• Fernando Schüler
  • 03/11/2014
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RUPTURAS

 

A verdade é que o País sai dividido, dessas eleições. Ninguém deve se preocupar com os amigos que perdeu nas redes sociais. Se eram amigos de verdade, eles vão voltar. Deixa passar mais uma ou duas semanas, e tudo volta ao normal. Mas o País mudou, não tenho dúvidas.
O governo ganhou as eleições, mas o seu partido claramente perdeu a hegemonia sobre a classe média com maior escolaridade, nos centros urbanos brasileiros ”Hegemonia“ é uma palavra meio antiquada, mas serve, aqui, para dizer o seguinte: o governo perdeu o debate, a influência política, em um segmento da população em que, de fato, aconteceu um debate. O mais intenso debate desde a redemocratização.
Vejamos os números da eleição: nas capitais, Aécio fez 58%, contra 42% de Dilma. As últimas pesquisas indicava que Aécio alcançava pouco mais de 60%, contra pouco menos de 40% de Dilma Rousseff, entre os eleitores com nível superior. Esta semana, me chamou a atenção um infográfico sinalizando em vermelho, no mapa do Brasil, os pontos de maior circulação de mensagens na internet, referentes à eleição. As partes em vermelho correspondiam, grosso modo, às áreas em que Aécio venceu as eleições.
Diante disso, torcedores mais apaixonados da oposição dirão que “é óbvio”: pessoas com mais informação votaram em Aécio. Torcedores mais apaixonados do governo dirão, da mesma forma, que “é óbvio”: o pessoal que tem computador e internet é o mais rico, e os mais ricos votaram em Aécio. Por esse raciocínio, não foi a dependência ao bolsa família ou a maior vulnerabilidade diante do Estado, que levou milhões de eleitores muito pobres a depositar seu voto na candidata do governo. Foi algo como sua “consciência social”. Devo esta expressão a uma querida amiga, professora e apoiadora do PT. Perguntei se poderia usar a expressão “consciência de classe”, para os usuários do bolsa família, mas ela achou um pouco forte. E me sugeriu usar “consciência social”.
Cada pode formar seu juízo. O fato evidente é que o eleitorado com mais renda, maior escolaridade, mais conectado e urbano, tendeu a apoiar Aécio. O contrário ocorrendo com o eleitorado com menos renda, menor escolaridade e mais distante dos centros urbanos. Como a eleição já passou, talvez possamos pensar sobre os fatos com menos espírito de torcida, tentando tirar proveito (cada um como desejar), do aprendizado que a eleição oferece.
A perda de hegemonia da esquerda tradicional, liderada pelo PT, sobre parcela significativa da classe média, não se deu simplesmente pela ação de uma monstruosa onda conservadora. Pela ação dos “coxinhas”, “nazistas”, “filhinhos de papai” e todo o acervo de impropérios utilizados pelos partidários do governo, no calor da disputa política (o lado contrário igualmente gastou seu estoque de impropérios).
Penso que, um pouco mais abaixo da espuma ideológica, há um fenômeno novo nestas eleições. Trata-se do aparecimento, com alguma força e organicidade, de um pensamento de esquerda democrático e liberal, que decidiu romper com seu tradicional alinhamento ao petismo. Marina Silva é, por óbvio, o grande exemplo desta ruptura. Mas há muitos, bem representados nas figuras de Luiz Eduardo Soares, do Senador Cristovam Buarque e do ex-deputado federal do PT e hoje líder do PV, Eduardo Jorge. Estes vieram a se somar a muitos que há mais tempo seguiram o mesmo caminho, como Fernando Gabeira, Francisco Weffort, Augusto de Franco, José Álvaro Moisés e tantos membros do PPS (Roberto Freire a frente) e do PSB (Eduardo Campos a frente), bem como intelectuais e ativistas, em todo o País. E é sugestivo que, com o PT, tenha ficado o PSOL, a esquerda flash back dos anos 80.
A primeira grande geração que rompeu, ainda nos anos 80, com a esquerda tradicional, foi a dos próprios fundadores do PSDB. Fernando Henrique, Mário Covas, José Serra e tantos outros. Pessoas que perceberam que a agenda global havia mudado. Que era preciso modernizar o Estado, como requisito para a inserção soberana na economia globalizada. Que o muro de Berlim havia caído, e que era preciso aprender alguma coisa com a experiência bárbara do socialismo real. De certo modo, esta eleição propiciou um encontro (que em muitos casos é um reencontro). Entre aqueles que perceberam antes, e aqueles que foram, com o tempo, aprendendo coisas semelhantes, com seu próprio jeito e sua própria história.
A esquerda tradicional, como de hábito, optou pela saída fácil: todos que romperam nada mais fizeram do que se bandear (como se diz no Alegrete) para “a direita”. Em uma época em que o xingamento parece substituir qualquer reflexão politica, em especial nas rinhas de galo, na internet, dizer isto é realmente fácil. Serve para afugentar qualquer pensamento perigoso em relação a si mesmo.
Por esta lógica, o mundo político é como uma mesa de pingue-pongue. Tem dois lados, dois jogadores. Um é legal e defende todas as boas causas. O outro é o lobo mau, às vezes disfarçado de vovozinha, mas sempre querendo comer a chapeuzinho vermelho. Não é preciso dizer que, nesta narrativa, o jogador legal é sempre por alguma variante do petismo. E quanto mais dele você se afasta, mais você se transforma, como no pesadelo kafkiano, em um repugnante inseto.
Penso que a esquerda democrática, que teve a coragem de romper com o petismo, nestas eleições, o fez por algumas razões. A primeira delas diz respeito à questão ética. Há uma geração inteira de militantes petistas que prossegue criando razões para se autoconvencer que a ideologia é mais importante que a ética. Seres humanos são criativos e há muitas maneiras de fazer isto. Pode-se dizer que, afinal de contas, o roubo na Petrobrás, ou mesmo o mensalão, não foi tão grande como dizem; que era coisa de meia dúzia de malfeitores infiltrados no governo ou, na versão mais comum, apelar ao tradicional “todo mundo faz”. Na cabeça dessas pessoas, os “tucanos” só não foram processados, pelas suas incontáveis maracutaias, dado que foram mais espertos, e por que, à época do governo FHC, o Ministério Público estava amordaçado.
O raciocínio lembra muito minhas leituras juvenis de Orwell. A história “real” se confunde com a história “oficial” criada pelo marketing do partido. Dessa história, apaga-se, para citar um exemplo, a figura do Procurador Luiz Francisco de Souza, que, à época do Governo FHC, fez todas as denúncias e “investigações” imagináveis sobre dirigentes do então governo federal. Francisco virou astro nacional, espécie de ícone da moralidade jacobina, pelas suas denúncias contra Eduardo Jorge Caldas Pereira, então Ministro Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República. Do fim da história, poucos se lembram: Eduardo Jorge, absolvido de tudo; Francisco, punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público, pelo mais absoluto vazio de suas acusações. Vazio na história real, evidentemente. Na história oficial, tudo prossegue intacto: os grandes saqueadores só escaparam por sorte, esperteza, coisas que “todo mundo sabe, não é mesmo?”
A segunda razão diz respeito ao debate econômico. Marina Silva, novamente, deu o tom desta mudança. O ponto foi romper com a suposta contradição entre uma politica de mercado, que busca a eficiência do Estado e da economia, que compreende a importância da estabilidade, da segurança jurídica, da autonomia das agências reguladoras, bem como do Banco Central, e o desenvolvimento social do País. Ao contrário. Os programas sociais são fundamentais e devem se tornar politicas de estado, mas é o desenvolvimento econômico que irá reduzir a pobreza de modo sustentável. O foco é fazer o “mercado” chegar às mais diversas regiões do País, assim como uma educação de qualidade, de modo que pessoas possam viver por conta própria, e não apenas sobreviver na dependência ao Estado.
A terceira razão trata do “método” de fazer política. Vai ai a defesa de uma política tendencialmente mais “programática”, em troca do simples pragmatismo eleitoral. Na aceitação plena da democracia como um valor fundamental, com a renúncia às ideia de controle da mídia. Há ainda ideias mais sutis. Difíceis, na conjuntura política criada no País. Uma delas é o cuidado no trato com os adversários. O respeito, a prioridade do debate de ideias, sobre a simples agressão à honra. A negação da visão maniqueísta do “amigo/inimigo”, que hoje parece a face mais visível do (não) debate político nacional.
Talvez mesmo o conceito de “esquerda democrática”, usado neste artigo, seja um anacronismo. É possível usar outros conceitos. Me sugerem utilizar a ideia de uma visão “republicana e modernizante”. O foco seria a ruptura com nossa velha tradição patrimonialista, tão bem representa pelo atrelamento do sindicalismo oficial ao governo, pelo mito do líder providencial, alimentado por Lula, à exemplo do que fez o getulismo, entre os mais pobres e vulneráveis, diante do Estado.
Esta posição “republicana” não se define pelo vinculo a este ou aquele partido político. Ela pode vicejar em diversos partidos, em nenhum partido, ou pode gerar um tipo “diferente” de partido. Partidos são uma criação do século XVIII. No século XIX, o marxismo criou a ideia da representação de “classe social”. Esta ideia metafisica foi uma das vias da barbárie totalitária, no século XX, e hoje sobrevive como uma caricatura. Nas democracias pluralistas, partidos expressam, quando muito, um tipo de debate, enfatizam certas ideias e padrões de política pública. Estão longe de esgotar o tema da representação política, nos dias de hoje. A sociedade civil cresce, há causas que agregam as pessoas, há movimentos efêmeros, há regiões e “questões” a serem representadas. Há comunidades. A diversidade da representação política veio para ficar, e a democracia terá que se ajustar a ele.
Uma última razão, fundamental, da ruptura de uma posição republicana, com a esquerda tradicional, diz respeito à perspectiva internacional e os direitos humanos. A velha esquerda prossegue, como o sonâmbulo em um dia claro, a apoiar ativamente a sexagenária ditadura dos irmãos Castro, em Cuba, o Chavismo, na Venezuela, e a fazer vistas grossas, na ONU, à barbárie contra os direitos humanos praticada no Irã e em outros países fundamentalistas. Na fantasia da mesa de pingue pongue, o apoio da revista inglesa The Economist, a Aécio, foi prova de um imperdoável reacionarismo; o apoio do Jornal Gramna, do partido comunista cubano, a Dilma, é um exemplo de solidariedade sul-sul.
Quando escuto uma coisa dessas, me vem à mente, além da imagem do velho parlamento britânico, visto do Tâmisa, a lembrança de um escritor francês, Albert Camus. Em especial, me vem à mente as lições de “O Homem revoltado”, publicado em 1952. A principal delas, que marcou a ruptura definitiva de Camus com Sartre e a esquerda francesa tradicional, tratava da relação entre a política e a morte. Camus teimava em argumentar que nenhuma ideologia valia o suficiente para justificar a morte de um homem. Sua intransigência ética lhe impedia de continuar apoiando o stalinismo soviético, e suas variantes, e a quem apoiasse um regime sujo de sangue até a medula. Sartre e a esquerda tradicional diziam que isto não passava de “humanismo ao estilo da Cruz Vermelha.” Um preciosismo irrelevante diante dos imperativos da luta de classes, etc, etc.
Camus rompeu. Teve coragem. Sua questão era enxergar a face de um homem de verdade. E uma vez que o enxergasse, que escutasse sua historia, recusava-se a apaga-lo da memória. O discurso do partido não lhe fazia mais efeito. Havia descoberto toda a sua baboseira. E seguia seu rumo, simplesmente.