"Quando teníamos todas las respuestas se cambiaram las perguntas" ( frase pichada em um muro, em Quito, Equador, logo após a queda do socialismo real )
"O Furor e o Delírio" é o título de um livro escrito por Jorge Masetti, editado em 1999 na Espanha. Jorge Masetti, nascido na Argentina, é filho de Ricardo Masetti, jornalista argentino que chegou a Cuba em 8 de janeiro de 1960, com sua mulher e filho, então um menino, no mesmo dia em que Fidel Castro entrava em Havana à frente de seus guerrilheiros.
Nesse mesmo ano Ricardo Masetti fundou a agência de notícias "Prensa Latina", que existe até hoje. Tornou-se amigo de Che Guevara e, em 1965, foi mandado para chefiar um grupo guerrilheiro em Salta, Argentina, onde foi morto.
O menino Jorge Masetti, então com 9 anos, tornou-se um protegido de Manuel Piñero Losada, responsável pelos Serviços de Inteligência de Cuba. Posteriormente, ainda muito jovem, com 17 anos, recebeu treinamento armado e passou a integrar o Departamento América (órgão de Inteligência vinculado ao Comitê Central do Partido Comunista Cubano), sob as ordens de Piñero.
Durante toda sua vida desempenhou atividades clandestinas em diversos países da América e África, bem como lutou na Nicarágua junto às forças da frente Sandinista de Libertação Nacional.
Um dos capítulos do livro (páginas 134 a 137), refere-se às suas atividades no México, nos anos de 1981. Esse relato revela a estratégia empregada pelo Departamento América e o apoio aos grupos guerrilheiros de então, na América Latina, bem como as atividades desenvolvidas para conseguir dinheiro, "de qualquer jeito".
"Minhas tarefas foram diversificadas cada vez mais. Fui encarregado de conseguir contatos que nos emprestassem seus nomes para abrir contas bancárias que utilizaríamos para depositar o dinheiro que obtínhamos com o que chamávamos de "centrífugas", operações que consistiam em facilidades a todos os que viajavam a Cuba através do Departamento, fornecendo dinheiro mexicano para que comprassem os 500 dólares autorizados pelo governo. Eu trocava esses dólares no câmbio negro e os depositava nessas contas e, após, comprávamos dólares novamente. Então, a diferença entre o preço do dólar oficial e o negro era de quase cem por cento. Viajavam a Cuba cerca de 20 a 30 pessoas por semana.
Posteriormente, começamos também a utilizar essas contas para depositar o dinheiro que as organizações revolucionárias da América Latina colocavam aos cuidados de Cuba.
Essa era uma forma de conseguir autofinanciamento para complementar o estreito orçamento oficial. Desde Cuba, as pressões eram cada vez maiores para que conseguíssemos, de qualquer maneira, divisas. A partir de então, começamos a desenvolver todos os tipos de atividades, cada vez mais comprometedoras.
De Havana recebemos ordem para prestar apoio técnico a grupos guerrilheiros latino-americanos que operavam no México. Desde assaltos a bancos até a joalherias. O responsável em Cuba era Armando Campos, Primeiro Vice-Chefe do Departamento América ( Armando Campos Ginestra responde, até hoje, por uma das chefias do Departamento América ).
O êxito de algumas operações montadas por esses grupos em outras latitudes estimulou Cuba a lançar-se, indiscriminadamente, a esse tipo de atividades, dando apoio financeiro e logístico em qualquer país. O México, por suas facilidades para emigrar, ineficiência policial, pela densidade da sua população e pela presença de um numeroso exílio, apresentava vantagens excepcionais.
Aquilo que começou sendo uma atitude conjuntural converteu-se em tarefa permanente e. por que não admití-lo, em um fim em si mesmo. Houve companheiros que se especializaram nesse tipo de missões, gerando o desenvolvimento de uma bandidagem revolucionária. Essas ações outorgavam um poder, uma capacidade de manipulação e uma autonomia de recursos muito acima das que dispunham o restante dos militantes, inclusive aqueles que se encontravam em uma verdadeira situação de clandestinidade em seus países.
Essas operações permitiam a Cuba não só reduzir a ajuda que desembolsava, como, também, como administradora desses fundos, arrogar-se ao direito de dispor de maiores orçamentos para apoiar o movimento revolucionário que desejasse e, inclusive, financiar os deslocamentos dos funcionários do Departamento América. A princípio, a colaboração não era de grande envergadura. A mala diplomática era utilizada para introduzir o armamento necessário, mas logo começou a colaboração em matéria de informações e, inclusive, colocávamos em contato grupos de origens distintas para desenvolver operações de maior alcance e estimulávamos aquelas organizações que ainda não estavam implicadas nesse tipo de atividades a preparar grupos especiais. Nós, do escritório do México, em mais de uma oportunidade lhes demos apoio e facilitamos contatos.
Recordo que uma vez um dos funcionários que trabalhavam com Armando Campos viajou ao México e tentou recrutar-me para que me incorporasse diretamente com um desses grupos, o que não foi aceito pelo meu chefe imediato na embaixada: "Alejandro" ( Armando Coma. Seria Fernando Pascual Comas Perez, até hoje integrante do Departamento América ).
Nós dávamos apoio e entregávamos aos grupos operacionais o que chegava de Havana: armas, dinheiro para a montagem das operações e passagens, caso algum deles tivesse que viajar a Cuba para entrevistar-se diretamente com Armando.
Recordo de uma vez, quando entregamos armas. Nessa mesma semana foram assaltados dois bancos que estavam na mesma esquina, em Concepción Beistegui com Avenida Coyoacán. A imprensa comentava que, pelo nível de especialização e sangue frio dos atacantes, só poderia tratar-se de ex-policiais afastados. Nós sabíamos de quem se tratava e, poucos dias depois, obtínhamos a confirmação quando a pessoa à qual havíamos entregado as armas nos passou uma soma de "traveler's checks" em banco para que os negociássemos.
Os assaltos continuaram e, na mesma medida, a introdução de armas e as viagens dos funcionários que trabalhavam com Armando.
Em uma ocasião, também, demos apoio a um grupo de "Los Macheteros", que lutava pela independência de Porto Rico".
Posteriormente, em 1988, em Havana, "Tony de La Guardia" ( como era conhecido o Coronel Antonio de La Guardia, com cuja filha, Ileana, Jorge Masetti posteriormente se casou ), que lutara no Líbano e na Nicarágua e que no Chile, durante o Governo Allende, chefiara um grupo cubano das Forças Especiais, dirigia um grupo que dependia da DGI ( "Direción General de Informaciones" ). Esse grupo tinha por tarefa tentar romper o bloqueio norte-americano obtendo tecnologia para os diversos ramos da indústria e da medicina. Devia também buscar divisas de qualquer forma, pois Cuba não contava com o orçamento necessário para a aquisição do abastecimento de que precisavam os diversos ministérios. O nome da seção especial dirigida por "Tony", no seio da DGI, era MC, que significava “moeda conversível", ou seja, Fidel Castro lhe havia outorgado uma espécie de "patente de corsário" para buscar dinheiro.
Antonio de La Guardia viria a ser julgado e fuzilado em 1989, em Havana, pois na sua busca por "moeda conversível", para atender às necessidades cada vez maiores do Estado cubano, foi acusado de "ligação com o narcotráfico".
Em 1990, Jorge Masetti e Ileana exilaram-se na Espanha, onde vivem atualmente.
No final do livro, Jorge Masrtti faz uma autocrítica demolidora:
"Quando observo o que foi a minha vida e a de tantos outros, caio em conta de que a revolução não foi mais que um pretexto para cometer as piores atrocidades tirando-lhe todo vestígio de culpabilidade. Escudávamo-nos na meta de buscar fazer o bem à humanidade, meta que era uma falácia. Éramos jovens irresponsáveis, aventureiros. Éramos uma casta à parte, inclusive à parte dos revolucionários que operavam localmente em seus países, os quais se viram obrigados a adotar a luta armada pelas circunstâncias políticas. Nós, em troca, éramos uma mescla de James Bond com umas gotas de marxismo muito superficiais, aos quais tudo era permitido, sobretudo viver de maneira diferente de como o faziam os militantes que realizavam o obscuro e anônimo trabalho de massas para construir uma organização política. Éramos a vanguarda da revolução cubana, os meninos mimados de Fidel e de Manuel Piñero, que não fomos eleitos nem por nossa inserção nas massas nem por nosso espírito de sacrifício cotidiano. Éramos eleitos por não pertencer a nada, sem religião nem bandeira, com uma capacidade de aventura muito desenvolvida e com um grau de cinismo não menos importante. Hoje, posso afirmar que por sorte não ganhamos, pois, caso contrário, tendo em conta nossa formação e o grau de dependência com Cuba, teríamos afogado o continente em uma barbárie generalizada. Uma de nossas palavras de ordem era fazer da Cordilheira dos Andes a "Sierra Maestra" da América Latina, onde, primeiro, teríamos fuzilado os militares, depois os opositores, e logo os companheiros que se opusessem ao nosso autoritarismo. Eu sou consciente de que atuaria dessa forma.
É muito cômodo invocar o argumento de que fomos manipulados, como é muito cômodo, também, escudar-se por trás das lutas contra as ditaduras militares para justificar os abusos. É necessário revelar a parte obscura, essa parte inconsciente relacionada com a fascinação pelo poder, vizinha da tendência de praticar a crueldade, porque não só tratamos de destruir nossos inimigos, como destruímos nossos companheiros, nossos filhos e os colaboradores. Em realidade, durante todos esses anos de luta, destruímos sem construir nada. Nós vivíamos num mundo fechado entre nós, freqüentando lugares especiais onde só íamos nós. Eu não ia a pizzarias, onde come todo o mundo. Eu freqüentava os restaurantes onde comiam os chefes. Esse era o meu mundo.
O que eu vivi desde minha chegada a Cuba será sempre uma ferida aberta. Uma fratura entre o antes e o depois. Entre as ilusões do furor guevarista, o delírio da luta armada e a época do desencanto".
No livro de Jorge Masetti podem ser encontradas as raízes, em 1982 / 1983, no México, da estratégia dos Serviços de Inteligência de Cuba no apoio a "operações" em toda América Latina, a fim de buscar equilibrar os orçamentos do país. São essas as origens dos seqüestros de Abílio Diniz, do banqueiro Beltran Martinez e dos publicitários José Salles, Geraldo Alonso e Washington Olivetto, no Brasil; de Christian Edwards Del Rio ( filho do dono do jornal "El Mercurio"), no Chile; e outros, no Panamá e no México, todos utilizando a mão-de-obra ociosa de antigos revolucionários do continente. Nesses seqüestros, como não é segredo, os Serviços de Inteligência de Cuba sempre atuaram nos bastidores.