Termos como carisma popularidade e desempenho muitas vezes são tratados como sinônimos de legitimidade, conceito central da teoria da política.
Legitimidade conota a ideia de correção, justiça, obrigação moral que são internalizados pelos indivíduos, isto é são incorporados à sua consciência como valores pessoais, como princípios para orientar suas ações.
Pela internalização desses valores incorporam também o sentimento de que eles devem ser respeitados, sob pena de tornar-se réu e culpado no Tribunal de sua consciência.
Assim ocorre também com os princípios que regem nossas relações pessoais. Nós internalizamos regras de convívio em sociedade e de relacionamento pessoal que, se contrariadas seremos punidos por aquela sanção moral de foro íntimo.
A internalização de normas tem, portanto, o poder de dispensar ou reduzir o uso de sanções externas para assegurar o seu cumprimento. Se os alunos internalizaram a norma de que “não se pode colar”, o professor pode deixá-los as sós que não vão colar. De forma análoga, o trânsito seria absolutamente inviável se a maioria dos motoristas não obedecesse as suas regras voluntariamente.
“Quanto mais legítimo for o sistema político, menos ele terá que recorrer à coerção, para assegurar o cumprimento de suas leis e, inversamente, quanto menos legítimo, mais dependerá da coerção para se fazer respeitado”
Esta é uma regra universal da política, válida em todos os tempos e lugares. Não é por outra razão que todos os regimes buscam dotar a sua autoridade de legitimidade.
O sistema político ilegítimo, isto é, em conflito com os valores mais importantes de sua população, somente se sustenta com base na coerção; no uso ou ameaça de uso da coerção física.
Apoiar uma ordem política na coerção tem um custo muito elevado, seja para garantir a estabilidade das instituições, seja no custo econômico e organizacional do aparato coercitivo para vigiar, controlar e punir.
A legitimação de uma ordem política é, portanto, crucial para a sua sobrevivência e funcionamento.
Significa que os indivíduos internalizaram suas regras básicas como justas, válidas e como tais, moralmente vinculativas. Ao obedecerem às leis e normas, baixadas pela autoridade legítima da forma legítima, estarão seguindo seus próprios princípios.
O sistema político, desta forma, ganha o auxílio da consciência individual para assegurar a anuência às suas normas, relegando o uso do aparato coercitivo para aquele resíduo minoritário de indivíduos que escolhe desrespeitá-las.
Legitimidade e popularidade
Legitimidade, porém não significa o mesmo que popularidade. Este é um equívoco que conduz a ilusões e desastres políticos. Sobretudo numa época de política de massas, artistas, atletas, personagens da TV e do rádio são vistos por muitos como potenciais líderes políticos, já pré-legitimados pelo bafejo de sua popularidade.
Embora, sobretudo em momentos de crises isso seja bastante comum, democracias estáveis e consolidadas “filtram” candidatos que provêm desses surtos de entusiasmo.
Alguns políticos populistas conseguem criar em torno de si sentimentos de admiração, confiança e fidelidade que se aproximam de uma legitimidade carismática. Entretanto, poucos conseguem percorrer este trajeto até conquistar e manter-se no poder.
Legitimidade e Carisma
O termo “carisma” é uma palavra grega que significa “dom da graça”.
Na linguagem da política, usam-se os termos carisma e carismático com demasiada liberdade confundindo-o com o conceito de popularidade.
Carisma é um conceito mais próximo da religião do que da política. Ser carismático é ser percebido como possuindo dons excepcionais, inacessíveis às pessoas comuns.
Em consequência, estes indivíduos são objeto de devoção e respeito reverencial. Líderes carismáticos “convertem” pessoas, realizam “milagres”, podem exigir sacrifícios de seus comandados, são encarados como seres superiores – na sabedoria, na força, na visão.
Não é, portanto qualquer político com alta popularidade que pode ser considerado carismático. Para sê-lo, é preciso ser capaz de despertar no povo sentimentos muito intensos, de natureza semirreligiosa ou religiosa e de que é dotado de poderes excepcionais.
Se o fundamento da sua autoridade é o “dom da graça” o líder carismático precisa, continuadamente, dar prova de possuí-lo, para manter a sua autoridade. Se, em algum momento suceder que ele se revela incapaz de realizar o que dele se espera, naquela virtude onde se fundamenta o seu carisma, sua autoridade se esvai. Em termos religiosos, equivale ao profeta que não mais realiza milagres, porque o Senhor o abandonou.
Legitimidade e desempenho
Há outro conceito de legitimidade que apareceu na segunda metade do século XX: legitimidade por desempenho. Segundo este conceito, mesmo governos nascidos ilegitimamente poderiam alcançar a legitimidade se se revelassem eficientes na sua função de governar.
Esta legitimidade não se basearia em princípios de uma tradição venerável, ou de uma ordem legal reconhecida, ou ainda como resultado da admiração por um líder que revelasse possuir dons excepcionais, como propôs Max Weber.
Legitimidade por desempenho é inerentemente utilitarista. Ao assentar a legitimidade numa transação cujos conteúdos são benefícios materiais, a teoria limita a sua validade a situações de prosperidade.
O conceito de legitimidade, entretanto assemelha-se ao conceito de amizade: ambos somente têm sua real autenticidade testada nos momentos de dificuldade. Não se testa uma amizade somente nos bons momentos, nem se testa a legitimidade de um regime apenas quando o país vai bem.
Legitimidade é norma apoiada em força moral, internalizada pelo indivíduo como integrante do seu sistema de valores. Por isso ela, quando existe, resiste aos maus momentos e às crises.
Dessas considerações pode-se concluir que ao lado de outras crises sofremos também uma crise de legitimidade que não será resolvida por líderanças populistas, supostamente carismáticas ou administrativamente eficientes.
* Professor de Ciência Política, ex-reitor da UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton, criador e diretor do site Política para Políticos