Roberto Rachewsky
Viver sob o jugo de uma tirania é uma experiência intelectual extenuante. É como viver baseado em mentiras. A mente precisa a todo momento processar o que é fato e o que foi inventado para não se cair em contradição. Antes de cada coisa que vai se dizer, é preciso revisar tudo o que havia sido dito. É como um castelo de cartas, no qual cada uma delas precisa ser reajustada para receber a próxima.
Numa tirania, você acorda e vê alguém ser desprovido de seus direitos por algo que não há previsão legal para que a autoridade faça. É de súbito, é inédito, é arbitrário. Imediatamente você pensa, será que eu não fiz isso também? Então tenta vasculhar a mente para saber se aquilo que você fez que antes era legal, agora, pela vontade do tirano, não te tornou um fora-da-lei. Como no caso da mentira, cada ação, cada passo dado, cada carta posta, exige muita reflexão e muito cuidado para não ser pego na contramão.
O resultado disso é a imobilização crescente porque assim como nossa mente não foi feita para viver mentiras, ela também não foi feita viver no caos. Precisamos para viver, de regras previsíveis sobre as quais planejamos como agir no futuro remoto e imediato. As regras são para nosso futuro o que a realidade é para o nosso passado. Imaginem a angústia de se mover em um quarto escuro cheio de buracos no chão e pilares espalhados a esmo, não se sabe onde pisar e nem contra o que vamos bater a qualquer momento.
Hoje você diz ou faz algo que uma autoridade não gosta, sem lei alguma, pode vir uma retaliação inesperada, injusta, desproporcional. E pior, sem ter a quem recorrer porque a ação retaliatória foi tomada de pronto por aquele que deveria te defender se algo deste tipo acontecesse com você. Você pode pensar que isso não acontece com gente normal, com quem se comporta de forma comedida. Como você vai saber? Como você vai agir quando o governo ao qual o tirano é associado começar não a retaliar contra suas ações mas ele próprio começar a agir fazendo coisas inesperadas, injustas, legais ou ilegais?
Eu vivi dos 9 aos 30 anos durante a ditadura militar. Confesso que não foi nada confortável para quem acredita na liberdade, mas há um porém. Aquele estado de exceção, ou seja, o regime que usava excepcionalmente medidas arbitrárias, estava combatendo outro cujo arbítrio excepcional se tornava regra, se torna constante.
Quem não gostava da ditadura militar vai ver daqui para a frente o que o golpe de 1964 queria evitar, que se vivesse uma vida de mentiras, onde o passado é incerto e o futuro é obscuro. Sem a possibilidade de memorizar e planejar, nos tornamos animais irracionais, bichos de estimação vivendo sob as ordens dos nossos donos. Acham que estou exagerando? Já perderam a memória? Esqueceram o que viveram os chineses, os russos, os alemães, os checos, os chilenos, os cubanos, os cambojanos, os venezuelanos? Então só falta perder o futuro.