Nota do editor: Desde o dia 15 de outubro, a Igreja tem 35 novos santos, dos quais 30 são brasileiros. Foram vítimas de massacres ocorridos em 1645, no início da ocupação holandesa no Nordeste. (P.P.)
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O feriado do dia 3 de outubro, no Rio Grande do Norte, tem várias versões: históricas, econômica, religiosa, etc, o que leva a incompreensão dos fatos por boa parte da maioria dos moradores das terras potiguares, ocasionando uma certa desvalorização da importância de um dos maiores massacres na história imposta pela colonização, que o país viveu.
Católicos do Rio Grande do Norte recordam, nesta data, o massacre dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu, mortos por holandeses no ano de 1645, por não aceitarem a imposição militar, cultural e da sua religião protestante calvinista, se tornando um momento ímpar da história potiguar de resistência, fé e de defesa dos princípios de liberdade. "Os mártires foram escolhidos como padroeiros do Rio Grande do Norte devido à importância do fato. Eles foram os primeiros mártires do Brasil, por isso o nome protomártires", explica Pe. Antônio Murilo de Paiva, capelão dos mártires.
Os episódios dos massacres de Cunhaú e Uruaçu ocorrem em meio a uma crise no mercado do açúcar, e ao levante de colonos portugueses e brasileiros contra o domínio holandês. Após tomarem a Fortaleza dos Reis Magos, em 1633, os holandeses passaram a chamar Natal de "Nova Amsterdã” e a Fortaleza de “Castelo Keulen”. O deslocamento das forças seguiu devastadora para o interior do estado.
Jacob Rabbi
Mas para contar essa trágica história, é preciso conhecer um personagem que tomou posição de destaque neste contexto: Jacob Rabbi. Ele era o comandante sanguinário da tropa de tapuias, potiguares e holandeses, inicialmente apontado como intérprete entre os holandeses e os tapuias.
Rabbi era alemão, natural do condado de Waldeck, emigrou para a Holanda onde foi contratado pela Companhia das Índias Ocidentais Holandesas. Quando veio para o Brasil permaneceu durante quatro anos vivendo entre aqueles indígenas e assimilou os costumes nativos, num verdadeiro processo “indianização”. Ele vivia com uma nativa Janduí de nome Domingas, num sítio de sua propriedade, chamado "Ceará".
Não demorou muito para que a história fosse testemunha da sua real função no país. Ele é considerado, pelos historiadores, como uma das figuras mais sinistra, abominável e hedionda do domínio holandês no Nordeste do Brasil. No comando das tropas de janduís e potiguares, Rabbi foi responsável por vários saques e chacinas em engenhos, entre as capitanias do Rio Grande, Paraíba e Pernambuco. Todos os assaltos, saques e morticínios dos índios janduís rendiam gado, roupa e jóias ao amigo Rabbi e como resultado, conseguiu acumular uma pequena fortuna.
Na noite de 4 de abril de 1646 Jacob Rabbi foi morto, em Natal, de modo violento a tiros e golpes de espada. A maioria dos historiadores defende que a morte de Jacob Rabbi foi planejada pela Companhia das Índias Ocidentais , com o intuito de dar um basta às atrocidades do alemão.
O Massacre de Cunhaú
Jacob Rabbi e um grupo de índios janduís e potiguares, além de soldados holandeses, chegaram ao engenho Cunhaú, atual município de Canguaretama, em 15 de julho de 1645. Ele se apresentou como emissário do Supremo Conselho Holandês de Recife e convocou a população para uma reunião, após a missa do dia seguinte, dia 16, um domingo, na capela de Nossa Senhora das Candeias. Conhecido dos moradores de Cunhaú, Rabbi era sinônimo de ódio e destruição por onde passava, provocando temores dos moradores.
Os historiadores estimam que 69 fiéis estavam presentes no lugar, cumprindo apenas o preceito religioso, não portando armas. Durante a celebração, após a elevação da hóstia, os soldados holandeses trancaram todas as portas da igreja. A um sinal de Rabbi, os índios invadiram o local e chacinaram os colonos.
Relatos posteriores, alguns deles de emissários do governo holandês que investigaram o episódio, descrevem cenas de violência, atrocidades e requintes de crueldade contra os fiéis. Desarmados, os colonos não tinham como resistir e se resignaram à morte. Atendendo a exortação do padre André de Soveral, que celebrava a missa, muito foram executados em meio as orações. O próprio padre foi morto a punhaladas. Antes de ser morto, ele ainda disse aos indígenas para não tocar nas pessoas ou nas imagens e objetos do altar, porque seriam cortadas as mãos e as partes do corpo de quem o fizessem. Com esta ameaça, os tapuias recuaram, mas os potiguares - menos supersticiosos e mais acostumados a religião dos portugueses - não se intimidaram e prosseguiram com o ataque.
Algumas pessoas se refugiaram na casa do engenho, mas tiveram um fim semelhante ao das que estavam na capela. Os flamengos e índios invadiram a casa. Houve certa resistência, três colonos conseguiram escapar pelo telhado, mas a superioridade numérica dos índios e dos holandeses acabou prevalecendo. Depois da chacina, o engenho foi saqueado.
Massacre de Uruaçu
As atrocidades continuaram no Rio Grande do Norte. Os acontecimentos de Cunhaú se espalharam rapidamente por toda a capitania do Rio Grande do Norte e capitanias vizinhas. A população ficou assustada e temia novos ataques dos tapuias e potiguares, instigados pelos holandeses.
O receio se confirmou. Três meses depois da tragédia de Cunhaú, no dia 03 de outubro, aconteceu o martírio de mais 80 pessoas, na Comunidade de Uruaçu, em São Gonçalo do Amarante, também sob o comando de Rabbi, ajudado pelo chefe da tribo potiguar Antônio Paraopaba, “educado” pelos holandeses.
Depois do massacre em Cunhaú alguns moradores influentes, liderados pelo padre Ambrósio Ferro, que exercia as funções de vigário de Natal, pediram abrigo no Castelo Keulen, nome dado a Fortaleza dos Três Reis Magos, em Natal. Os que não foram, construíram uma paliçada para proteger a localidade conhecida como Potengi. O número de moradores refugiados na paliçada é incerto. Para os cronistas portugueses eram 70 homens, mas documentos holandeses citam 232 pessoas.
Pesquisas em documentos holandeses e portugueses mostram que o cerco a paliçada do Potengi durou 16 dias. Foi iniciada em setembro pelo grupo de Jacob Rabbi e, depois, contou com reforços enviados pelo Castelo de Ceulen, incluindo duas peças de artilharia. O bombardeio forçou a rendição dos luso-brasileiros.
Ocupada a paliçada do Potengi, os holandeses levaram cinco reféns para o Castelo de Keulen. Os demais colonos ficaram confinados na paliçada. No dia 2 de outubro chegou a ordem do conselho holandês para executar os principais líderes dos colonos, desestimulando a revolta em terras do Rio Grande.
Não há comprovação dessa ordem, mas o fato é que no dia seguinte, 03 de outubro de 1645, foram levados para Uruaçu: Antônio Vilela, Cid, seu filho, Antônio Vilela Júnior, João Lostau Navarro, Francisco de Bastos, José do Porto, Diogo Pereira, Estevão Machado de Miranda, Francisco Mendes Pereira, Vicente de Souza Pereira, João da Silveira, Simão Correia e o próprio padre Ambrósio Francisco Ferro, e foram todos executados.
Os relatos citam que ao chegar em Uruaçu, a tropa formou um quadrado e, no interior ficaram o sacerdote mais os colonos. Foi dada a ordem para que eles se despissem e se ajoelhassem. Jacob Rabbi chamou os nativos para que eles completassem o massacre. A crueldade foi ainda maior, braços e pernas foram decepadas, crianças foram partidas ao meio e grande parte dos corpos foram degolados.
À morte deles, segue-se a chacina dos que estavam refugiados em Potengi, depois de terem sido retirados da paliçada e levados para o mesmo porto.
O local exato do segundo massacre de colonos no Rio Grande do Norte, o antigo porto de Uruaçu, ainda é uma incógnita e motivo de controvérsias entre pesquisadores e historiadores. A dificuldade está no fato de que Uruaçu não tinha propriamente um local de moradia, como em Cunhaú. Era apenas um porto às margens do rio Potengi-Jundiaí, para quem ia ao engenho Potengi. Aponta-se que o lugar do morticínio ficava a aproximadamente 1 km de distância do povoado e era denominado “Tinguijada”, área onde hoje abriga o Monumento dos Mártires de Uruaçu.
Religiosidade
Em reconhecimento ao feito dos Mártires de Uruaçu, em 16 de junho de 1989 o processo de beatificação foi concedido pela Santa Sé. Em 21 de dezembro de 1998 o papa João Paulo II assinou o decreto reconhecendo o martírio de 30 brasileiros, sendo dois sacerdotes e 28 leigos.
Em março de 2000, o papa João Paulo II beatificou os mártires de Cunhaú e Uruaçu como exemplos de fé cristã e defensores da Igreja Católica. Naquele ano, o Governo do Estado, em resposta à uma solicitação da Arquidiocese de Natal, decretou o feriado de 3 de outubro. A data é simbólica.
Atualmente, os mártires são lembrados em duas datas, no dia 16 de julho em Canguaretama, e dia 3 de outubro em São Gonçalo do Amarante.
São lugares de romarias e peregrinações a Capela dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu em São Gonçalo do Amarante; o Santuário dos Mártires, no bairro Nossa Senhora de Nazaré em Natal, e a capela de Nossa Senhora das Candeias no antigo engenho de Cunhaú.
A carta
As atrocidades dessa chacina foi narrada por diversos cronistas da época. Exemplo disso é a carta de Lopo Curaro Garro de 1645. Veja a descrição.
* Publicado originalmente no dia 03/10/2015 em http://clebiomedeiros.blogspot.com.br/