• Genaro Faria
  • 06/12/2015
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PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM

 

 O título é de um daqueles que um dia lemos quando ainda éramos tão jovens que ele mais nos impressionou do que nos ensinou. Não por culpa dele, mas da profundidade que nossa pouca idade não nos permitiria mergulhar.

 Mas não é dessa obra de estreia de Clarice Lispector, tão marcante na literatura brasileira, e em minha vida, que eu que falar. Não quero falar desse coração íntimo, no entanto tão estranho, que não aceita o desprezo do intelecto sem cobrar um preço devastador do ser humano. Sobre seu palpitar e a fúria selvagem com que se lança contra aquele que deveria ouvi-lo, mas o desdenha, é melhor abrir o livro de Clarice para ouvir suas advertências.

 Meu propósito é infinitamente mais modesto. Até porque, desde muito pequeno, eu tenho medo do escuro. E o lugar mais escuro do universo fica dentro de nós. Deve ser por isso que Deus plantou nele Seu mais insondável mistério.

 Não, eu quero falar de outra fera. Que é muito menos misteriosa. Essa fera coletiva, superficial, que se chama povo. Aparentemente, uma fera epidérmica, sem alma, racionalmente manipulável desde que se domine sua psicologia. Como se pode colocar um cabresto ou uma coleira e controlar os instintos de outros animais. Sim, outros, porque para os que assim cogitam, nós somos apenas mais uma espécie, quiçá, dotada de um intelecto mais inteligente. E por isso mesmo mais útil, porém mais rebelde. Difícil de ser domesticada.

Uma fera, portanto, que não tem nome. E muito menos, sobrenome. Que dirá uma história que as mais remotas lembranças poderiam contemplar, sob a pátina do tempo. Ou que a fotografia de um velho álbum de retratos possa testemunhar de um tempo findo, intangível, e por isso mesmo tão lindo.

É desse coração selvagem, mas perfeitamente domesticável, que cuidam os marqueteiros, bilionários, das campanhas eleitorais. Seu mister é produzir um boneco, ou uma boneca, que precisa vender que o produto dos concorrentes.

E vende mesmo, sobretudo se os ventos dos patrocinadores da campanha publicitária puderem soprar com mais força.

Mas o povo não é um coletivo de corações que se despreze, guardados em algum baú, no porão, como os bonecos de pano, bodoques e outros brinquedos da fantasia de nossa infância, sem vida, sem presente nem futuro. Mortos.

O povo é a soma de cada um dos corações selvagens, individuais e intransferíveis, que não se confundem com outros. Não se anulam.

É o indivíduo, cada um de nós que se insurge contra todo modelo que ignora essa natureza. Que por tão insondável, maravilhosa e única, inigualável, só pode ser divina.

Assim é o nosso coração selvagem. Para nos proteger dos bárbaro e, ao mesmo tempo, nos desafiar a voltar ao baú do porão para tirar de lá as asas da eternidade que esquecemos de voar.