• Diego Pessi
  • 14/08/2017
  • Compartilhe:

EISENHOWER E O ESPANTALHO

 

Farto com o estado de anomia a que foi reduzido o País, um grupo formado por mais de 300 Promotores de Justiça, Juízes de Direito, advogados e policiais lançou um manifesto intitulado “Você Está Sendo Enganado”. O mote do documento é a denúncia do ciclo democida promovido pelo Estado brasileiro, mediante sucateamento das forças policiais (que tiveram suprimida a capacidade de reprimir e investigar os crimes) e desmantelamento doloso do sistema penitenciário, seguidos da denúncia de sua ineficácia e oferta – a título de solução - de uma legislação ainda mais leniente e do desencarceramento de delinquentes perigosos.

O manifesto (ao qual tive a honra de aderir como signatário) ensejou diferentes reações: apoio e adesão, ostentações constrangedoras de covardia (travestidas sob as formas do bom-mocismo auto-indulgente, prudência e ponderação) e last, but not least, ataques de fúria histérica, mediante utilização de surrados expedientes da dialética erística, notadamente falácia do espantalho e ataque ad hominem.

O emprego de artifícios ignóbeis num debate de tamanha relevância não chega a ser motivo de surpresa, quer pela natureza e formação daqueles que o fazem, quer pela ingrata posição que ocupam na contenda. Dito de outro modo: não são necessárias muitas luzes para perceber que num País onde sair às ruas é, estatisticamente, um ato de coragem, soaria estranho qualificar o manifesto como alarmista. Por mais escasso que seja seu contato com a realidade circundante, os apologistas da impunidade são capazes de intuir que 60 mil homicídios por ano (sim, somos campeões mundiais em números absolutos) são algo que não pode simplesmente ser varrido para debaixo do tapete. Não por humanidade, mas por instinto de preservação pessoal, mesmo o mais jejuno dos apóstolos da bandidolatria percebe que diante dos cerca de 800 mil assassinatos (o equivalente à população de João Pessoa-PB) cometidos apenas nos últimos 15 anos (dos quais nem 10% resultaram em denúncias), dizer que “tudo vai bem” pareceria deboche. Ignorar a existência de 130 estupros registrados diariamente no Brasil poderia soar, como direi, algo misógino, sendo igualmente insano ignorar de forma explícita os mais de 985 mil roubos contabilizados numa totalização realizada no longínquo ano de 2011 (certamente a situação atual é bem pior).

Ruminando sua fúria impotente diante da veracidade apodíctica do conteúdo do manifesto, restou aos seus detratores a desesperada tentativa de transformá-lo num espantalho (afirmando que ele “fere garantias”) ou atribuir aos seus signatários algum rótulo infamante, a fim de neutralizar de antemão a discussão sobre a matéria de fundo, através da desmoralização preventiva e irremediável do inimigo. Foi exatamente isso o que fez a defensora pública Tatiana Kosby Boeira - em artigo publicado no jornal Zero Hora em dia 11 de agosto de 2017 - ao lançar mão da famosa “Lei de Godwin” e equiparar os signatários do manifesto a membros do movimento nazista. Como tudo que é ruim sempre pode piorar, a manifestação da defensora, até então um espasmo isolado de obtusidade presunçosa, rapidamente ganhou caráter institucional ao ser replicada pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

Causa horror e espanto o fato de que, em seu furor difamatório, defensora e Defensoria pareçam não haver percebido a gravidade da comparação realizada. Ao atribuírem aos signatários do manifesto a condição de nazistas, equipararam, ipso facto, milhares de vítimas inocentes do holocausto a estupradores, assassinos e latrocidas da pior espécie! As vítimas do nazismo, segundo essa visão, não merecem ser comparadas aos pobres inocentes abatidos como gado todos os anos no Brasil, mas sim aos seus algozes! A memória dos heróis, santos e mártires da resistência ao nazismo foi lançada no mesmo esgoto onde habitam as reputações de facínoras sanguinários: Viktor Frankl, São Maximiliano Kolbe e Anne Frank restaram reduzidos ao mesmo patamar moral de figuras como o goleiro Bruno, o Maníaco do Parque e Suzane Von Richtofen!

O banho de sangue vivido no Brasil é consequência direta dessa falta de senso de realidade e de proporções. A reação intempestiva e irracional ao manifesto corrobora seu teor e chancela o alerta emitido, mostrando que a autora do artigo - junto com outros tantos - incorre no radicalismo e cegueira ideológica que alega denunciar. O General Dwight D. Eisenhower - que viria a se tornar o 34° Presidente dos Estados Unidos – afirmou jamais haver sofrido choque semelhante ao de sua visita a um campo de concentração na cidade de Gotha, em 12 de abril de 1945. Na ocasião determinou que o horror presenciado fosse objeto de amplo e detalhado registro pela imprensa, temendo que, um dia, idiotas viessem a negar a existência do holocausto. O velho “Ike” só não contava com a possibilidade de que no futuro alguém fizesse tão pouco caso dele.