Nota do editor: Se você não quer apenas “achar” isto ou aquilo sobre legalização, leia até o fim.
É possível observar uma progressão das mentalidades: num primeiro momento, o impensável se torna pensável. Mais tarde, torna-se uma ortodoxia cuja verdade parecerá tão óbvia que ninguém mais ousará lembrar que alguém já pensou a coisa de forma diferente. É exatamente isso que está acontecendo com a ideia sobre a legalização das drogas, sobre a qual já se chegou ao estágio no qual milhões de cérebros estão em unânime acordo. Deve-se permitir o consumo daquilo que as pessoas queiram usa, essa é a solução óbvia, e de fato a única diante dos problemas sociais que surgem do consumo de narcóticos.
O desejo que as pessoas têm de consumir substâncias que alteram o estado de consciência é tão antigo quanto a própria sociedade – como são antigas as tentativas para regulamentar seu consumo. Se, de uma forma ou de outra, o uso de substâncias desse tipo é inevitável, então, o mesmo vale para as restrições habituais ou legais contrárias ao seu consumo. No entanto, antes da nossa, nenhuma outra sociedade teve que lidar com quantidades tão gigantescas de entorpecentes, aliada a uma histeria coletiva que exige a garantia de direitos associados a prazeres pessoais cada vez mais ampliados.
Os argumentos favoráveis à legalização das drogas têm dois vieses: um filosófico e outro pragmático. Nenhum deles é desprezível, mas creio que sejam equivocados e errem o alvo.
O argumento filosófico diz que, numa sociedade livre, deve ser permitido aos adultos fazerem o que lhes agrade, levando-se em conta que estejam preparados para assumir as consequências de suas próprias escolhas, e que não prejudiquem ou causem danos diretos a terceiros. O lócus classicus desse entendimento é o famoso ensaio de John Stuart Mill, Sobre a Liberdade: “O único propósito com o qual se legitima o poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é evitar danos aos demais”, Mill escreve. “Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é garantia suficiente.” Esse individualismo radical não confere à sociedade qualquer parte de modelação, determinação ou aplicação de um código moral: em resumo, não temos nada em comum, a não ser nosso acordo contratual para não interferimos nas vidas uns dos outros, enquanto prosseguimos em busca de nossos prazeres privados.
Na prática, contudo, é extremamente difícil garantir que as pessoas assumam todas as consequências de seus próprios atos – como elas deveriam fazer, caso o grande princípio de Mill pudesse servir com um guia filosófico para a tomada de decisões políticas. A dependência química ou o uso regular de drogas não afeta apenas a pessoa que as consome, uma vez que não poupa cônjuges, filhos, vizinhos e empregadores de sofrerem consequências. Nenhum homem, com a possível exceção de um eremita, é uma ilha. Assim, é praticamente impossível que o princípio de Mill possa ser aplicado a qualquer ação humana, e muito menos aos casos de consumo de heroína ou crack. Um princípio como esse é quase inútil em determinar o que deveria e o que não deveria ser permitido.
Talvez não devêssemos ser tão duros com o princípio de Mill, já que não está claro que alguém tenha pensado algo melhor. Mas é precisamente esse o ponto. As questões humanas não podem ser resolvidas a partir do apelo exercido por uma regra que se apresente como infalível, e que esteja expressa em poucas palavras, cuja simples aplicação seria capaz de resolver todos os casos, incluindo se o consumo de drogas deve ou não ser liberado para a população adulta. Fundamentalismo filosófico não é preferível à variante religiosa, e uma vez que os anseios da vida humana são muitos, e eles quase sempre estão em conflitos entre si, a mera inconsistência filosófica das políticas adotadas – tal como permitir o consumo de álcool enquanto se proíbe o consumo de cocaína – não é um argumento suficiente contra essa política. Todos valorizamos a liberdade e a ordem; por vezes sacrificamos a liberdade em nome da ordem, e por outras sacrificamos a ordem em nome da liberdade. Mas uma vez que não haja mais proibição, é muito difícil restaurá-la, mesmo quando a nova liberdade adquirida prova ser equivocada e socialmente desastrosa.
Mill chegou a perceber as limitações de seu princípio como um guia para a aplicação de políticas e negou que todos os prazeres tivessem um significado igual para a existência humana. Melhor seria um Sócrates descontente a um tolo satisfeito, ele disse. Mill reconheceu que alguns objetivos eram intrinsecamente mais valiosos que outros.
Assim sendo, nem todas as liberdades se equiparam, tampouco se equiparam as limitações de liberdade, pois algumas são sérias e outras triviais. A liberdade de que desfrutamos – ou de que deveríamos desfrutar – não compreende somente a satisfação de nossos apetites, sejam lá quais forem eles. Não somos Harold Skimpole de Dickens, exclamando em protesto que “até as borboletas são livres!”. Não somos crianças irritadas com restrições apenas por serem restrições. E chegamos mesmo a reconhecer o aparente paradoxo de que algumas limitações impostas sobre nossas liberdades nos tornaram, afinal de contas, mais livres. O homem mais livre não é aquele que, servilmente, obedece aos seus apetites e desejos por toda a vida – como um bom número de meus pacientes acaba descobrindo depois de muito sofrimento.
Estamos preparados a aceitar limites em nossas liberdades por muitos motivos, e não apenas pelos motivos que emanam da ordem pública. Tomemos um caso hipotético e radical: exibições públicas de necrofilia não são, felizmente, permitidas, embora, segundo o princípio de Mill, elas devessem ser. Um cadáver não tem interesses e não pode sofrer danos, já que não é mais uma pessoa, e nenhum membro da comunidade seria prejudicado caso concordasse livremente em ir a uma exibição como essa.
Além do mais, nossa decisão em proibir exceções como esta não seria alterada caso descobríssemos que milhões de pessoas desejassem assisti-las ou mesmo caso descobríssemos que milhões de sujeitos já tiverem de fato participando ilegalmente dessas exibições. Nossa objeção não se baseia em considerações pragmáticas ou no número de cabeças, e sim no equívoco das exibições como tal. O fato de a proibição representar uma restrição genuína sobre nossa liberdade não conta nesse caso.
Pode ser defendido que a liberdade de escolher entre uma variedade de substâncias tóxicas é uma liberdade muito mais importante, na qual milhões de pessoas desfrutam de um divertimento inocente ao consumir estimulantes e narcóticos. Mas o consumo de drogas tem o efeito de reduzir a liberdade das pessoas, ao reduzir drasticamente o âmbito de seus interesses. O consumo prejudica a busca de objetivos humanos mais importantes, tais como constituir uma família e cumprir obrigações públicas. Muito frequentemente prejudica a habilidade de construir uma vida profissional e promove o parasitismo. Além do mais, longe de expandir a consciência, a maior parte das drogas a limita. Uma das características mais universais dos drogados é a forma intensa e tediosa como ficam absortos em si mesmos, e as jornadas que empreendem ao espaço interior são geralmente incursões a vácuos internos. Consumir droga é uma forma preguiçosa de buscar felicidade e sabedoria, e esse atalho acaba se tornando a mais sem saída das ruas sem saída. Perdemos realmente muito pouco com a proibição do consumo de drogas.
A ideia de que a liberdade é mera habilidade de um sujeito em fazer valer os seus caprichos é um tanto quanto rasa, e mal consegue capturar as complexidades da existência humana; um homem cujos apetites são sua lei nos chama a atenção não como alguém liberto, porém escravizado. E quando uma liberdade tão estreitamente concebida transforma-se no critério das políticas públicas, a dissolução da sociedade estará próxima. Nenhuma cultura que tenha na autoindulgência publicamente sancionada o seu mais alto bem pode sobreviver por muito tempo, e um egotismo radical será desencadeado, no qual quaisquer limites sobre o comportamento pessoal serão experimentados como infrações contra direitos básicos. Perceber as distinções entre o importante e o trivial, entre a liberdade de criticar ideias recebidas e a liberdade para se consumir LSD, por exemplo, é o tipo de discernimento que mantém as sociedades livres do barbarismo.
Dessa forma, a legalização das drogas não pode ser defendida a partir de um princípio filosófico. Mas caso o argumento prático a favor da legalização fosse suficientemente forte, ele poderia facilmente sobrepujar outras objeções. É sobre esse argumento que grande parte dos defensores da legalização sustenta, de que a maciça maioria dos danos causados à sociedade pelo atual consumo ilícito de drogas não se deve às propriedades farmacológicas dos entorpecentes, e sim à própria proibição e à decorrente atividade criminal que a proibição acaba encetando. Uma simples reflexão nos diz que uma oferta invariavelmente cresce a fim de suprir uma demanda; e quando a demanda é disseminada, a supressão se torna inútil. De fato, essa supressão se torna danosa, uma vez que – ao subir o preço do bem em questão – ela aumenta os lucros dos intermediários, o que lhes traz incentivos ainda mais poderosos para estimular futuras demandas. Os enormes lucros acumulados do mercado da cocaína e da heroína – não fosse pela ilegalidade, essas substâncias seriam mais baratas e facilmente obtidas pelos mais pobres no universo das sociedades ricas – exercem um efeito profundamente corruptor sobre produtores, distribuidores, consumidores e, também, sobre agentes policiais e legais. Além disso, é bem conhecido que a ilegalidade, em si mesma, apresenta atrativos para a juventude já inclinada à rebeldia. Muitos dos danosos efeitos físicos das drogas ilícitas são provenientes de seu status ilegal, por exemplo, os diferentes graus de pureza e impureza da heroína que circula nas ruas são responsáveis por muitas mortes por overdose. Se a venda e o consumo dessas drogas fossem legalizados, os consumidores teriam mais controle sobre as doses reais e, portanto, evitariam as overdoses.
Além do mais, uma vez que a sociedade já permite o uso de algumas substâncias alteradoras do estado de consciência, as quais causam dependência e são nocivas, tais como o álcool e a nicotina, a proibição de outras pode parecer hipócrita, arbitrária e ditatorial. Sua hipocrisia, como também seu patente fracasso em aplicar com êxito as proibições, leva inevitavelmente a um declínio no respeito às leis como um todo. Então, tudo se parte, o centro não se sustenta.
Portanto, parece razoável pensar que todos esses problemas seriam resolvidos de uma só vez, caso fosse permitido que as pessoas fumassem, ingerissem, cheirassem ou injetassem o que quisessem. A corrupção policial, a cooptação de crianças de onze e doze anos em atividades ilegais, a acumulação de fortunas pelo tráfico, que faz o trabalho honesto e tolo parecer e sem sentido por comparação, as guerras contra as gangues que tornam os bairros excessivamente violentos e perigosos, todas essas coisas cessariam de uma só vez, caso houvesse a descriminação das drogas, e caso o fornecimento fosse regulado da mesma forma que o álcool.
Mas certa modéstia diante de um futuro inerentemente desconhecido é aconselhável. Esse é o motivo pelo qual a prudência é uma virtude política. O que a razão pensa que deveria acontecer nem sempre acontece, necessariamente, na prática. Mas, como disse Goethe, toda teoria, meu amigo (incluindo teorias do livre mercado e teorias monetárias), é cinza. E verde a árvore dourada da vida. Caso as drogas sejam legalizadas, creio que a árvore dourada da vida frutificará algumas surpresas bastante desagradáveis.
É certamente verdade, mas apenas de forma trivial, que a atual ilegalidade das drogas é o que mantém a criminalidade que domina a sua distribuição. O mesmo acontece com a ilegalidade do roubo de veículos, cuja existência cria os ladrões de carro. De fato, a causa primeira de toda criminalidade é a lei. Até onde sei, nem por isso ninguém jamais sugeriu que a lei devesse ser abandonada. Além do mais, a impossibilidade de vencer a “guerra” contra os furtos, roubos e assaltos e fraudes nunca foi usada como argumento para se revogar a criminalidade dessas práticas. E desde que uma demanda por bens materiais supere a sua oferta, as pessoas ficarão tentadas a cometer atos criminosos contra a propriedade privada, ou um que favoreça a propriedade comum de todos os bens. Todavia, o argumento sugere que continuaremos precisando de uma força policial por um bom tempo.
De qualquer forma, há motivos para se duvidar se realmente o índice de criminalidade cairia abruptamente como os defensores da legalização costumam sugerir. Amsterdã, onde o acesso às drogas é relativamente aberto, está entre as cidades mais violentas e sórdidas da Europa. A ideia que está pode trás do crime – de ficar rico, ou ao menos mais rico, depressa e sem muito esforço – pouco provavelmente desaparecerá uma vez que as drogas se tornem livres e disponíveis a todos que queiram consumir. E pode ser que um comportamento antissocial oficialmente sancionado – a supressão oficial dos tabus – gere novas formas de comportamento antissocial, como sugere a teoria das “janelas quebradas”.
Tendo conhecido muitos traficantes, duvido que essas pessoas vivam de forma respeitável caso o principal produto de seu negócio seja legalizado. Longe de mostrar um desejo de serem reincorporados ao mundo do trabalho regular, eles expressam um profundo desprezo por ele, e consideram aqueles que aceitam a barganha de um honesto dia de trabalho em troca de um pagamento honesto como covardes e estúpidos. Uma vida criminosa tem os seus atrativos para muito que, de outra forma, levariam uma existência mundana. Desde que haja a possibilidade de lucrativos expedientes criminosos como o tráfico ilegal de entorpecentes, entre outros, essas pessoas irão se envolver nessas atividades, ampliando-as. Portanto, embora os favoráveis à legalização hesitem diante da perspectiva de permitir o consumo de drogas para as crianças, a descriminação pode resultar facilmente na criação de um mercado, entre os traficantes, que vise mais e mais ao público infantil, o qual – na atmosfera permissiva que já prevalece – foi introduzido à subcultura das drogas em números absolutamente alarmantes.
Aqueles que não estão envolvidos com o tráfico de drogas, mas que cometem crimes a fim de financiar o consumo pessoal de entorpecentes são, por certo, mais numerosos do que os traficantes de larga escala. É verdade que uma vez que esses viciados em ópio, por exemplo, participem de programas de tratamento, os quais em geral incluem a manutenção de pequenas doses de metadona, constata-se que o índice de seus crimes cai drasticamente. A clínica para drogados em meu hospital alega uma redução de 80% nas condenações por crimes entre os dependentes de heroína, ao serem estabilizados com metadona.
Esse é um dado impressionante, mas não é certo que os resultados possam ser generalizados. Em primeiro lugar, esses pacientes estão lá por conta própria, ou seja, já têm alguma motivação para querer mudar, caso contrário eles não estariam na clínica. Apenas uma pequena minoria dos dependentes ingressa nesse tipo de tratamento, portanto não é seguro concluir que, caso outros dependentes recebessem a metadona, sua atividade criminosa também diminuiria.
Em segundo lugar, um declínio nas condenações não corresponde necessariamente a um declínio na criminalidade. Se a metadona de fato estabiliza a vida de um viciado, pode ser que ele se torne um criminoso mais eficiente e ardiloso. Além do mais, quando a polícia em nossas cidades prende um viciado, há uma grande possibilidade de ele escapar de qualquer processo caso prove que está passando por algo que remotamente se assemelhe a um tratamento psiquiátrico. As autoridades o levam diretamente ao médico. Ter passado por uma consulta psiquiátrica é um álibi bastante funcional para o assaltante ou ladrão; a polícia, que não quer preencher mais de quarenta formulários que agora são necessários para se processar alguém, sobre qualquer coisa, na Inglaterra, considera um único contato com um psiquiatra um motivo suficiente para privar o sujeito de qualquer responsabilidade criminosa para sempre.
• Médico psiquiatra e escritor brtânico.