida as capacidades gestoras dos militares, aparentemente apenas habilitados a manter o regime repressivo. Com a substituição dos responsáveis econômicos, o país também resolveu compatibilizar suas ofertas de mercado às possibilidades de sua geografia, dos seus recursos naturais, embora modernizando seus sistemas produtivos para aproveitar ao máximo suas vantagens comparativas, em linha com suas especializações de maior retorno (totalmente de acordo com a teoria ricardiana do comércio internacional). O Chile passou a se abrir ao mundo sobre a base de acordos de livre-comércio e talvez seja hoje o país de maior extensão nessa rede de instrumentos de liberalização comercial, se não pelo seu número total, ao menos por sua incidência econômica: o país andino provavelmente consolidou uma abertura parcial ou total com cerca de 80% do PIB mundial, conjunto que compreende toldo o hemisfério, a União Europeia e todos os demais grandes parceiros do sistema multilateral de comércio (e de investimentos, o que cabe também lembrar).
O crescimento registrado nos anos 1990 lhe valeu o título de “tigre asiático” da América Latina, e mesmo as crises financeiras desses anos, ou da primeira década do novo milênio, não afetaram a sua estabilidade econômica, nem, de resto, o seu modelo de política econômica, que poderia ser chamado de neoliberal (e mantido mesmo sob a presidência de socialistas). Exceção feita dos defeitos ainda importantes no sistema de educação pública, e de uma grande desigualdade na repartição da renda nacional, o Chile talvez esteja mais à vontade no seio da OCDE do que o México ou outros países exibindo um perfil ainda mais dirigista ou intervencionista. Neste sentido, o Chile é, no conjunto latino-americano, o país que decisivamente deu um grande passo à frente.
Os reticentes
A situação dos “intermediários” é bem diferente. Trata-se de países que deram início a reformas muito sérias no decorrer dos anos 1990, como o Brasil e a Argentina, mas que acabaram ficando na metade do caminho, ou que podem mesmo ter recuado a fases que já pareciam ter sido enterradas em sua história econômica. A história econômica da Argentina é extraordinária a todos os títulos, pelo sentido inverso que o país sempre deu aos resultados habitualmente esperados em termos de progressos no caminho da prosperidade e da acumulação de riquezas (BEATTIE, 2010). Um século atrás, a Argentina era mais rica do que a França, pelo menos em renda per capita: ela conseguia alcançar 73% do PIB per capita dos americanos, enquanto a França superava com dificuldades 60% (o Brasil era cinco ou seis vezes menos rico do que a Argentina, realizando, se tanto, 11% da renda da média americana). Atualmente, os Argentinos alcançam o máximo de 1/3 da renda per capita dos americanos, e são também apenas um terço mais ricos que os brasileiros. O valor agregado pela economia brasileira superou, desde muito tempo, a soma da riqueza nacional argentina, sem mencionar o produto industrial e, certamente também, diversos setores da agricultura, outrora o grande diferencial a favor do país platino (MADDISON, 2001).
Depois do golpe de Estado de 1930 – que inaugurou a longa ruptura do país com o Estado de direito – a Argentina percorreu praticamente todas as etapas de um longo processo, ainda não terminado, de declínio econômico, mas que constitui também um exemplo único no mundo de erosão contínua de suas instituições políticas. Pode-se dizer, em seu favor, que os argentinos não inverteram totalmente o manual básico de economia elementar – como o fizeram, por exemplo, os chavistas venezuelanos, com e sem Chávez –, mais eles maltrataram de tal forma as regras fundamentais da vida econômica que terminaram por se descobrir sozinhos em face do mundo.
Quanto ao Brasil, depois de um único ciclo de reformas efetuadas durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, em meados dos anos 1990 – quando foram substancialmente modificados diversos artigos da Constituição tratado de dispositivos-chaves para a vida econômico do país, entre os quais a discriminação contra o capital estrangeiro – o processo de ajustes e mudanças pós-Plano Real, para consolidar a estabilização e retomar o crescimento, ficou sob severa pressão das crises financeiras regionais e internacionais, ameaçando inclusive a sobrevivência do real, para o qual se teve de adotar um regime de flutuação, em vista dos fortes ataques contra uma banda cambial que não resistiu à erosão das reservas internacionais do país. Os apagões de energia elétrica e a crise terminal do peso argentino fizeram o resto, mas, com o apoio de três acordos de sustentação com o FMI, o Brasil pode superar a pior fase das turbulências. A próxima foi constituída precisamente pela eleição de Lula, que havia prometido mudar toda a política econômica, sendo que o programa do PT previa calotes na dívida externa e na interna.
As privatizações efetuadas sob FHC não foram revertidas por Lula, mas este não deixou de explorar politicamente as mudanças liberais que tinha sido implementadas no governo anterior; Lula simplesmente paralisou o processo de reformas, e passou a viver sob a bonança da demanda chinesa, que permitiu sete longos anos de preços recordes nas matérias primas exportadas pelo Brasil para aquele grande mercado. O que Lula efetivamente operou, sem qualquer constrangimento, foi um retorno ao Estado e aos ensaios de planejamento centralizado dos tempos militares, sem dispor de tecnocratas competentes como os da conjuntura autoritária anterior.
De forma geral, ocorreu um nítido viés dirigista, de protecionismo às empresas nacionais (sobretudo estatais) e de aprofundamento da carga fiscal, penalizando tanto as empresas privadas quanto os brasileiros de classe média, chamados a pagar os benefícios sociais que Lula passou a distribuir nas camadas mais pobres da sociedade. Não é surpreendente, assim, que ao cabo desse processo de extração estatal sempre crescente, as indústrias brasileiras se tenham tornado pouco competitiva – não apenas externamente, mas inclusive no próprio mercado interno –, e não especialmente por causa da concorrência predatória dos chineses (que também existe, mas o Brasil ainda tem tarifas aduaneiras bastante elevadas), mas em virtude essencialmente de problemas made in Brazil. A taxa de poupança nacional continuou medíocre e como o Estado passou a gastar mais consigo mesmo, a taxa de investimento manteve-se em patamares insuficientes para sustentar um crescimento autônomo superior a 2% (o resto sendo efeito da demanda chinesa e dos efeitos sobre os preços das commodities).
Os bolivarianos
O bolivarianismo remete mais a um rótulo –construído e desviado do conceito original pelo ex-caudilho da Venezuela, Hugo Chávez, para servir aos seus objetivos políticos – do que propriamente a um conjunto coerente de políticas econômicas. A base doutrinal seria dadapor um mal definido “socialismo do século XXI”, bem mais próximo do fascismo econômico – e sobretudo político – do que de qualquer experiência análoga ao marxismo econômico. Não existem grandes objetivos comuns aos bolivarianos – entre os quais poderiam ser ainda incluídos a Bolívia de Evo Morales, o Equador de Rafael Correa, e a Nicarágua de Daniel Ortega –, a não ser a mesma vontade de se opor ao fantasma do imperialismo americano, que parece ser o único obstáculo a que esses países se tornem desenvolvidos. Em nome desses vagos objetivos, eles se empenham em construir um simulacro de “poder popular” que se confunde, em tudo e por tudo, com os velhos regimes autoritários dominados pela figura de um caudilho que assume ares salvacionistas.
Os mal definidos bolivarianos estão entre os que mais recuaram do ponto de vista dos critérios considerados para avaliar o desempenho relativo da região e dos países, no que se refere a economia, política, a democracia, os direitos humanos, a integração regional e a inserção na economia mundial, a liberdade de expressão e de imprensa, a independência dos demais poderes ante o Executivo e, talvez o fator mais relevante, a mobilização do sub-proletariado para servir de escudo – algumas vezes armado – ou de tropa de manobra a serviço do poder bonapartista.
No meio do caminho entre os globalizados e os reticentes podem ser vistos alguns países que na verdade se comportaram bastante bem economicamente nos últimos anos, como o Peru e a Colômbia, mas que ainda enfrentam graves problemas de ordem política e social, que pode afetar de alguma forma sua estabilidade institucional e as perspectivas para o futuro. Mas são estes dois países que concluíram uma aliança econômica com os dois globalizadores, para constituir uma área de integração mais profunda do que a existente na região, chamada de “Aliança do Pacífico”, que deve permitir-lhes prosseguir seus processos de liberalização comercial e de abertura econômica recíproca, de maneira a apresentar uma espécie de frente comum no grande diálogo econômico e comercial que se trava atualmente no âmbito do Pacífico, em especial com os asiáticos no contexto da Apec, base possível de uma futura ampla zona de livre comércio naquela região.
Os países do Mercosul, assim como os do Alba, estão completamente à margem desses arranjos pragmáticos que se estabelecem em torno de novas oportunidades comerciais, mas sobretudo de investimentos diretos das grandes empresas multinacionais que se situam na vanguarda do progresso tecnológico. Peru e Colômbia se engajaram resolutamente nessa direção, com o Chile e o México, e não importa muito aqui se a liberalização comercial que eles fizeram entre eles – quase total, mas cobrindo uma parte pequena do comércio total de cada um deles – não produzirá grandes efeitos nas correntes de comércio adicionais que forem criadas pela Aliança do Pacífico: o importante, na verdade, não é tanto a integração entre eles – que será sempre relativamente limitada – mas a decisão de se abrir aos novos circuitos da integração produtiva global, algo que os reticentes desdenham, ou ainda não se decidiram a enfrentar.
Os outros dois pequenos membros do Mercosul, Paraguai e Uruguai, já sinalizaram, em diversas ocasiões, que estariam dispostos a seguir adiante na integração global, independentemente das reticências do bloco, mas, por um lado, eles são obstados pelas regras comuns – que na verdade atuam como uma camisa de força – de se negociar conjuntamente e, por outro, pelo próprio caráter errático de seus cenários políticos internos. Em face da relativa estagnação do Mercosul, eles podem deixar de ser indecisos e tomarem partido pelo bloco que preferiu avançar.
Avanços e recuos na América Latina
A América Latina, durante a maior parte da história contemporânea, foi estatista, protecionista, dirigista, características geralmentelegitimadas por um projeto qualquer de desenvolvimento. As reformas dos anos 1980 e das décadas posteriores estabilizaram parcialmente economias assoladas por inflações virulentas, mas poucos países continuaram a seguir o caminho das reformas estruturais para abrir suas economias, reduzir os gastos do Estado, capacitar a mão-de obra ou melhorar as infraestruturas. Os países que o fizeram, de maneira mais acabada, foram recompensados por taxas de crescimento sustentadas, como foi o caso do Chile. Os países menos capazes de avançar nas reformas – seja por falta de liderança política, seja por alguma maldição dos recursos naturais, como acontece facilmente com o petróleo – estão em grande medida condenados a repetir a história de booms and busts, de um crescimento errático seguido de uma crise, ou até de uma recessão.
Pode ocorrer, também, que países reticentes só consigam avançar em marcha irregular, comumente chamada de “voo de galinha”, em virtude desses saltos frustrados, buscando uma decolagem sempre comprometida pelo peso do Estado, pela falta de poupança e de investimentos, ou pela ausência de inovação técnica, dos quais decorre o “eterno retorno” à exportação de matérias primas, como parece ser atualmente o caso do Brasil. De maneira geral, o Brasil e a América Latina parecem ter sido confirmados num papel substantivo de fornecedores de matérias primas para os países industrializados, inclusive, e sobretudo, para a China.
Essas experiências diversas em matéria de desenvolvimento podem ser reavaliadasem função de algumas regras simples de políticas macroeconômicas e setoriais que, caso bem implementadas, são potencialmente capazes de sustentar um processo de crescimento econômico com transformação produtiva e distribuição social dos resultados. Estas regrasestão compreendidas nos seguintes conjuntos de políticas:
1) Estabilidade macroeconômica;
2) Microeconomia competitiva;
3) Boa governança, instituições sólidas, regras estáveis;
4) Alta qualidade dos recursos humanos, via educação geral e especializada;
5) Abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros.
Vejamos agora, um pouco mais em detalhe, estes cinco requerimentos de políticas econômicas.
Estabilidade macroeconômica
A condição básica dessa situação, que permite taxas sustentadas de crescimento econômico e oferece aos agentes privados perspectivas seguras de investimentos produtivos, são regras estáveis na política econômica, e estas são feitas de previsibilidade, baixa volatilidade do regulador principal – ou seja, o contrário do ativismo governamental extremo que costuma caracterizar a ação pública na região, com mudanças repentinas de regras – e de um conjunto de indicadores no plano macroeconômico que apontam para: (a) taxa de inflação relativamente reduzida, de preferência dentro da média mundial; (b) taxa de inflação inferior ao nível habitual das taxas de juros; (c) equilíbrio aceitável das contas públicas, que não precisam apresentar superávits fiscais de forma permanente, nem é desejável que o façam, mas cujo déficit deve ser mantido numa progressão inferior ao do crescimento do produto; (d) déficits orçamentários preferencialmente financiáveis internamente, ou com apelo a capitais externos a taxas de juros compatíveis com o crescimento das receitas de exportações; (e) a taxa de juros referencial da autoridade monetária deveria estar o mais possível ajustada aos níveis do mercado, e se possível afastadas das preferências políticas do governo (o que recomenda uma autoridade monetária independente); (f) taxa de câmbio com paridade realista, o que geralmente é feito pelo próprio mercado, não pelas manipulações do governo, o que recomenda, igualmente, uma adesão ao regime de flutuação, com um mínimo de intervenções governamentais; (g) mercado de capitais aberto e concorrencial, sem muitas barreiras ao ingresso de novos participantes, o que também permitiria fazer baixar o custo do capital e a oferta de financiamento, aliás para o próprio governo.
Uma adesão a estas poucas regras de políticas macroeconômicas transparentes e sadias permitiria oferecer um ambiente de negócios sem muitos sobressaltos, para o maior benefício dos agentes econômicos privados, que, animados dos seus “espíritos animais”, são os que oferecem empregos, introduzem inovações, criam renda e riqueza para a sociedade. Ora, se considerarmos esses critérios, parece inevitável concluir que a maior parte dos países latino-americanos, na história econômica do último meio século, conheceram poucos períodos contínuos, de estabilidade macroeconômica, menos ainda longos períodos. Basta com lembrar os episódios de acelerações da inflação em quase todos eles, as mudanças de moedas (podendo chegar inclusive à dolarização completa), as emissões incontroláveis, os tabelamentos de preços, enfim, todos os tipos de atentados mais ou menos graves nos planos fiscal, monetário e cambial. A região assistiu a fugas repetidas de capitais, a uma sucessão incontável de programas de socorro emergencial por parte do FMI, tanto quanto a inúmeros planos mal concebidos e mal aplicados de estabilização, que certamente não acrescentaram muito à credibilidade dos governos, ao contrário. Depois de tantos desastres e humilhações impostas pelos mercados, a maior parte dos governos parece ter encontrado uma espécie de convivência aceitável com as regras elementares do jogo econômico, embora alguns deles ainda se permitam a tarefa arriscada de desafiar ou até de negar as leis mais fundamentais da economia, sempre com as melhores intenções possíveis. Nem todos os países bolivarianos ousaram, como os governos chavistas da Venezuela, inverter os manuais de economia aplicada, pelo menos não na extensão praticada naquele infeliz produtor de petróleo, mas um ou outro reticente – e o governo peronista argentino entra nessa categoria – encarnou a inglória missão de desafiar os mercados e as modestas regras da racionalidade econômica.
Microeconomia competitiva
Conceito muito amplo, que significa, antes de qualquer outra coisa, fazer com que os agentes econômicos trabalhem num ambiente de livre competição, ou seja, sem barreiras à entrada de novos concorrentes nos diferentes mercados de bens e serviços; ele também significa a ausência de monopólios ou carteis, com amplas facilidades para intercâmbios e relações com parceiros externos – de onde costuma provir o essencial dos capitais e tecnologia para países e empresas dotados de baixa capacidade de inovação, como os da região latino-americana. Em combinação com as regras macroeconômicas transparentes e estáveis, a competição aberta num ambiente de livre mercado, sem regulações excessivas e sem privilégios para grupos de interesse, pode contribuir para a atração de novos investidores desejosos de testar suas vantagens intrínsecas, sem temer mudanças intempestivas de regras em favor de algum monopólio estatal ou cartel setorial.
Aqui também, é preciso reconhecer que a América Latina constitui, talvez, o continente que mais conheceu nacionalizações – ou seja, estatizações – no último meio século, fora do mundo socialista (já praticamente enterrado no último quarto de século). Os monopólios europeus do pós-guerra abrangiam frequentemente os serviços públicos; na América Latina eles extrapolaram facilmente para o terreno produtivo, cobrindo inclusive atividades comerciais ou mesmo nos produtos de base, quando ele poderiam mais racionalmente submeter-se a regras de concorrência num ambiente privado, o que permitiria certamente ganhos de produtividade, uma noção praticamente desconhecida no setor público. Não é raro que as companhias do Estado – em muitos casos antigas empresas sob o controle de investidores estrangeiros, quando capitais e expertise nacionais eram insuficientes – sirvam de cabides de empregos bem remunerados (e bem pouco produtivos) a amigos do poder. Não é preciso lembrar, tampouco, os muitos casos de setores concorrenciais eventualmente “encolhidos”, sob um novo regime de concessões públicas modelado, precisamente para favorecer a formação de lucrativos carteis de fornecedores amigos do mesmo poder.
Boa governança, instituições sólidas, regras estáveis
Líderes medíocres e má governança não são um privilégio exclusivo da América Latina: eles podem ser encontrados em todas as partes, até mesmo nos países mais avançados. Mas bastaria, por exemplo, fazer o relato pouco edificante da instabilidade institucional na região para se constatar que ela talvez tenha exagerado na aplicação da famosa frase do conde Lampedusa, segundo a qual é preciso mudar alguma coisa para que, finalmente, tudo fique no mesmo lugar. Pode-se contar, a esse respeito, o número de constituições promulgadas no Equador, na Bolívia, ou mesmo no Brasil, para se medir a profunda instabilidade institucional do continente, entre golpes de Estado, regimes militares e governos populistas, aliás até hoje. Algumas constituições são tão prolixas e abrangentes, que para alterar uma regra qualquer das atividades correntes – digamos, trabalho doméstico ou qualificação de jornalistas – se deriva facilmente para uma mini-crise parlamentar, ou entre os poderes, já que se requer maiorias qualificadas para fazê-lo (no Brasil, por exemplo).
Uma outra característica da região é o reforço constante do poder executivo, em certos casos do novo líder popular diretamente, em detrimento do poder legislativo e muito frequentemente no contexto de fortes pressões contra o Judiciário. Os países ditos bolivarianos são exemplares, no mau sentido da palavra, na aplicação dessas novas regras de servidão involuntária. O controle das receitas públicas e a manipulação dos orçamentos constituem elementos fundamentais desse processo de submissão dos dois outros poderes, nominalmente independentes, mas sujeitos às pressões do executivo. Os exemplos abundam, na América Latina de práticas perversas nesse terreno.
Na Venezuela chavista ou na Argentina peronista se viu muito frequentemente, ou ainda se vê, a promulgação de leis atribuindo ao chefe de Estado a competência exclusiva para alterar o orçamento ao seu bel-prazer, ou para emitir decretos executivos com força de lei (o que existiu, por exemplo, no regime militar brasileiro). Aliás, é duvidoso que na Venezuela se aplique um orçamento formal, aprovado pelo Parlamento (mesmo chavista) ou que as receitas de uma companhia todo poderosa, como a PDVSA, sejam integrados ao processo orçamentário normal. No Brasil, mesmo na ausência dessas práticas tão deletérias para a boa gestão dos recursos públicos, ocorrem frequentemente chantagens recíprocas entre o executivo e o legislativo na definição e na implementação dos orçamentos anuais, e são por demais conhecidas as práticas de “emendas orçamentárias” aumentando artificialmente a previsão de receitas e contemplando projetos paroquiais que se pretende converter em “despesas obrigatórias”. Tais procedimentos são tão comuns que já se convencionou chamar os deputados de “vereadores federais”.
A maior parte dos analistas políticos concorda em enfatizar os defeitos de fábrica dos regimes democráticos na região, felizmente poupada, atualmente, dos aspectos mais sombrios conhecidos durante as ditaduras militares ou sob regimes monocráticos de alguns caudilhos de opereta. A contrapartida é que se caiu, em vários casos, em simulacros de democracia, regimes eletivos que derivam para o populismo plebiscitário, ou mesmo em contrafações do cesarismo e do bonapartismo, por meio dos quais se degrada e se deforma a noção mesma de democracia, sem a necessidade de golpes ou de rupturas formais do sistema, ao mesmo tempo em que se suprime a dissidência ou as forças de oposição par vias aparentemente legais. A Venezuela chavista é o exemplo mais acabado desse tipo de “inovação” política.
Alta qualidade dos recursos humanos, via educação geral e especializada
A má qualidade da educação, em todos os níveis, juntamente com a desigualdade estrutural na repartição da renda, são características comuns a quase todos os países latino-americanos. Independentemente da existência de universidades mais ou menos antigas, é um fato que a escola pública de base – elemento essencial de ascensão social em todos os países – permanece um obstáculo à incorporação das camadas mais pobres a trabalhos de qualidade e a uma remuneração digna. Mais recentemente é o secundário que se tornou um ponto de estrangulamento para a expansão adequada do ensino superior, que permanece ainda uma reserva de mercado para uma pequena fração da faixa etária de 18 a 24 anos, mesmo se a expansão quantitativa, à base de verdadeiras fábricas privadas de diplomas, permitiu absorver uma pequena parte da demanda reprimida. É isto que explica, em grande medida, a fraca produtividade do trabalho e o nível medíocre da inovação técnica. Basta conferir as tabelas do PISA, e os lugares ocupados pelos países da região, para se convencer desta triste realidade.
O que seria preciso, então, fazer? As soluções não são simples e demandam algum tempo, à condição que se caminhe na boa direção, o que não é verdadeiramente o caso, ao se observar diversos exemplos de massificação populista do ensino em alguns países da região. Aparentemente, os Estados pretendem fazer economias num setor vital para o progresso do país: eles hesitam em reformar as carreiras e a formação dos professores, introduzindo, por exemplo, sistemas de remuneração por mérito; eles tampouco pretendem enfrentar sindicatos profissionais que se entrincheiraram num falso democratismo – e num puro corporatismo –, tanto quanto na defesa de uma isonomia tão irrealista quanto nefasta, do ponto de vista das responsabilidades individuais dos mestres nos desempenhos dos estudantes. As técnicas pedagógicas, por sua vez, continuam a formar professores que insistem numa falsa ideologia da “consciência cidadã” – à la Paulo Freire – em lugar de se concentrar nos conteúdos e nas competências reconhecidas e necessárias nas disciplinas centrais para a formação dos estudantes. Vai ser muito difícil extirpar os sistemas educativos latino-americanos desse amontoado de perversões pedagógicas acumuladas durante tanto tempo.
Abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros
Finalmente, se chega às questões diretamente ligadas às orientações de política econômica externa, tocando em temas que foram frequentemente envelopados numa aura maldita, enfeixada sob o conceito viciado do neoliberalismo. Nada disso é válido, obviamente: a abertura econômica, a liberalização do comércio internacional, bem como a receptividade aos capitais estrangeiros não podem ser considerados como sinônimos de submissão aos interesses estrangeiros; a participação nos fluxos dinâmicos dos intercâmbios externos constitui um dos vetores mais poderosos da modernização tecnológica e da integração à redes produtivas mundiais. A China e a Índia, por sinal, não conseguiram verdadeiramente decolar até que se declararam abertas a esses fluxos, colocaram suas diásporas respectivas espalhadas pelo mundo a serviço de seus setores produtivos nacionais e começaram a receber investimentos diretos para sustentar seus processos de inserção global.
Não é necessário ser liberal para se abrir ao comércio e aos investimentos internacionais, como aliás observado em diversas experiências na Ásia, região que se fez conhecida, nas últimas décadas, por políticas fortemente dirigistas ou mesmo protecionistas. A lição relevante para os países latino-americanos, de fato, é que os tigres asiáticos jamais se recusaram a participar das trocas internacionais ou em receber investimentos estrangeiros, sem por outro lado renunciar a políticas ativas nos terrenos industrial e tecnológico, e mesmo a certo mercantilismo no plano dos intercâmbios comerciais; o essencial era o fato de estar ligado aos mercados internacionais para poder aproveitar as vantagens dos fluxos nas duas direções. Incidentalmente, os asiáticos sempre foram mais responsáveis em suas políticas monetárias e fiscais, e eles também tiveram o cuidado de estimular a educação universal e a técnico-profissional, duas condições chaves para dispor de uma mão-de-obra capacitada para tarefas mais complexas do que a simples assemblagem de acessórios, partes e peças feita por maquiladoras de fronteira.
Aprofundamento das divergências?
A América Latina não conheceu as guerras que assolaram a Europa no decorrer do século XX, ou desastres humanitários tão extensos como os da África;tampouco experimentou a miséria extrema de certas regiões da Ásia, sobretudo aquela ainda mais extrema do subcontinente indiano. Ela ficou na média do mundo em desenvolvimento, e ali estacionou, conseguindo evitar os bloqueios africanos, mas sem lograr construir economias dinâmicas como as da Ásia Pacífico. Entre o início dos anos 1960 e o final do milênio, pode-se dizer que essas duas regiões trocaram de lugar, em termos de comércio, de investimentos, de renda, de inovações tecnológicas e de inserção na economia global.
Na verdade, a América Latina se recolheu sobre si mesma, e isso tem um custo em termos de progressos tecnológicos – ou melhor, de atrasos – e de perda de oportunidades de acesso a mercados mais amplos. Ainda hoje, enquanto a bacia do Pacífico constrói, pouco a pouco, um imenso espaço de produção e de intercâmbios industriais, comerciais, financeiros e tecnológicos do mais alto nível, os latino-americanos se orgulham de organizar encontros exclusivamente latino-americanos – sem a tutela do império, como dizem alguns – e criam organismos para seu uso exclusivo, como se o estabelecimento de novas burocracias alheias ao controle de Washington pudesse lhes garantir ganhos que eles supostamente não poderiam obter no plano hemisférico.
O que, sobretudo, é preciso constatar, entretanto, não é tanto a existência de resultados contrastados dentro da América Latina – já que isso é absolutamente normal, como ocorre frequentemente em continentes tão vastos, como também acontece na Ásia, na África, ou mesmo na Europa, onde, a despeito da união política que engloba agora quase três dezenas de países, ainda se vive num mosaico de povos e de culturas –, quanto uma tendência latente que confirma o aprofundamento da diversificação estrutural das políticas econômicas nacionais, segundo as linhas já expostas anteriormente: existem países que perseguem incessantemente sua inserção nos mercados globais – e o Chile constitui o exemplo mais evidente desse tipo de atitude –, assim como existem outros que resistem e procuram conter esse processo – como vimos nos casos dos reticentes, como o Brasil e a Argentina. Também existem alguns outros, finalmente, que pretendem fazer girar para trás a roda da História, como se fosse realmente possível impedir processos econômicos de continuar avançando, ainda que de forma contraditória; de fato é possível, mas ao custo de um isolamento das correntes mais dinâmicas da economia internacional, e ao preço de controles cada vez mais extensos, e inúteis, para impedir os seus povos de aceder aos benefícios da globalização.
Os líderes políticos desses últimos países, os bolivarianos, correm o risco de fazer suas sociedades retrocederem vários anos em direção ao passado, se seguirem seus instintos no sentido de qualificar a democracia – que seja “popular”, ou “participativa”, ou ainda “direta” – e de controlar pelo alto as engrenagens da vida econômica. De seu lado, os reticentes pode, por suas hesitações, atrasar os ajustes necessários ao ingresso dessas sociedades no grande turbilhão da globalização. Num ou noutro caso, eles correm o risco de simplesmente fazer com que a América Latina continue a acompanhar com um passo hesitante o ritmo irregular e desigual dos progressos econômicos e sociais que se desenvolvem em escala planetária.
Infelizmente, nem todo mundo consegue acelerar o carro de bois da História, ou substituí-lo por veículos mais ágeis, capazes de levar adiante sociedades inteiras de maneira mais rápida. Essas acelerações só acontecem muito raramente no itinerário histórico das nações. A América Latina, com muito poucas exceções, não parece ainda preparada, ou capacitada, para empreender uma via mais rápida em direção à modernidade.
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MYRDAL, G. 1968. Asian Drama: An Inquiry into the Poverty of Nation. Londres: Allen Lane: The Penguin Press.
Resumo:
Vários países latino-americanos tiveram um desempenho decepcionante ao longo das últimas décadas, comparativamente aos asiáticos. O ensaio fornece explicações para o atraso relativo de alguns, apoiando-se em fatores macroestruturais, examinando as políticas econômicas seguidas no continente e os resultados de longo prazo. A inflação, as inconsistências fiscais e a introversão econômica são em grande medida responsáveis pelas desigualdades e pelo modesto crescimento da América Latina. Nem todos eles recuaram, todavia, podendo ser identificadostrês tipos de países: (a) os globalizados, que são os que empreenderam reformas estruturais); (b) reticentes, que ficaram na metade do caminho dos ajustes necessários à sua integração internacional; e (c) bolivarianos, termo genérico aplicado àqueles que pretendem operar um retorno aos tempos de intervenções estatais na economia e de redistribuição de renda por meio de mecanismos compulsórios. São finalmente apresentados os elementos de política econômica e social que poderiam sustentar um processo de crescimento durável com transformação produtiva e redistribuição da renda, cuja primeira condição é o aumento da produtividade, por sua vez fundamentado sobre a boa qualidade da educação e das instituições de governança.
Palavras-chave: América Latina; fragmentação; políticas macroeconômicas; divergência.
Abstract:
Many Latin American countries underperformed in the last decades, in comparison with Asian countries. The essay gives some explanations for the backward path followed by some of them, starting by macro-structural factors, examining their economic policies and its long term results. Inflation, fiscal disequilibria and economic introversion are to be blamed for the inequalities and by the modest economic growth. Notwithstanding, some countries have performed better than others, and the essay distinguishes three types of countries: (a) the globalizers, which performed structural reforms; (b) the reticents, going just half-way in the path of reforms to be integrated to the world economy; (c) the Bolivarians, a generic concept applied to those pretending a way back to the state-guided economic policies, intervention, and redistribution commanded from above. Lastly, the essay emphasizes the main elements able to sustain a growth path together with productive transformation and income redistribution, for which a required condition is productivity growth, taking support on a high quality education and good governing institutions.
Key-words: Latin America; fragmentation; macroeconomic policies; divergence.