• 28/07/2015
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‘SOCIALISMO DO SÉCULO XXI’ REPETE NA VENEZUELA ROTEIRO DA CORTINA DE FERRO

 Franz Von Bergen - Foto: Juan Barreto/AFP


CARACAS — Se uma mulher decide sair para comprar carne, a menos que tenha sorte, não conseguirá fazê-lo de uma só tacada. Será necessária uma série de decisões que podem implicar: 1) não encontrar o produto e ter de buscá-lo em outro lugar; 2) encontrar o que buscava, mas enfrentar fila para comprá-lo; 3) substituir a carne por outra proteína; 4) adiar a compra e 5) abandonar a ideia completamente.

O exemplo poderia descrever a rotina de escassez vivida pelos venezuelanos. Mas foi pensado por János Kornai, economista húngaro nascido em 1928 e um dos maiores estudiosos das economias dos países socialistas europeus do bloco soviético. No livro “The Socialist System: The Political Economy of Communism”, Kornai adverte que esse sistema se transformou em uma “economia da escassez”, já que o fenômeno tornou-se “frequente”, “geral”, “intensivo” e “crônico”. Essa foi uma das consequências mais graves do socialismo clássico, que se apoiava na gestão governamental do aparato produtivo e em um planejamento centralizado que aplicava mecanismos de controle para anular a influência do mercado sobre a economia.

Desde que o chavismo se declarou socialista, em 2005, o governo tomou uma série de medidas que levaram o projeto a um modelo parecido ao que fracassou no Leste europeu. Embora com uma nova roupagem de “socialismo do século XXI”, o princípio é o mesmo, porque se controlam diretamente a economia e outras atividades, em vez de supervisar os mercados respeitando as liberdades.

Nos últimos dez anos, o chavismo expropriou 525 empresas, imóveis ou terras produtivas, aumentando cada vez mais a importância do Estado na economia. A produtividade, no entanto, caiu, e o país tornou-se mais dependente das importações, que em 2005 superaram os US$ 20 milhões pela primeira vez e desde então não saem da casa dos US$ 30 milhões.

A queda no preço do petróleo, por sua vez, impede a Venezuela de manter o ritmo das importações. E as consequências desse modelo econômico começaram a ficar aparentes no país.

Um estudo da ONG Transparência Venezuela mostra que o governo comanda hoje 183 grandes empresas em diferentes setores da economia — energético, alimentos, turismo, serviços, saúde. Dessas empresas, 56% não existiam ou eram privadas quando o chavismo chegou ao poder. Mais de 15% se autodeclaram “socialistas” no nome. Na direção, estão pessoas escolhidas por critérios políticos, não técnicos — a maioria é filiada ao PSUV. Um estudo do “El Nacional” com 491 dirigentes do partido chavista mostra que 97% deles são funcionários públicos.

— A causa da baixa produtividade é que, por via da força, transferiram ao Estado bens de propriedade privada que estavam em pleno funcionamento. E isso não deu resultados — indica Luis Alfonso Herrera, coordenador do Observatório da Propriedade.

Como aconteceu nos países em regimes socialistas clássicos, os níveis de produção não satisfazem o mercado, e a escassez disparou. Os cidadãos precisam enfrentar longas filas ou recorrer a mercados negros para adquirir produtos de primeira necessidade. No início deste mês, o instituto Datanálisis apresentou os dados numa pesquisa sobre o tema: 87% dos venezuelanos se dizem afetados pelo racionamento de produtos. Oficialmente, não há listas de racionamentos como aconteceu no Leste Europeu e continua acontecendo em Cuba, mas em estabelecimentos comerciais públicos e privados, mais de 30 produtos são vendidos com restrições, especialmente os de higiene pessoal e os alimentos. As empresas privada são afetadas por controles, o que diminui sua produtividade e capacidade de prestar serviços. Para comprar carros, obter um decodificador de TV a cabo ou passar por uma cirurgia é preciso se inscrever em lista de espera.

Outra pesquisa, da Hinterlaces, mostrou que 90% dos venezuelanos acreditam que é preciso uma aliança do governo com o setor privado para sair da crise. Isso parece mostrar que, assim como aconteceu nos países do bloco soviético, há um crescente desencanto com o modelo.

— Houve um esgotamento do sistema ideológico. Nos anos 1980, os cidadãos desses países deixaram de acreditar na doutrina marxista-leninista e nas ideias de sacrifício associadas a ela. Houve um grande ceticismo e cinismo — diz Demetrio Boersner, especialista em relações internacionais.

APOSTA NO APROFUNDAMENTO
A Venezuela se encontra atualmente em uma encruzilhada similar. Dar um giro em direção à economia de mercado, o que implicaria em privatizações e o levantamento da maior parte dos controles vigentes, entre eles o de câmbio e o de preços, ou aprofundar o modelo socialista com a esperança de encontrar uma receita para a produtividade que os países do bloco soviético nunca obtiveram. Até agora, o chavismo parece estar optando pela segunda opção.

Em 13 de dezembro de 2014, o presidente Nicolás Maduro se reuniu com intelectuais estrangeiros. Um deles é Alfredo Serrano Mancilla, espanhol que apresentou um trabalho intitulado “O pensamento econômico de Hugo Chávez”. Desde aquele dia, Serrano se manteve próximo de Maduro. Um informe do Bank of America publicado em 2 de julho afirma que Serrano tem uma “influência crescente” na formação da política econômica venezuelana.

Serrano considera que a “guerra econômica” denunciada por Maduro existe de verdade e é produto de uma burguesia importadora que aumenta os preços indiscriminadamente para tirar proveito do aumento do poder aquisitivo dos venezuelanos sob o chavismo. Isso porque já não podem se beneficiar da renda do petróleo, dominada pelo Estado. A falta de produtividade tampouco seria culpa do modelo econômico para Serrano, que acredita ser necessário criar um sistema em que a comuna seja “fundamental” para reduzir o domínio das empresas. “Ele defende um reforço dos controles de preço e se opõe à desvalorização do bolívar e outras medidas contra os desequilíbrios”, diz o Bank of America no seu informe.