• Fernando Schüler
  • 09/02/2015
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PT, O PARTIDO DA TRADIÇÃO

 

(Artigo publicado originalmente na Revista Época, 09, 02,2015)
O PT é, de longe, o maior caso de sucesso na história do sistema partidário brasileiro. O Partido tem cinco governadores, a maior bancada na Câmara dos Deputados, e terá permanecido por 16 anos à frente do Governo Federal, quando se encerrar o mandato da Presidente Dilma Rousseff.

Sucesso que deriva, em primeiríssimo lugar, de seus próprios méritos. Partido com a maior e mais aguerrida militância, feito objeto de crença e via de ascensão social para milhares de pessoas, com um líder cujo carisma e senso estratégico não parece ter rival na política brasileira. Além disso, a sorte. O Partido governou o Brasil na época de ouro das commodities, na esteira da bem sucedida estabilização econômica do País, nos anos 90, e da grande mutação social que varreu a América Latina, no início do século, resultando na formação disso que se convencionou chamar de “nova classe média”.

Esta semana, o Partido comemora seus trinta e cinco anos. Em tempos sombrios. A economia parou, a miséria voltou a crescer, a corrupção não sai das manchetes, e nossa maior Empresa pública está na lona. Para qualquer partido, seria o fim. Não para o PT, que retribuirá ao País com uma grande festa, em Belo Horizonte. A frase mais ouvida, ao longo desses dias, será a de que o partido deve “voltar às origens”. Volta e meia, este discurso aparece. Lula faz cara de sério, restringe as aparições públicas, reúne antigos amigos para discutir a identidade do partido. Dá até uma boa mídia, isso tudo. Depois passa, e a política segue no ritmo de sempre.

O PT é um caso inédito, em nossa história, de resiliência política. Protagonista, em sequencia, de dois casos espetaculares de corrupção “sistêmica”, envolvendo ícones da vida brasileira, como a Petrobrás, o Partido não se abala. Não reconhece seus delitos, ganha as eleições, não perde parlamentares, transforma apenados em heróis, e seus militantes, alguns já meio grisalhos, continuam firmes, mandando ver, em geral nas redes sociais.

Em parte, a resiliência do Partido se explica nas alegorias que compõem a cultura política brasileira. Desde criancinha, aprendemos que a “direita” é sempre autoritária e corrupta, e a “esquerda”, sempre democrática e bem intencionada. O sujeito elogia os irmãos Castro e continua certo de que é um democrata (dia desses li um artigo chamando Kim Jong un de “líder moderno”, e ninguém achou estranho). O mito da esquerda x direita vem do fundo da nossa cultura. É ensinado pelos professores, no colégio, nas universidades, e aceito acriticamente por boa parte de nosso jornalismo político. O mito resiste aos fatos, e suas conseqüências são evidentes. A corrupção da esquerda é sempre “política”, e não “pessoal”. Por isso o sujeito pode ir pro xadrez, em um camburão da Polícia Federal, não sem antes erguer o braço esquerdo, punho cerrado. E a imagem ainda vira peça de campanha do partido.

A matriz ideológica do PT vem dos anos 80. Talvez da transição para os anos 80, período final e melancólico do ciclo autoritário brasileiro. Época de profundo vazio político, em que a velha tecnoburocracia civil-militar, instalada no poder, há muito perdera qualquer legitimidade, ao mesmo tempo em que a oposição democrática, liderada pelo MDB, formava uma frente heterogênea, de corte parlamentar, envelhecida, carente de programa ou utopia, incapaz de entusiasmar a juventude que voltava a se interessar pela política, no retorno da democracia.

Nesse ambiente, o PT surge como um extraordinário experimento de participação política. Partido ordenado sob estatutos democráticos, alternativos à normatização burocrática da LOP - Lei Orgânica dos Partidos. Organizado em células de base, com um amplo leque de correntes de opinião. O PT nasce como um grande partido de base não parlamentar, intenso no debate e na deliberação coletiva. Algo raro na história política brasileira. É evidente que isto iria se perder, à medida em que o Partido passa a ocupar, crescentemente, posições de Estado. Mas não totalmente.
Já nos anos 80, percebia-se o paradoxo: nascido “da sociedade”, e com uma estrutura moderna, o Partido cultiva uma visão programática pobre, recheada dos clichês tradicionais da esquerda acadêmica. Revolucionário sem revolução, socialista sem socialismo, o PT aprendeu, desde o início, a não levar muito a sério tudo que dizia e escrevia em seus documentos. As palavras estavam lá, a “estatização dos bancos e da indústria farmacêutica”, o “rompimento com o FMI.” Ninguém sabia bem o que isto significava, o que também não tinha a menor importância. Na constituinte de 1987/88, o Partido chegou a defender posições como a concessão de estabilidade no emprego pra todo mundo, no setor privado, aos noventa dias de trabalho. O curioso é perceber que até hoje, na lenda partidária, propostas “progressistas”, como esta, foram barradas pela maioria “conservadora“ que dominava a constituinte.

A ideologia cumpre, na história do PT, uma função ambivalente. O militante típico realmente acredita que políticas de “austeridade” são coisas do capeta, amaldiçoa os bancos, e vai passar o fim de semana exorcizando o “neoliberalismo”, na festa de Belo Horizonte. Ao mesmo tempo, Joaquim Levy está lá, no comando do ministério da Fazenda. Foi assim, em 2002, com a “Carta ao Povo Brasileiro”, e a posterior nomeação de Henrique Meireles para o Banco Central. Não há nada errado com isso. A ambivalência foi uma via para os grandes acertos do Partido. Da sabedoria em revisar, de quando em quando, suas posições. O problema é a ambivalência moral. O engano sistemático. Onde uma “ética da convicção” (para usar a expressão weberiana), fundada em um tipo de discurso, serve à militância, enquanto uma ética da responsabilidade, fundada na negação deste mesmo discurso, serve ao governo.
Uma segunda ambivalência diz respeito à visão republicana. Estridente no discurso ético em relação à esfera pública, desde o início, considerava perfeitamente normal colonizar estruturas sindicais e estudantis. Os anos 80 foi o tempo do pequeno patrimonialismo. Da máquina dos sindicatos, instituições públicas, usadas em proveito de um ente privado: o Partido. A justificativa? Muito fácil. Um, como o outro, não defendiam os mesmos “interesses de classe”? A ideologia como verniz do costume patrimonialista. Foi um bom exercício para o que viria depois.

Nos anos 90, os ventos da modernização econômica e da reforma do Estado chegaram ao Brasil. E o PT saiu atirando. Ficou contra o Plano Real, contra o modelo das Organizações Sociais, contra a privatização de empresas como a Embraer, Vale do Rio Doce e Cia Siderúrgica Nacional. Por um instante, penso no que teria ocorrido a todas estas empresas, caso permanecessem, até hoje, nas mãos do Governo. Talvez tivessem um destino melhor do que a Petrobrás. Difícil saber.

A rejeição da reforma do Estado, nos anos 90, estabeleceu as bases para a dicotomia que marca, há mais de duas décadas, a política brasileira. De um lado, a aposta na impessoalidade do Estado, no realismo fiscal, na autonomia das agências reguladoras. A ênfase na eficiência, na competitividade econômica e no realismo fiscal. Do outro, o capitalismo orientado pelo Estado, a política dos “campeões nacionais”, a explosão do gasto público, a defesa do modelo burocrático de gestão pública consagrado na constituição de 1988. Modelo da estabilidade rígida de emprego, das autarquias e repartições públicas prestadoras de serviços, da recusa da meritocracia no setor público.

É interessante como um partido nascido “na sociedade” tenha se tornado, gradativamente, porta voz de uma “ideologia do Estado”. Talvez isto decorra da influência que as corporações do setor público sempre tiveram, em seu interior. Talvez seja nosso passado colonial. Do Estado que sempre precedeu a sociedade, por estes trópicos. Seu traço mais característico é a permanente confusão entre o “público” e o “estatal”. O militante entoa slogans a favor da “educação pública e gratuita”, mas quando você vai ver o que ele quer dizer, descobre que é pura e simplesmente a defesa do modelo estatal de ensino. A agenda dos sindicatos de “trabalhadores da educação” no setor público. A mesmíssima agenda que colocou nossos alunos no 58º lugar na última edição PISA, entre 65 países avaliados.
Na área da saúde, o mesmo eufemismo. O sujeito defende a “saúde pública e gratuita”, mas basta raspar um pouco da tinta ideológica para descobrir que ele está falando, de fato, do sistema tradicional de hospitais estatais. O modelo não funciona, as filas estão cheias, os indicadores de atendimento são pífios, mas não dá nada. A classe média descobriu como se proteger, contratando planos privados de saúde e bons colégios particulares. Aos mais pobres, que não tem escolha, resta o Estado.

O PT não é, por óbvio, o único porta voz da ideologia do Estado. É apenas o seu campeão. Ela pertence ao cerne da nossa cultura política. Forma uma ideologia própria, com justificações à “esquerda“ e à “direita”. Vai daí o casamento harmonioso entre a liderança petista e nossas velhas oligarquias regionais.

Alberto Carlos Almeida, em seu A Cabeça do Brasileiro, mostrou a força do viés estatista e antiliberal, em nossa cultura. 51% da população mostrou-se favorável ao controle estatal dos bancos. O número vai num crescendo, até chegar a 77%, entre os analfabetos. 83% acha que o governo deve socorrer empresas em dificuldades, e mais da metade acha que o governo deve controlar os preços de todos os produtos. Almeida conclui dizendo que o Brasil é “hierárquico, familista, patrimonialista, e aprova tanto o jeitinho como um amplo leque de comportamentos similares”. Não deveria surpreender a ninguém um discurso anti-privatizações continue rendendo votos, ainda que contra toda evidência empírica. Tão pouco que o Partido consiga reeleger a presidenta da República, mesmo com seus dois últimos presidentes e seu tesoureiro na cadeia, por corrupção. O PT navega a favor, não contra, a tradição brasileira.